Pedro Olavo Simões, in Jornal de Notícias
Pequena política esteve afastada das intervenções na abertura das comemorações do centenário da República.
Fazer da celebração um pretexto reflexivo é ideia comum aos líderes políticos deste país. Do "novo espírito de cidadania" de Cavaco à "comunidade com projecto de futuro" de Sócrates, o centenário da República passou ao lado da pequena trica política.
Molhou-se o Porto à chegada do presidente da República. Na Praça do General Humberto Delgado e na Avenida dos Aliados, onde decorreu a cerimónia de abertura das comemorações oficiais do centenário da República Portuguesa, a chuva, que fizera greve ao resto da manhã, foi uma constante. Finda a cerimónia, parou. Mas, que relacionamento pode haver entre os caprichos do tempo e a evocação de outros tempos? A circunstância de os oradores terem decidido não chover no molhado, pondo de parte a tentação glorificadora e apelando àquele que é o verdadeiro sentido didáctico da História.
"Estas comemorações têm um importante papel a cumprir. Trata-se de inserir os acontecimentos do passado no conjunto da vida de um povo e de os compreender", disse Cavaco Silva, encaixando aí os ensinamentos do pedagogo João de Deus: falar, ouvir, entender e explicar. Nesse sentido, apelou à rejeição das "versões oficiais da história" (um ensinamento básico para qualquer historiador), pois só dessa forma, "admitindo uma multiplicidade de leituras e de interpretações, poderemos formular juízos e extrair lições". Nessa ideia (por sinal, contida, também, no discurso de José Sócrates) e na "necessidade que sentimos de comemorar a República" entroncará, entende o chefe de Estado, "a capacidade de mudar, de começar de novo todos os dias", tornando os cidadãos "um pouco melhores, sem pôr tudo em causa".
Esse tipo de aprendizagem com a História, que a gente da História entende sempre com algum cepticismo, pois há erros que tendem a repetir-se (ou a ser reformulados), foi também defendido pelo primeiro-ministro, mas com inevitáveis e subtis divergências doutrinárias. Enquanto Cavaco apelou à "convergência entre os valores de sempre e as exigências de adaptação a novos tempos", deixando vincada a linha conservadora, Sócrates apenas apontou aos ditos tempos novos: "Serve-se a República fazendo de Portugal uma democracia aberta e contemporânea".
Assinalando as comemorações como "um momento não de nostalgia, mas de celebração", o chefe do Executivo disse que "a implantação da República foi muito mais do que uma ruptura constitucional; foi um momento profundamente reformista", sempre canalizando o discurso para essa retórica de progresso e modernização que lhe é tão cara, sintetizada na ideia de uma "comunidade com projecto de futuro".
Não saíram dos dignitários da Nação, como se vê, grandes reflexões sobre o estado actual da República. Mais acutilante, nesse sentido, foi o presidente da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República, Artur Santos Silva, o primeiro a usar da palavra: "Necessitamos, sempre e sempre, de instituições democráticas mais fortes, mais adequadas ao nosso tempo: que os tribunais funcionem, que os partidos e o Parlamento assegurem uma melhor representação e fiscalização políticas, que o Governo consiga satisfazer melhor as aspirações da sociedade, garantindo padrões de qualidade de vida mais elevados e uma maior base de coesão e de solidariedade social".
Revista às tropas, um abreviado desfile destas ou uma homenagem militar aos mortos foram, na Baixa portuense, elementos da cerimónia a que, entre os mais altos representantes da vida pública, assistiram dois ex-presidentes, Mário Soares e Jorge Sampaio. O fecho das intervenções, feito por Cavaco, foi altamente simbólico: "Em nome desta esperança colectiva que se chama Portugal".