19.9.23

Porque é que o salário mínimo arrisca pagar pela primeira vez IRS?

Ana Sofia Santos Jornalista, in Expresso


A partir do próximo ano, a reforma do mínimo de existência (o valor até ao qual os contribuintes estão isentos de impostos) poderá levar a que os contribuintes com salário mínimo passem a ser tributados, caso não haja um eventual mecanismo de ajuste


As regras do mínimo de existência, que é o valor que garante aos contribuintes um rendimento líquido que permita uma vida “digna”, mudaram de forma substancial no final de 2022. Para os últimos dois anos (2022 e 2023), o Governo introduziu regras transitórias que permitiram que o salário mínimo nacional continuasse isento de imposto, mas para 2024 não existe tal garantia. Questionado pelo Expresso, o Ministério das Finanças não respondeu, nomeadamente, sobre se o Executivo vai introduzir um mecanismo que mantenha a isenção de IRS no salário mínimo e, caso a tributação deste nível de rendimento avance, qual será o encaixe para o Estado.


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O QUE É O MÍNIMO DE EXISTÊNCIA?

A Constituição da República Portuguesa define que o IRS “visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar”. E, por outro lado, a Lei Geral Tributária estabelece que a tributação direta deverá ter em conta “a necessidade de a pessoa singular e o agregado familiar a que pertença disporem de rendimentos e bens necessários a uma existência digna”.

Assim, “o mínimo de existência consagrado no Código do IRS (CIRS) é o nível de rendimento disponível considerado como indispensável a uma vida condigna, estipulando-se que os contribuintes com rendimento disponível inferior a esse limite não estarão sujeitos ao pagamento de impostos diretos devido a considerar-se não disporem de capacidade contributiva”, explica Paulo Renato Costa, autor de um estudo sobre a ‘Reforma do Mínimo de Existência” – 2023, publicado, em abril, pelo Gabinete de Planeamento, Estratégia, Avaliação e Relações Internacionais (GPEARI) do Ministério das Finanças.

A regra do mínimo de existência faz parte integrante do Código do IRS, existe desde a sua entrada em vigor em 1 de janeiro de 1989 e, atualmente, está definido no artigo 70.º do CIRS.


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O QUE MUDOU?

“Ao longo dos anos, foram diversas as alterações e atualizações à regra do mínimo de existência, seja por alteração da forma de cálculo ou do valor do seu limite, seja pela alteração das categorias de rendimentos que permitem usufruir dessa regra”, indica o estudo do GPEARI. No final de 2022, houve mudanças profundas neste mecanismo, com a regra do mínimo de existência a ser “substancialmente alterada”. Apesar de o artigo 70.º do CIRS, na sua redação atual, apenas se aplicar aos rendimentos de 2024, foram definidos regimes transitórios para 2022 e 2023.

Entre 2018 e 2020, o valor do mínimo de existência esteve sempre associado ao Indexante dos Apoios Sociais (IAS), visto o montante calculado através da referida fórmula de indexação ser superior ao valor anual da Retribuição Mínima Mensal Garantida (RMMG). Em 2021, o valor anual da RMMG foi superior ao valor calculado com base na fórmula de indexação ao IAS. No entanto, na Lei do Orçamento do Estado (LOE) de 2022 foi determinado, com efeitos na liquidação de rendimentos de 2021, o acréscimo de 200 euros ao valor do limite obtido pela fórmula de indexação ao IAS, o que fez com que o limite do mínimo de existência em 2021 fosse ainda apurado através da fórmula de indexação ao IAS.

Nesse ano, o valor do mínimo de existência foi de 9415 euros enquanto o valor anual da RMMG se situou em 9310 euros, lembra Paulo Renato Costa.

Em 2022, “já não se verificando nenhum acréscimo ao limite obtido pela fórmula de indexação ao IAS, o valor do mínimo de existência passou a estar indexado à RMMG (14xRMMG), correspondendo, nesse ano, ao montante de 9870 euros. E, desta forma, foram eliminadas distorções.

Já para os rendimentos de 2023, passou a ser utilizado um valor de referência que funciona como base para o cálculo do abatimento por mínimo de existência. Esse valor de referência está indexado ao valor do IAS através da fórmula 1,5x14xIAS, não podendo o resultado da fórmula ser inferior a 10.640 euros, valor que corresponde à RMMG em 2023.

Com a LOE para 2023, “as regras de determinação do mínimo de existência sofreram alterações significativas”, vinca, por sua vez, Bruno Alves, sócio do departamento fiscal da consultora PwC, esclarecendo que a partir deste ano “passou a prever-se um abatimento ao valor do rendimento coletável (valor sujeito a IRS), em substituição do anterior regime, que previa um montante mínimo de rendimento líquido” –, embora exista um regime transitório.

O fiscalista explica ainda que, segundo as novas regras, a aplicação do mínimo de existência e, consequentemente, o valor do abatimento ao rendimento coletável variam consoante o montante total dos rendimentos brutos auferidos no ano, tendo por base um valor de referência correspondente ao maior valor entre 10.640 euros (correspondente a 14 x 760 euros – salário mínimo atual) e 10.089 euros (1,5 x 14 x IAS para 2023).


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O QUE PODE ACONTECER EM 2024?

Sem um mecanismo de exceção e caso se concretize a previsão de um salário mínimo nacional de 810 euros mensais no próximo ano, conforme acordado entre o Governo e os parceiros sociais, quem receber a RMMG terá de pagar IRS. “Será com os rendimentos de 2024 que a nova regra do mínimo de existência será plenamente aplicada, após a aplicação de forma transitória em 2022 e 2023”, é explicado no estudo do GPEARI.

O autor fez as contas ao impacto tendo em conta uma atualização do valor dos escalões do IRS em 5,1% (é a previsão do Governo no Programa de Estabilidade), assumindo a mesma percentagem de aumento para o IAS e concluiu que, pela primeira vez desde que existe IRS, o salário mínimo será sujeito a imposto.

Bruno Alves sintetiza o cenário para 2024 do seguinte modo: “Caso a fórmula de cálculo do mínimo de existência não seja atualizada em conformidade com o aumento expectável do salário mínimo nacional (por forma a refletir um novo valor de referência), o abatimento ao rendimento coletável não deverá ser aplicável aos contribuintes que venham a auferir o referido salário mínimo nacional, uma vez que os rendimentos totais do ano irão exceder o valor de referência para aplicação deste abatimento (1,5 x 14 x IAS)”. Isto significa que os contribuintes que aufiram apenas o salário mínimo nacional, “passarão, regra geral, a estar sujeitos a IRS (contrariamente ao que sucedeu em 2023)”.


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A REFORMA DO MÍNIMO DE EXISTÊNCIA FOI BOA OU FOI MÁ?

Na opinião de Paulo Renato Costa, a reforma do mínimo de existência “foi positiva, melhorando o rendimento disponível dos agregados e os principais indicadores de desigualdade”. Isto porque a nova regra do mínimo de existência veio pôr fim a algumas distorções causadas pela anterior regra, “tais como a tributação de rendimentos a uma taxa marginal de 100% ou à possibilidade de agregados com rendimentos elevados usufruírem desse benefício”.

Mas, por outro lado, a indexação do novo valor de referência ao IAS, garantido como mínimo o valor da Remuneração Mensal Média Garantida (RMMG) de 2023 e não a do próprio ano, vai originar que a partir de 2024, “e pela primeira vez desde a entrada em vigor do IRS, sujeitos passivos com rendimentos iguais à RMMG venham a ter imposto a pagar”.