1.2.10

Viver Portugal como esperança colectiva

Pedro Olavo Simões, in Jornal de Notícias

Pequena política esteve afastada das intervenções na abertura das comemorações do centenário da República.

Fazer da celebração um pretexto reflexivo é ideia comum aos líderes políticos deste país. Do "novo espírito de cidadania" de Cavaco à "comunidade com projecto de futuro" de Sócrates, o centenário da República passou ao lado da pequena trica política.

Molhou-se o Porto à chegada do presidente da República. Na Praça do General Humberto Delgado e na Avenida dos Aliados, onde decorreu a cerimónia de abertura das comemorações oficiais do centenário da República Portuguesa, a chuva, que fizera greve ao resto da manhã, foi uma constante. Finda a cerimónia, parou. Mas, que relacionamento pode haver entre os caprichos do tempo e a evocação de outros tempos? A circunstância de os oradores terem decidido não chover no molhado, pondo de parte a tentação glorificadora e apelando àquele que é o verdadeiro sentido didáctico da História.

"Estas comemorações têm um importante papel a cumprir. Trata-se de inserir os acontecimentos do passado no conjunto da vida de um povo e de os compreender", disse Cavaco Silva, encaixando aí os ensinamentos do pedagogo João de Deus: falar, ouvir, entender e explicar. Nesse sentido, apelou à rejeição das "versões oficiais da história" (um ensinamento básico para qualquer historiador), pois só dessa forma, "admitindo uma multiplicidade de leituras e de interpretações, poderemos formular juízos e extrair lições". Nessa ideia (por sinal, contida, também, no discurso de José Sócrates) e na "necessidade que sentimos de comemorar a República" entroncará, entende o chefe de Estado, "a capacidade de mudar, de começar de novo todos os dias", tornando os cidadãos "um pouco melhores, sem pôr tudo em causa".

Esse tipo de aprendizagem com a História, que a gente da História entende sempre com algum cepticismo, pois há erros que tendem a repetir-se (ou a ser reformulados), foi também defendido pelo primeiro-ministro, mas com inevitáveis e subtis divergências doutrinárias. Enquanto Cavaco apelou à "convergência entre os valores de sempre e as exigências de adaptação a novos tempos", deixando vincada a linha conservadora, Sócrates apenas apontou aos ditos tempos novos: "Serve-se a República fazendo de Portugal uma democracia aberta e contemporânea".

Assinalando as comemorações como "um momento não de nostalgia, mas de celebração", o chefe do Executivo disse que "a implantação da República foi muito mais do que uma ruptura constitucional; foi um momento profundamente reformista", sempre canalizando o discurso para essa retórica de progresso e modernização que lhe é tão cara, sintetizada na ideia de uma "comunidade com projecto de futuro".

Não saíram dos dignitários da Nação, como se vê, grandes reflexões sobre o estado actual da República. Mais acutilante, nesse sentido, foi o presidente da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República, Artur Santos Silva, o primeiro a usar da palavra: "Necessitamos, sempre e sempre, de instituições democráticas mais fortes, mais adequadas ao nosso tempo: que os tribunais funcionem, que os partidos e o Parlamento assegurem uma melhor representação e fiscalização políticas, que o Governo consiga satisfazer melhor as aspirações da sociedade, garantindo padrões de qualidade de vida mais elevados e uma maior base de coesão e de solidariedade social".

Revista às tropas, um abreviado desfile destas ou uma homenagem militar aos mortos foram, na Baixa portuense, elementos da cerimónia a que, entre os mais altos representantes da vida pública, assistiram dois ex-presidentes, Mário Soares e Jorge Sampaio. O fecho das intervenções, feito por Cavaco, foi altamente simbólico: "Em nome desta esperança colectiva que se chama Portugal".