in Jornal Público
As estratégias para enfrentar a solidão
Odete, de 80 anos, trabalhou 40 num laboratório de fotografia, e a sua especialidade era corrigir as rugas nos retratos, muito antes da invenção do Photoshop. Mas isto foi depois do casamento, que correu mal.
Tinha 16 anos quando conheceu o Luís, durante a visita a um doente, no hospital. Namorou 5 anos à janela e, aos 21, casou. Logo a seguir descobriu que ele lhe roubava dinheiro, ouro e roupa de cama para sustentar o vício do jogo, no Casino Estoril, e voltou para casa dos pais, no Beco do Maquinez, em Alfama, onde sempre vivera e ainda hoje vive. "Foi o primeiro e o último", decretou o pai de Odete. E ela nunca mais teve ninguém.
Só na morte do pai, em 1975, ela voltou a ver o Luís, que apareceu no funeral, embora com um ar esquisito. "Estás doente?", perguntou-lhe ela. "Não", disse ele. Mas dois dias depois morreu, do coração.
Odete passou a viver fechada em casa. Aliás, sempre viveu. Uma rapariga era educada para isso. Ensinaram-lhe a fazer crochet e a servir o marido. Como este não se mostrou à altura, a vida de Odete ficou sem propósito. Ia trabalhar, e voltava para casa. Desde que se reformou, fica em casa sempre. A mãe morreu e ela está sozinha aqui, onde uma rapariga deve estar.
"Não tenho ninguém. Morreram todos. À noite é difícil. E os fins-de-semana custam a passar", diz ela. Mas o resto do tempo sente-se bem. É ajudada por uma Cooperativa de Solidariedade Social, a Novos Olhares, pela Junta de Freguesia e pela Santa Casa da Misericórdia. Prestam-lhe cuidados médicos e de higiene, e levam-lhe comida todos os dias. Mas nem sempre. Durante a visita do Papa, por exemplo, como houve cortes no trânsito e outros transtornos, Odete ficou sem comer durante dois dias.
As ajudas que há não são suficientes, explica Sónia Albergaria, directora da Novos Olhares. Os serviços que presta são pagos, e nem todos podem pagar. Há idosos que já não conseguem descer e subir as escadas íngremes das suas casas. Muitos são desprezados pelas famílias, outros não querem ser ajudados.
Mas existe, em Alfama, uma grande solidariedade dos vizinhos, e a maioria dos idosos (nas freguesias de Alfama, tal como na de São Nicolau) tem em casa um telefone SOS fornecido pela PT - um dispositivo que se usa no pulso, como um relógio, possui um botão vermelho que, premido, acciona a emergência médica.
"Os idosos desenvolvem estratégias de "coping"", explica Maria José Carvalho, finalista da Licenciatura em Gerontologia Social da Escola Superior de Educação João de Deus. "E muitas vezes têm mais facilidade em adaptar-se a viver sozinhos do que uma pessoa mais nova."
Mas amiúde não estão conscientes dos recursos que têm à sua disposição. A função de um gerontólogo social (profissão que ainda não existe no país) é esclarecer as pessoas, e ensiná-las a envelhecer. Fazer exercício, ter actividades intelectuais, tornar-se útil, viver um dia de cada vez são alguns dos conselhos que dão.
Mas isto é uma aprendizagem que deve começar cedo na vida. "Em Portugal, deixamos sempre tudo para a última hora", diz Maria José. E só depois de sermos velhos vamos aprender a ser velhos. À nossa custa.
Por não terem um propósito na vida, e acharem que estão a mais, os idosos sentem-se vulneráveis. Em Alfama, muitos senhorios de pequenos apartamentos de rendas antigas e baixas querem expulsar os inquilinos. Usam, para isso, variados e sinistros estratagemas. Sónia conhece um caso em que a proprietária se instalou no andar de cima, para passar as noites a arrastar móveis e a fazer ruídos esquisitos. O intuito é que a inquilina se convença de que andam fantasmas no sótão, e se mude para casa dos filhos. Paulo Moura

