1.4.10

“Há crianças que ainda são retiradas à família por pobreza”

in O Mirante

A pobreza separa muitos pais dos filhos, diz a directora do Centro de Emergência Social da Fundação Cebi, Olga Fonseca. Os casos de maus-tratos e abusos sexuais são uma realidade e nestas situações agir é a atitude mais correcta para a presidente da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens em risco de Vila Franca de Xira. Para evitar que os meninos gastem a infância nos corredores das instituições, Olga Fonseca defende a agilização do processo de adopção. Não ao ritmo das convicções de magistrados, mas no tempo da criança.

Quantas crianças acolhe o Centro de Emergência Social da Fundação Cebi?

Neste momento 31 crianças. Existe um acordo com a Segurança Social para 30, mas temos uma ou outra cama extra e sempre que há possibilidade de acolher mais alguém fazemo-lo. Não deixamos ninguém na rua.

As crianças que estão no Centro podem ser adoptadas?

Depende. As crianças trazem uma medida de acolhimento institucional. A lei prevê que sejam períodos de seis meses que podem ser repetidos três vezes. E durante este período de acolhimento é trabalhado o projecto de vida da criança. Pode ser o retorno à família biológica ou, no caso de não ser possível, a adopção. Há crianças que podem ser imediatamente adoptadas por consentimento dos pais. Há outras em que é durante o tempo do período do acolhimento institucional que se percebe que o projecto de vida tem que ser desenhado no sentido da adopção. Nessa altura, juntamente com as entidades competentes, faz-se a petição de confiança judicial ao tribunal para que se inicie o processo de adopção.

E esse tempo chega para resolver as situações?

Infelizmente aquilo que é habitual é que se excedam enormemente os prazos estabelecidos. Tenho cá crianças há dois, três anos. Quando o prazo dos 18 meses de aplicação de medida já foi excedido.

Os meninos que ficam mais tempo na instituição entram em processo de adopção?

Nem todos. No ano passado saíram 16 para a sua família biológica e oito para adopção. Consideramos que foi uma média boa. Há muitas crianças que têm processos de adopção a correr. Autênticas maratonas.

As crianças estão cá por que

razões?

O que é mais frequente, não só no centro de emergência, mas ao nível da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens em risco, são situações de negligência parental. Seja a nível físico ou emocional. Depois existem as situações de maus-tratos e incapacidade parental por questões socio-económicas.

De pobreza.

Diz-se que nenhuma criança deve ser afastada da sua família por motivos da dita pobreza, mas isto ainda é teoria. As crianças ainda são retiradas da família por pobreza e falta de condições.

Defende que assim seja?

Não, de todo. Retirar uma criança que não sofre maus-tratos ou negligência só porque os pais não têm condições socio-económicas é uma violência que se faz à criança e aos pais. O Estado tem a obrigação de ajudar as pessoas a ter condições mínimas para que as famílias não sejam separadas.

Aconteceu, como tem conhecimento, a retirada de três meninos em Foros de Salvaterra que entretanto já regressaram à família.

É uma situação complexa que não era da minha comissão. O que acontece hoje - sem querer particularizar sobre processos em que não participei - é que se as crianças estão numa situação de perigo e se intervém quem intervém é acusado de ter intervido por excesso. Se não intervém é acusado de não ter intervido e por isso a criança ficou em perigo. Retirar uma criança em situação de perigo é quase um acto de coragem. É pôr a cabeça no cepo. No entanto o que está em causa é o superior interesse da criança. Há que remar contra todas as marés. Se uma criança está em risco de ficar em perigo então há muitas entidades com a obrigação de ajudar as famílias.

É aceitável que crianças sejam retiradas durante a noite?

Não posso falar desse caso. O que lhe posso dizer é que já tive aqui no centro uma situação de uma criança cuja retirada teve que ser feita precisamente durante a noite com acompanhamento policial porque não havia forma de fazê-lo. No entanto a criança estava sempre com a mãe. É dos actos mais violentos que há para todas as pessoas envolvidas. Para a mãe, para o pai e para um técnico ou agente da autoridade. Por trás das fardas estão pessoas. O ideal não existe. É que não fosse necessário fazê-lo.

