Clara Viana, in Jornal Público
É o pior nível de desqualificação da UE: 68 por cento das crianças portuguesas vivem com pais com o ensino secundário incompleto
Não é um retrato abonatório para Portugal aquele que se encontra descrito num relatório da Comissão Europeia sobre pobreza infantil que hoje será apresentado. Elaborado com base em dados de 2005 (que é ainda o ano limite para a maior parte dos estudos europeus), o relatório coloca Portugal não só entre os oito países da União Europeia com níveis mais elevados de pobreza entre as crianças, como o confirma entre aqueles com mais probabilidades de se manter nesta posição.
Em 2005, 24 por cento das crianças (contra 19 de média na UE) encontravam-se expostas, em Portugal, ao risco de pobreza (no ano anterior essa percentagem era de 23 por cento). Como a Roménia e a Bulgária não foram incluídas neste estudo, em situação pior do que Portugal figuravam apenas a Polónia (29 por cento) e a Lituânia (27). Seguiam-se-lhes, em situação de empate, Portugal, Espanha e Itália.
Habilitações dos pais
A análise da pobreza entre as crianças permitiu identificar factores que são potenciadores desta situação. Entre os principais, segundo o relatório da Task-Force on Child Poverty and Child Well-Being, figuram a dimensão do agregado, bem como o nível de escolaridades e a situação profissional dos pais.
Uma conclusão: quanto menor a escolaridade dos pais, maior o risco de pobreza das crianças. É, talvez, um dos dados mais chocantes presentes no relatório europeu: em Portugal, 68 por cento (contra 16 de média europeia) das crianças vivem com pais que não concluíram os estudos secundários. Oitenta e oito por cento das crianças portuguesas em risco de pobreza vivem em agregados com estas baixas qualificações.
É o patamar mais elevado de desqualificação na UE. Apenas Malta, com 66 por cento, se aproxima. E há situações tão distantes da nacional como esta: a percentagem de crianças a viverem em agregados com níveis baixos de escolaridade é de dois por cento na Eslováquia, seis por cento na Polónia, sete por cento em França.
Crescer em famílias monoparentais ou em agregados com três ou mais crianças são outros factores potenciadores de pobreza . Na União Europeia, "metade das crianças pobres" vive nestes dois tipos de família. A taxa de pobreza entre as que vivem só com um pai (em 90 por cento dos casos é a mãe) é de 34 por cento. Entre as que pertencem a famílias numerosas é de 25 por cento: a Suécia e a Alemanha são a excepção, ou seja, são os únicos dois países da UE em que o facto de uma criança viver numa família numerosa não lhe aumenta o risco de pobreza.
Famílias monoparentais
Portugal está acima da média europeia em ambos os casos: 38 por cento no que respeita a famílias monoparentais (existem oito países em pior situação) e 43 por cento nas famílias numerosas. Neste campo pior só a Polónia e a Lituânia, com 47 e 43 por cento. Esta diferença tem consequências. Em declarações ao PÚBLICO, Amélia Bastos, do Instituto Superior de Economia e Gestão de Lisboa, com um doutoramento em pobreza infantil e um livro sobre o tema a ser publicado em breve, frisa que aos dois tipos de famílias correspondem, em regra, "distintas trajectórias": "nas mo-
noparentais, a pobreza tende a ser transitória, enquanto nas famílias nu-
merosas a tendência é para ser crónica".
A seu favor, Portugal conta com o facto de ser, na UE, um dos que têm uma menor percentagem (pouco mais de quatro por cento) a viver em agregados onde nenhum dos membros trabalha. A nível nacional, como na maioria dos outros países, as crianças encontram-se em maior risco de pobreza do que o conjunto da população: em Portugal, a diferença é de 24,5 para 20,3 por cento.
Segundo o relatório da UE, em média as transferências sociais têm reduzido o risco de pobreza infantil na Europa em 44 por cento.
Governo desvaloriza?
Embora só hoje deva ser conhecida a reacção oficial a este relatório, um porta-voz do Ministério do Trabalho e da Segurança Social assegurou ao PÚBLICO que o cenário retratado não corresponderá "certamente" à situação de hoje, e provavelmente também não à de 2005. Os abonos foram reforçados, criados os subsídios de maternidade, mas mais importante, adianta, o estudo não contabiliza algumas das principais medidas "redutoras" da pobreza infantil. Por exemplo, não foram levados em conta os "mil milhões de euros que o Estado anualmente transfere para as IPSS" para subsidiar a frequência de pré-escolar e primário.
Já Amália Bastos confirma Portugal "na cauda da UE". Tanto pela análise dos recursos monetários, como pela observação da "privação", em que a criança é olhada directamente: "O insucesso escolar é grande, encontramos uma dieta alimentar desiquilibrada e muito frequentemente a ausência total de comida. Muitas crianças não têm qualquer vigilância médica. Muitas delas continuam a viver também numa situação de estigmatização auto-alimentada. Por fim, residem muito frequentemente em casas sobrelotadas, nas quais não dispõem de um quarto".
O que se pode esperar daqui? "Quem anda no terreno constata que
existe uma grande fatia destas crianças condenadas a reproduzir a pobreza das famílias. A quebra do ciclo intergeracional não está a ser feita", alerta a investigadora.
Em 2005, a Europa contava com 97,5 milhões de crianças entre os 0 e os 17 anos. Destas, 19 milhões viviam abaixo da linha de pobreza.
O Governo diz que entretanto já foram reforçados os abonos e subsídios, o que contribui para a desactualização dos dados.
Desde 2001 que Portugal tem vindo a adoptar o chamado Plano Nacional de Acção para a Inclusão (PNAI). Segundo dados do INE, em 2006, a taxa de pobreza, após transferências sociais, foi de 18 por cento, ou seja, menos dois pontos do que a registada em 2005 e aproximando-se assim da média europeia (17 por cento), um dos principais objectivos estabelecidos naqueles planos.
No PNAI para 2006-2008 as crianças voltam a ser apresentadas como "um grupo particularmente vulnerável a situações de pobreza". Em Portugal, o risco de pobreza entre elas aumentou de 23 para 24 por cento entre 2004 e 2005.
O combate à pobreza das crianças e idosos foi fixado como prioridade número um do plano para a inclusão. Algumas medidas a atingir até 2008: reforçar a protecção às famílias monoparentais, que estão entre as mais vulneráveis ao risco de pobreza, abrangendo 200 mil titulares do abono de família; aumentar em 50 por cento a capacidade instalada em creches (até 2009); garantir que 90 por cento dos agregados beneficiários do rendimento social de inserção estabeleçam acordos de inserção.