Miguel Oliveira Panão, in Agência Ecclesia
Tema escolhido por Bento XVI para o próximo Dia Mundial da Paz ganha nova relevância depois de Copenhaga
A cimeira de Copenhaga terminou apenas com uma intenção de acção relativa a uma questão moral que nos atinge a todos: a crise ecológica. Segundo o secretário da ONU para as alterações climáticas, Yvo de Boer, apesar de não ter qualquer efeito vinculativo, “tomar nota” do acordo é «uma forma [dos países] reconhecerem que algo existe, mas não a ponto de dizerem que se tornam parte [dele]». Porque não se atingiu consenso? A interpretação que lemos nos jornais é ter havido um bloqueio resultante de diferendos entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Mas, será este o motivo? Sugiro uma outra interpretação.
Na preparação desta cimeira foram identificados como pontos essenciais pelos organizadores: a redução das emissões de gases com efeito de estufa, nomeadamento o CO2; e as ajudas financeiras aos países mais pobres (que são, sem dúvida, importantes). Porém, preocupados com os números, esqueceu-se aquilo que importava reduzir verdadeiramente: o défice relacional entre os países, expressão que Bento XVI identifica como a «necessidade de uma profunda renovação cultural». Enquanto o ser humano não se der conta que a crise ecológica é um reflexo da crise cultural que atravessa e uma manifestação da «urgência de uma solidariedade que se projecte no espaço e no tempo», o acordo será difícil. Por outro lado, é preciso que as sociedades mais avançadas tecnologicamente «estejam dispostas a favorecer comportamentos caracterizados pela sobriedade, diminuindo as próprias necessidades de energia». Assim, existem duas palavras essenciais na mensagem do Dia Mundial da Paz escrita por Bento XVI: solidariedade e sobriedade. O resultado da cimeira não seria o mesmo se fossem estes os pontos essenciais identificados pelo organizadores em vez de emissões e dinheiro.
Bento XVI afirma a crise ecológica como «uma oportunidade histórica para elaborar uma resposta colectiva tendente a converter o modelo de desenvolvimento global segundo uma direcção mais respeitadora da criação e de um desenvolvimento humano integral». Contudo, pode haver desenvolvimento humano integral quando existem «pessoas que, por causa da degradação do ambiente onde vivem, se vêem obrigadas a abandoná-lo – deixando lá muitas vezes também os seus bens – tendo de enfrentar os perigos e as incógnitas de uma deslocação forçada», o que Bento XVI apelidou de “refugiados ambientais”? Como escreve na sua última Encíclica «o modo como o ser humano trata o ambiente influi sobre o modo como se trata a si mesmo, e vice-versa» (Caritas in veritate, n. 51).
De facto, «a degradação da natureza está intimamente ligada à cultura que molda a convivência humana», daí a ligação profunda entre “ecologia humana” e “ecologia ambiental”. Essa ligação dá-se, sobretudo, através da categoria da relação. Se assumirmos que somos constituídos na relacionalidade, reconhecemos cada ser humano como parte da mesma família humana. Relação é um conceito profundamente ecológico e suportado pelas ciências naturais. No mundo, tudo está em relação com tudo, cada coisa com cada coisa. Penso que Copenhaga carecia desta visão familial dos relacionamentos entre nações com implicações para o relacionamento destas com o meio ambiente.
Existe um último ponto na mensagem do Papa para o Dia Mundial da Paz que pode ser uma chave de leitura útil para o pós-Copenhaga: o significado daquilo que Bento XVI apela de “função superior do homem”. Bento XVI apela a um modelo de desenvolvimento fundado na «centralidade do ser humano», e critica uma concepção de relação entre ser humano e natureza dita biocêntrica, ou ecocêntrica, pelo facto de eliminar a diferença ontológica (natureza da existência) e axiológica (ao nível dos valores) entre ambos, elimina também a «função superior do homem». Isto sugere que a visão de Bento XVI pode ser interpretada como antropocêntrica, o que seria uma conclusão precipitada e redutora daquela que é a “função superior” que faz parte da vocação do ser humano na natureza, isto é, «o dever de exercer um governo responsável da criação, preservando-a e cultivando-a». Tal função ou governo não parte de uma noção de “cima para baixo” entre o homem e a natureza, mas de uma noção familial do homem e da natureza como membros da “família da criação”. Logo, neste caso, “função superior” é sinónimo de “serviço”.
Cultivar a paz, preservando a criação, depois de Copenhaga, significa reconhecer que somos todos “família da criação” e que o país do outro é também o meu. Quando ultrapassarmos o preconceito do interesse individual, encontraremos a solução e o acordo no interesse relacional. Isto não cabe apenas às nações e seus líderes, mas sobretudo, a cada um de nós.