E a solução para os casos de

pobreza?

É preciso discutir a pobreza. Por uma pessoa viver numa situação de pobreza não significa que não tenha condições para ter a criança. Posso entrar numa casa de uma pessoa riquíssima e achar que têm lá crianças em perigo. E depois entrar numa casa miserável e as crianças serem tratadas com todo o carinho. Não podemos aplicar a bitola daquilo que achamos que as famílias devem ter.

Mas alguns técnicos poderão ter dúvidas ao entrar numa casa pobre.

Os técnicos estão sobrecarregados. Sabe o que são 900 casos da comissão para oito pessoas? Ninguém melhor do que os técnicos tem noção de que é preciso cuidado. Estou a lembrar-me de um caso. Dois técnicos de entidades diferentes fazem uma visita domiciliária a uma casa na serra com tijolos e telhado em madeira onde vive um pai e uma filha. No único canto onde não chove está um colchão sobre tábuas. Esse pai não maltrata a criança, mas a criança deve ficar a morar ali? Se calhar não. Pai e filha deveriam ser dali retirados e integrados numa instituição para não serem separados. Se isso não for possível, e se o pai estiver de acordo, que se promova o acolhimento temporário da criança. Muitas vezes é a forma dos pais terem mais disponibilidade para procurar soluções para a sua vida.


Politicamente incorrecta

Os dias de Olga Fonseca são pincelados regularmente em tons de cinza. As histórias dos meninos acolhidos no Centro de Emergência Social da Fundação Cebi, em Alverca, estão longe de ser cor-de-rosa, mas para contrastar, a directora do centro de acolhimento temporário mantém um intocável azul-tranquilidade no olhar. É a pintura, escape de fins-de-semana, que permite manter um perfil que todos lhe reconhecem. Tem 46 anos, é psicóloga de profissão, presidente da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens em risco do concelho de Vila Franca de Xira, mediadora familiar e ainda se desdobra como psicoterapeuta numa clínica privada.

Tem dois filhos. Um já formado em psicologia e outro, na área das artes, a caminho do ensino superior. Foi mãe aos 19 anos, mas conseguiu conciliar os estudos com o apoio dos pais, sogros e do ex-marido, professor de educação física. Sempre que pode refugia-se perto do mar. Gosta de caminhadas, de pincéis, de estar sozinha. A escrita e a poesia são outros dos sítios secretos da autora de “A Cegonha Angustiada”, reflexão sobre as dificuldades que enfrenta no dia-a-dia. Os primeiros quatro anos de vida foram passados em Loulé, no Algarve, mas é natural de Alverca, onde vive.

Defende os afectos e por isso não é contra a adopção por parte dos casais homosexuais. É pela capacidade de amar e recusa questões de género. Desassombrada, frontal e directa. Politicamente incorrecta. Capaz de criticar tudo e todos. Em nome do interesse superior da criança. Do tempo da criança. Que corre a um ritmo diferente do tempo dos homens que decidem.


O tempo da criança não é o tempo dos magistrados

São muitos os especialistas que defendem que é preciso que alguma coisa mude para que os processos de adopção sejam agilizados, reduzindo o tempo das crianças na instituições. O que defende concretamente?

Alguma coisa já foi mudando, mas os processos são lentos. Continua a haver um factor que é determinante na morosidade de alguns processos e que tem que ver com os decisores envolvidos. Pode ter que ver com técnicos que propõem tardiamente. Muitas vezes tem a ver com o magistrado que está à frente do processo. Se for um magistrado pró-adopção o processo será mais rápido, se for um magistrado pró-família biológica será mais complexo. Isto é delicado de se dizer, mas é a realidade. Há questões culturais que precisam de ir mudando em prol daquilo que é o superior interesse da criança. Na minha opinião muitas vezes continua a prevalecer o interesse dos pais e não o da criança. Compreendo que um não está necessariamente dissociado do outro. As crianças vão ficando à espera que os pais recuperem, que os pais mostrem que têm já capacidade, que venham relatórios daqui e dali provar que os pais afinal já podem tomar conta dos filhos. Há situações em que as crianças voltam para casa e meses depois estão cá novamente.

