21.3.23

“O número de desempregados com deficiência manteve-se, mesmo em pleno emprego”

Pedro Sousa Carvalho, in Expresso

Vanda Nunes é diretora da Valor T, uma agência de emprego da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa que se dedica à empregabilidade de pessoas com deficiência. A agência já tem 150 empresas registadas na plataforma e mais de 1.200 candidatos disponíveis a trabalhar. Ao Expresso SER, Vanda Nunes afirma que este “não é um projeto de coitadinhos, de aleijadinhos e de outros inhos”

Foi há quase dois anos que a Valor T apareceu no mercado para funcionar como uma plataforma integrada de empregabilidade para pessoas com deficiência. Faz a ponte entre os trabalhadores, associações e empresas que, desde 1 de fevereiro, passaram a ser obrigadas a cumprir uma quota mínima de trabalhadores com deficiência (a lei considera para efeitos do cumprimento das quotas pessoas com um grau de incapacidade igual ou superior a 60%).

O Expresso SER foi conversar com Vanda Nunes, diretora da Valor, que lançou este projeto quando foi desafiada pelo provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Edmundo Martinho. A agência de emprego faz a intermediação sem custos para os trabalhadores e para as empresas e na plataforma da Valor T já estão registados mais de 1.200 candidatos e 150 empresas que querem contratar. A Microsoft, a Sonae, o El Corte Inglés e o grupo Pestana são alguns exemplos de empresas que já trabalham com a Valor T.

Quando é que surgiu a Valor T?
Nós lançámos o projeto publicamente no dia 1 maio de 2021, no Dia do Trabalhador.

A data de lançamento no 1º de maio não foi inocente?
Lançámos a 1 de maio porque este é um projeto focado na empregabilidade, focado no direito a que todos, mas mesmo todos, tenham uma oportunidade de trabalho. No 1º de maio ouvimos sempre falar do tema da luta pela igualdade, e achámos que devíamos trazer para a agenda desse dia a empregabilidade de pessoas com deficiência.

E como é que surgiu a ideia deste projeto?
A Santa Casa é uma casa que tem 524 anos e várias respostas na área da deficiência, todas elas mais ligadas à Saúde e à Ação Social. Entre elas o Centro de Reabilitação do Alcoitão e a Escola Superior de Saúde de Alcoitão: uma que forma as pessoas que vão trabalhar na reabilitação e a outra que faz reabilitação. Estou a falar só de dois exemplos. Depois temos ainda a Nossa Senhora dos Anjos que é um centro de reabilitação para cegos, que também é único no país. Ou seja, por aqui passam muitas pessoas que a vida trouxe a diferença.

Quando o provedor Edmundo Martinho [provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa] desafiou-me a construir este projeto, fui visitar todos os equipamentos da Santa Casa com respostas para esta área. Para além destas respostas, a Santa Casa também tem o Centro de Paralisia Cerebral, tem lares onde estão pessoas com deficiência e faltava, para o provedor, esta ideia da ponte.

Ou seja, ponte dessas pessoas com deficiência para o mercado de trabalho.
Sim, a passagem para a vida autónoma. E uma vida autónoma sem trabalho, sem emprego, sem rendimento próprio é muito difícil de se fazer e de se construir. As pessoas têm as suas pensões, mas têm o direito a ter uma oportunidade de trabalho quando a sua condição permite que assim seja. A Santa Casa entendeu poder dar um contributo também nesta frente.

Resumindo, já trabalhavam com pessoas com deficiência e em 2021 resolvem criar esta agência de emprego.
Exatamente. Nós começámos a trabalhar no projeto antes, em 2020. Fomos ouvir as empresas, as pessoas e as associações. Fomos ouvir pessoa com deficiência; nós temo-las na Santa Casa e fomos ouvi-las. Fomos para as empresas que já tinham boas práticas nesta área e perceber o que é que estava a correr bem e menos bem. Fomos ouvir as empresas que não tinham dado passo nenhum e tentar perceber o porquê? Ouvimos muitos parceiros do terceiro setor que trabalham há muito tempo nesta área.

