Luciano Alvarez, in Jornal Público
Uma alerta ao país para evitar uma crise maior. O Estado e os políticos são os principais visados
Sente-se em Portugal "um mal-estar difuso", que "alastra e mina a confiança essencial à coesão nacional". Este mal-estar e a "degradação da confiança, a espiral descendente em que o regime parece ter mergulhado, têm como consequência inevitável o seu bloqueamento". E se essa espiral descendente continuar, "emergirá, mais cedo ou mais tarde, uma crise social de contornos difíceis de prever".
Este é um dos muitos alertas lançados pela Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (Sedes) - uma das mais antigas e conceituadas associações cívicas portuguesas -, num documento ontem concluído e dirigido ao país.
Esta tomada de posição é uma reflexão sobre o momento que Portugal vive, com a associação a manifestar o seu dever de ética e responsabilidade para intervir e chamar a atenção "para os sinais de degradação da qualidade de vida cívica". Principais visados: o Estado, em geral, e os partidos políticos, em particular.
E para este "difuso mal-estar", frase que é o pilar de todo o documento, a Sedes centra-se em algumas questões: degradação da confiança no sistema político; sinais de crise nos valores, comunicação social e justiça; criminalidade, insegurança e os exageros cometidos pelo Estado.
Acirrar de emoções
O acentuar da "degradação da confiança dos cidadãos nos representantes partidários" de todo o espectro político é o primeiro alerta da associação. E, aqui, os relatores do documento (ver texto nestas páginas) não têm dúvidas sobre a crise que surgirá caso não seja evitado o eventual fracasso da democracia representativa: "criará um vácuo propício ao acirrar das emoções mais primárias em detrimento da razão e à consequente emergência de derivas populistas, caciquistas, personalistas".
E para que a democracia representativa seja preservada, a Sedes aponta três metas aos partidos: "Têm de ser capazes de mobilizar os talentos da sociedade para uma elite de serviço; a sua presença não pode ser dominadora a ponto de asfixiar a sociedade; e não devem ser um objectivo em si mesmos".
A associação considera ainda preocupante "assistir à tentacular expansão da influência partidária" - quer "na ocupação do Estado", quer "na articulação com interesses da economia privada".
Outro factor que a Sedes diz contribuir para a "degradação da qualidade da vida política" é o resultado "da combinação de alguma comunicação social sensacionalista com uma justiça ineficaz", que por vezes deixa a sensação de que "também funciona subordinada a agendas políticas".
Essa combinação "alimenta um estado de suspeição generalizada" sobre a classe política. "É o pior dos mundos", acrescentam. "Sendo fácil e impune lançar suspeitas infundadas, muitas pessoas sérias e competentes afastam-se da política, empobrecendo-a."
Neste capítulo, o Estado, que "tem uma presença asfixiante sobre toda a sociedade", também não é poupado: "Demite-se do seu dever de isenta regulação, para desenvolver duvidosas articulações com interesses privados, que deixam em muitos casos um perigoso rasto de desconfiança".
E nesta sequência de constatações sobre o comportamento dos agentes do Estado, surge pela primeira vez a palavra "corrupção". "É precisamente na penumbra do que a lei não prevê explicitamente que proliferam comportamentos contrários ao interesse da sociedade e ao bem comum. E é justamente nessa penumbra sem valores que medra a corrupção, um cancro que corrói a sociedade e que a justiça não alcança."
Criminalidade e exageros
E depois vêm a criminalidade e os recados aos exageros do Estado directamente dirigidos à ASAE, embora esta autoridade nunca seja explicitamente citada. A Sedes não tem dúvidas em afirmar que a criminalidade violenta "progride"; que a "crescente ousadia dos criminosos transmite o sentimento de que a impune experimentação vai consolidando saber e experiência na escala da violência"; e que, enquanto "subsiste uma cultura predominantemente laxista no cumprimento da lei, em áreas menos relevantes para as necessidades do bom funcionamento da sociedade emerge, por vezes, uma espécie de fundamentalismo ultrazeloso, sem sentido de proporcionalidade ou bom senso".
"Calculem-se as vítimas da última década originadas por problemas relacionados com bolas-de-berlim, colheres de pau ou similares e os decorrentes da criminalidade violenta ou da circulação rodoviária e confronte-se com o zelo que o Estado visivelmente lhes dedicou."
Por tudo isto, e para evitar que se chegue à já referida "crise social de contornos difíceis de prever", a Sedes apela depois à sociedade civil para intervir e participar "no desbloqueamento da eficácia do regime". Mas, para que isso aconteça, será necessário que o Estado se "abra mais do que tem feito até aqui".
Prestar contas
E aqui, as principais críticas vão para os partidos. Para a Sedes, a dissociação entre os eleitores e os partidos "deve preocupar todos aqueles que se empenham verdadeiramente na coisa pública e que não podem continuar indiferentes perante a crescente dissociação entre o conceito de res publica e o de intervenção política".
Partidos que, de acordo com a Sedes, "têm a obrigação de prestar contas de forma permanente sobre o modo como o exercem". "Em geral, o Estado tem de abrir urgentemente canais para escutar a sociedade civil e os cidadãos. Deve fazê-lo de forma clara, transparente e, sobretudo, escrutinável. Os portugueses têm de poder entender as razões que presidem à formação das políticas públicas que lhes dizem respeito", conclui o documento. Ler documento na íntegra em www.publico.pt
Vítor Bento, presidente da Sedes, é um dos muitos economistas que assinam o documento de alerta ao país.