Quer dizer que dificilmente se consegue ultrapassar isso?

Não digo que isso é impossível porque não sei se há impossíveis. Mas muitas vezes é irrealista pensar-se que determinadas famílias com determinada história de vida vão conseguir reunir condições para ter a criança - pelo menos no tempo oportuno - que é o tempo da infância. Esse tempo passa. Por muito boa que seja uma instituição não é uma família. Não é justo que uma criança passe a infância numa instituição à espera que os pais mostrem que têm condições.

Na sua opinião isso deveria demorar quanto tempo?

Tudo o que seja mais de um ano para mim é muito tempo.

Um ano é suficiente para a família provar se tem condições ou não?

Há muitas situações em que os três meses de abandono ou desinteresse comprovado chegam. Porque é que uma criança que vem de uma maternidade em situação de perfeito abandono tem que ficar meses à espera numa instituição? Porque não vai logo para uma família? Não entendo.

Há a ideia de que os processos de adopção são muito morosos.

Uma coisa é o curso do processo de adopção em tribunal. Outra coisa é o tempo de espera de uma criança para ser adoptada. Imagine que um processo de adopção demorou dois anos. A criança já pode ser adoptada. Depois imagine que essa criança fica quatro à espera que apareça uma família.

Então não é no tribunal que está o principal problema?

São dois problemas principais. São dois volumes da mesma história. No tribunal ainda existem problemas. Depende da formação moral dos magistrados. E depois há a outra questão que é o tempo de espera por uma família.

E o que querem as famílias?

Querem crianças pequenas - muitas vezes de uma forma irrealista. Há famílias até com idades avançadas a dizer que querem crianças bebés ou até dois, três anos. As crianças não param no tempo. Crescem. Uma criança com cinco anos não é pior que uma criança com dois anos.

Como psicóloga pode explicar porque é que as pessoas têm essa preferência?

Não faço juízos de valor. Entendo perfeitamente que nas suas fantasias parentais queiram reproduzir o processo todo de maternidade ou paternidade que é ter um bebé e vê-lo crescer. Entendo isso, mas a adopção não é uma solução para os casais que não podem ter filhos, mas uma solução para as crianças que não podem ter pais. Também entendo que as pessoas têm uma fantasia acerca do que é ter uma criança. Pensam que uma criança pequena não traz vícios e memórias. Isto é um estereótipo.

Não corresponde à realidade?

Temos experiências de crianças adoptadas crescidas que são um sucesso. As crianças pedem para ser adoptadas. Pedem uma família. Perguntam: quando é que vêm uns pais para mim? A Segurança Social agora já faz formação aos candidatos a adopção. Esperemos que essa formação venha a modificar algumas expectativas dos candidatos à adopção que pensam que há instituições com prateleiras onde se vão escolher crianças.

Há tendência para procurar meninos brancos e saudáveis?

Se me perguntar sobre os requisitos que pedem as pessoas que se inscrevem para adopção digo-lhe que é muito raro encontrar alguém que diga que é indiferente a cor e a raça. A maior parte quer crianças brancas, pequenas e sem problemas de saúde.

E têm muitas crianças com problemas de saúde?

Tínhamos uma criança com problemas de saúde que ficou em situação de adopção. Ninguém queria a criança porque também era negra. Supostamente nunca iria falar ou andar. Entretanto uma das nossas famílias amigas apaixonou-se e aceitou ficar com a tutela. Ainda há dias a família veio visitar-nos. Não calcula a emoção. Puxa pela perna das calças ao pai e chama-o. Diz como é que o gato faz. Corre tudo de um lado para o outro. Uma criança que supostamente nunca iria fazer nada disto. O que o amor faz. É um caso paradigmático.

Há casos de crianças retiradas a famílias adoptivas?

Existem algumas situações de devolução de crianças, o que é lamentável. Para mim todas essas situações deveriam ser consideradas situações de abandono. É o mesmo que abandonar um filho.