Nós somos tutelados pelo Ministério do Trabalho, portanto há duas instituições que também importava ouvir: o IEFP [Instituto do Emprego e Formação Profissional] que é quem tem competências de implementação de políticas públicas nesta matéria, e o INR [Instituto Nacional para a Reabilitação]. Fomos também ouvir o ICF [nclusive Community Forum] que também já tinha ouvido muita gente e pensado sobre este assunto e o nosso objetivo era partir para a ação. Há muito estudo, há muito observatório, nós queríamos partir para a ação, ou seja, como é que nós podemos ajudar quem já o faz. A ideia de partida é que mesmo em situações de quase pleno emprego, o número de pessoas com deficiência em situação de desemprego mantinha-se.

E foi assim que criaram esta plataforma.

Sim, nós construímos internamente uma plataforma digital que pudesse ser a principal porta de entrada das pessoas com deficiência, das empresas, dos parceiros e de todos os que connosco quisessem contactar. Fizemos isto em boa hora, porque quando começámos a pensar na conceção do projeto não adivinhávamos que vinha a pandemia; mas mesmo com a Covid nós trabalhámos sempre, e pudemos lançar o projeto porque fizemos grande parte do nosso caminho até aqui remotamente.

Construímos internamente essa plataforma, criámos uma metodologia de recrutamento, pensada com um sentido de descriminação positiva que entendemos que era necessária nesta altura. Porquê? Porque um processo de recrutamento de pessoas com deficiência, num país como o nosso em que há ainda um caminho a fazer, importa que seja um processo pensado para cada tipologia de deficiência, ou seja, que cada pessoa possa ver diminuída a diferença na oportunidade do acesso. Depois criámos uma metodologia de recrutamento, que vai desde o registo na plataforma, à admissão dos candidatos, à sua avaliação, e depois da avaliação passamos para uma fase seguinte que nós chamamos internamente de match com as empresas.

Neste momento já temos 1.200 candidatos submetidos na Valor T e todos os meses há novas pessoas a registarem-se.

Quantas empresas é que vocês têm registadas na plataforma?
Neste momento já temos cerca de 150 empresas registadas. Mas temos grupos como a Sonae registados, o que significa que estamos a trabalhar com empresas desde a Zu à Wells, são várias empresas do mesmo grupo. Nós lançámos este projeto em 2021, e a nossa preocupação era perceber se a plataforma era acessível a todas as tipologias de deficiência, ou seja, que ninguém deixasse de usar a plataforma por não ter meios para a usar. Avançámos com diferentes formas para nos contactarem: por email, por telefone, recebemos muitas e muitas chamadas.

Quantas pessoas é que trabalham atualmente na Valor T?

Na Valor T nós começámos com sete pessoas, entre psicólogos, administrativos e pessoal da área social. Neste momento somos mais ou menos o dobro. Continuamos a ser poucos, mas isso é só um tema interno [risos].

Eu tenho uma colega que está comigo desde o primeiro dia da conceção da Valor T, que tem paralisia cerebral, que é a Cátia, uma miúda que é licenciada em Serviços Sociais. Ela já estava na Santa Casa num outro projeto e veio trabalhar comigo. Porquê? Porque ela desta temática sabe muito mais do que eu. Sabe mais do que eu o que temos de fazer para que este projeto tenha resultados. Neste momento está a Cátia e o Pedro [que também tem paralisia cerebral] na área do design digital. E vamos contratar o Sebastião, que é surdo. Quanto mais pudermos enriquecer a nossa equipa com estas diferentes pessoas, melhor conseguiremos fazer o nosso trabalho.

Têm algum balanço feito do número de pessoas que vocês já conseguiram colocar nas empresas?
O nosso primeiro objetivo era que todo o tipo de pessoas, com diferentes tipos de deficiência, conseguisse entrar na plataforma e isso conseguimos. Depois, em plena pandemia, todos os meses inscreveram-se dezenas e dezenas de pessoas, e chegámos ao início de 2022 com cerca de 900 pessoas inscritas na Valor T.

E o que é que fomos fazer? Fomos conhecê-las a todas. E enquanto conhecíamos as pessoas, íamos chamando as empresas para este desafio, ou seja, para as empresas se registarem na Valor T. Das 150 empresas que estão inscritas na plataforma, há umas que nunca fizeram uma contratação, e são a grande maioria, e estão connosco precisamente por causa disso.

Nós entrevistámos mais de 900 pessoas em cerca de oito meses de trabalho, uma grande parte remotamente. Começámos a conhecer as pessoas, a trazer as empresas, e em julho de 2022 fizemos um ponto de situação: já tínhamos enviado para as empresas cerca de 327 nomes, para que elas puderem conhecer o perfil e depois decidir quem gostariam que fosse às entrevistas. Com algumas empresas ainda estamos a fazer um trabalho de consciencialização e das 150 empresas registadas, neste momento, estamos a falar de cerca de 30 empresas que já contrataram pessoas.

Das 327 pessoas que enviámos para as empresas, as empresas quiseram conhecer cerca de 170. E a boa notícia é que destas 170 pessoas que as empresas quiseram conhecer, estamos com mais de 100 contratadas. E estamos a acompanhar mais 80 pessoas além destas porque há pessoas que vieram para a Valor T e já estavam a trabalhar, mas que pretendiam outro tipo de trabalho mais condizente com as suas qualificações e desejos. Portanto, nós neste momento estamos a acompanhar cerca de 180 pessoas.

Depois de as colocar na empresa vocês mantêm o acompanhamento à pessoa?
Mantemos o acompanhamento cerca de 18 meses depois.

Vocês fazem este trabalho de colocação sem cobrar?

É isso mesmo, ou seja, este é um contributo completamente financiado pela Santa Casa, para estar ao lado das associações.

Nem às empresas, nem às pessoas?

Neste momento não. Nós quisemos iniciar o nosso trabalho como um contributo da Santa Casa, quer para as pessoas, quer para as empresas para, se me permite a expressão, fazer o caminho e destruir muros que são criados ou por receio, ou por desconhecimento, ou por falta de apoio.

“A lei das quotas para contratação de pessoas com deficiência idealmente não deveria existir, mas o facto de existir, ajuda”

O “T” de Valor T é de trabalho?
É também de trabalho. Mas começou a ser “T” de talento e “T” de transformação.

Estas 900 pessoas que identificaram são pessoas que vieram de outros serviços da Santa Casa ou são pessoas que simplesmente se inscreveram na vossa plataforma?
Acaba por ser as duas coisas. Há utentes da Santa Casa que se registaram na Valor T, mas a grande maioria são outras pessoas do norte ao sul do país que se registaram. Neste momento já temos 1.200 candidatos submetidos na Valor T e todos os meses há novas pessoas a registarem-se.

O “T” também é de tempo. É o tempo que cada pessoa e que cada empresa precisa para este processo. Nós costumamos dizer: “Isto não é um projeto de coitadinhos e de aleijadinhos e de outros inhos” desta natureza. É um projeto para apoiar e para contribuir para que cada pessoa se sinta verdadeiramente cidadão, na plenitude dos seus direitos e deveres.

A lei passou a impor quotas obrigatórias de trabalhadores com deficiência. De falar com algumas empresas, fiquei com a sensação que algumas estão com dificuldade em cumprir essa quota porque não há trabalhadores disponíveis. Esta ideia é verdadeira?

Nós aparecemos precisamente para tentar fazer melhor essa ponte, ou seja, nós ao falar com as empresas ouvimos exatamente o que o Pedro ouviu, mas depois vamos ao IEFP e eles têm mais de 15 mil pessoas com deficiência inscritas em situação de desemprego. Foi exatamente isso que nos fez dar este contributo.