A estudante de psicologia que

foi mãe a tempo inteiro


Foi mãe aos 19 anos e acabou um curso superior já com um filho. Essa experiência ajuda-a na percepção de algumas situações?

As nossas experiências de vida ajudam-nos sempre se quisermos aproveitar alguma coisa delas. Mas não defendo que para se ter sensibilidade em relação a certas coisas seja preciso passar por dificuldades. Há pessoas que mesmo não sendo mães têm tanta ou mais sensibilidade para estes temas pela educação que tiveram. Tirei o meu curso todo já com o meu filho. Não foi fácil. Digamos que tinha a matéria para estudo em casa quando se tratava do desenvolvimento da criança (risos).

Como se defende da crueza das situações com que se depara?

Ando nisto há muitos anos e fui aprendendo a defender-me. É inevitável aprender a distinguir o lado pessoal e o lado profissional. Se nos envolvemos do ponto de vista emocional é difícil tomar decisões racionais mais sensatas.

Os meninos estão aqui 24 horas. Passa cá ao fim de semana?

Tenho uma equipa excelente a trabalhar comigo. Temos uma escala de serviço. As pessoas da minha equipa vêm cá ao fim de semana alternadamente. Venho raramente. Os meninos vêem-me mais como a directora, mas adoram mimos e vir para o colo.

Alguma vez pensou exercer a profissão numa instituição deste tipo?

O meu estágio curricular foi feito no Cebi. Mas ainda eu era miúda – o presidente da fundação lembra-se disso – e já tinha esta queda para andar a ajudar os outros. Ajudei a formar um grupo ecológico e depois um outro grupo de apoio às pessoas mais desfavorecidas na zona de Alverca.

De que forma faziam isso?

Fazíamos recolha de alimentos ou íamos a casa de pessoas que sabíamos que vivam muito mal e ajudávamos a fazer limpeza ou arranjos na casa. Foram experiências interessantes.


Quando o medo fica estampado

nos olhos de uma criança

É presidente da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) do concelho de Vila Franca de Xira. Concorda com a autonomia das comissões?

As CPCJ’s têm uma autonomia relativa. A retirada de uma criança é sempre em consonância com o Ministério Público. Só é aplicada uma medida de acolhimento institucional com o consentimento dos pais. Se os pais não dão consentimento para o acolhimento institucional a CPCJ encaminha o processo para o Ministério Público.

Mas a opinião da CPCJ tem muito peso.

A opinião da CPCJ tem peso porque avalia em várias vertentes e normalmente nunca sozinha, mas com outros parceiros.

E em caso de dúvida?

Na dúvida peque-se por excesso. Imagine que telefonam durante a noite. Há um bebé a chorar e ninguém em casa. Na dúvida leve-se para onde está em segurança.

Há muitos casos desses? Bebés deixados sozinhos em casa?

Há alguns. O que não quer dizer que depois não se possa trabalhar com a família no sentido educacional. Explicar que é perigoso. Por exemplo, no caso do abuso sexual (ultimamente é moda nos casos de litígios de divórcios os cônjuges acusarem-se um ao outro no âmbito do abuso sexual dos filhos, o que quanto a mim deveria ser criminalizado), havendo uma dúvida consistente há que agir. Defendo que tudo tem que ser feito de forma cirúrgica com pinça e bisturi porque estamos a tratar da vida de pessoas.

O que é que leva um pai ou mãe a deixar um bebé sozinho em casa?

Desespero. Imagine alguém que está numa situação socio-económica desesperante. Perde a consciência do que é manter a segurança dos filhos. Uma pessoa alcoólica pode sair e deixar uma criança em casa. Quase sempre envolve questões sociais delicadas. Patologias.

O abuso sexual é a situação que mexe mais consigo?

Sempre que vejo o medo estampado nos olhos de uma criança considero isso gravíssimo. Os maiores medos que já vi espelhados nos olhos das crianças foram situações de abuso sexual e violência por maus-tratos físicos. Violência violenta...

A que nível?

Queimaduras no corpo. Espancamento. Arrancar cabelos. Facas quentes encostadas no corpo. Cigarros. Ferro eléctrico.