Dou-lhe o exemplo de uma empresa que até recebeu uma distinção, pelo próprio IEFP, de excelência. Perguntámos ao El Corte Inglés como é que vocês fazem o recrutamento? Eles responderam que vão falar com a associação A, com a associação B, com a associação C. E o que nós procurámos com esta plataforma foi ser uma plataforma integradora. Por falar em Espanha, também somos parceiros da ONCE [Organización Nacional de Ciegos de España] que é uma fundação muito conhecida e tem um trabalho muito conhecido nesta área.

Mas há oportunidades de trabalho para as quais não existem assim tantas pessoas, mas isso deve-se a fatores a montante. Estou a falar, por exemplo, da área de programação: toda a gente procura muito por IT [Tecnologia de Informação]. Se olharmos para trás, percebermos que igualdade de oportunidades, desde logo na escola, de pessoas com deficiência, a chamada escola inclusiva, é um trabalho que se tem vindo a fazer com tempo.

É essa a explicação para esta discrepância entre os 15 mil que diz estarem registados no IEFP e a queixa das empresas que dizem não encontrar esses trabalhadores?

Por isso é que nós quisemos pensar num projeto de recrutamento específico que permitisse reduzir esse gap. Há pessoas que estão mais do que prontas para integrar o mercado de trabalho, mas existem outras que para integrar o mercado de trabalho, naquilo que pretendem, têm de ser capacitadas para isso. E o que estamos a desafiar as empresas é para estarem connosco não só como entidades empregadoras, mas também para nos ajudarem no sentido de capacitarem essas pessoas.

Com estágios, por exemplo?
Sim, com estágios, com formação, mas em contexto de trabalho. Aquela formação à porta fechada, longe do local de trabalho, em que as pessoas estão meses a ter uma formação sem terem uma experiência de trabalho é o que nós tentamos evitar e tentamos fazer de diferente.

Vou dar-lhe um exemplo prático. Quando eu falo com uma empresa, como por exemplo, uma Microsoft com quem estamos a trabalhar os primeiros passos de uma parceria, ou outra empresa de IT, quando falo com elas pergunto: “Estão disponíveis para receber dez candidatos nossos para os formar?” Mesmo que depois não consigam empregar todos, estão a ajudar essa pessoa na construção do seu currículo e depois é completamente diferente quando vão à procura de trabalho.

Vou dar-lhe outro exemplo, do grupo Pestana. A Valor T apresentou-se a mais de 150 pessoas, sobretudo diretores de hotéis presentes em Portugal e fora de Portugal. Trouxemos uma pessoa da ONCE de Espanha onde a fundação tem um grupo hoteleiro onde mais de 60% das pessoas empregadas têm deficiência. É um trabalho incrível que esta fundação tem, mas ela já existe há mais de 90 anos. Fizemos este trabalho com o grupo Pestana de apresentação, de sensibilização, e o grupo já empregou várias pessoas e é isso que queremos fazer com outras empresas.

Qual é sua opinião em relação ao tema das quotas obrigatórias?
As leis das quotas, quando as analisamos, temos de perceber sempre qual é o contexto da sua origem e é um bocadinho como a lei das quotas de género; acho que nenhuma mulher se sente bem com a existência da lei das quotas. Às vezes serve para dar aquele empurrão que eu chamaria de um mal necessário. A lei das quotas para contratação de pessoas com deficiência idealmente não deveria existir, mas o facto de existir – e nós percebemos isso pelo número de empresas que se regista na Valor T – ajuda. Costumamos dizer que não se mudam mentalidades por decreto, mas isso ajuda um bocadinho. Que ao menos a lei sirva para mostrar que uma pessoa com deficiência é uma pessoa como qualquer um de nós: tem o seu talento, tem a sua disponibilidade e dedicação para trabalhar.

O Pedro (na foto em baixo), que é um colega que trabalha connosco e que vive em Viseu, está a trabalhar com a Valor T a partir de lá, disse-me um dia: “Vanda, eu não quero ser pensionista, eu quero ser contribuinte. Eu quero pagar os meus impostos e para isso eu quero trabalhar, quero contribuir para a construção do país com o meu trabalho”. Isso que ele me disse marcou-me para sempre.