21.3.23

Supermercados encostados à parede para baixar preços

Textos Joana Pereira Bastos e Raquel Albuquerque, infografia Carlos Esteves, in Expresso

Se os preços dos produtos alimentares essenciais não baixarem nas próximas semanas, o Governo vai atuar. Estão a ser estudadas alterações à lei para fixar um limite para as margens de lucro

As principais cadeias de supermercados em Portugal estão sob alta pressão. Depois de, na semana passada, ter sido lançada pela ASAE uma megaoperação nacional para detetar casos de especulação, esta quarta-feira à tarde o primeiro-ministro chamou a São Bento o diretor-geral da Associação Portuguesa das Empresas de Distribuição (APED) para pedir explicações sobre o aumento do preço de vários produtos alimentares, sobretudo aqueles em que foram apuradas margens de lucro brutas acima dos 40%. António Costa quis saber a justificação, um a um, para o custo de alimentos como as cebolas, as cenouras, as laranjas, os ovos ou as febras de porco. E o Expresso sabe que o Governo vai mesmo atuar, se os supermercados não baixarem os preços nas próximas semanas.

O Executivo está neste momento a estudar várias medidas e não exclui, por exemplo, vir a fixar — mesmo que excecionalmente e com carácter temporário — um limite para as margens de lucro de produtores, indus­triais e distribuidores. Até 1984, a lei estipulava um teto máximo de 15%, mas desde então não há qualquer valor definido, o que dificulta o combate à especulação, reconhece o inspetor-geral da ASAE. “Para a ação inspetiva, seria mais linear se houvesse margens predefinidas”, diz ao Expresso Pedro Portugal Gaspar.

Numa altura em que milhares de famílias enfrentam cada vez mais dificuldades para assegurar a sua alimentação básica, o responsável admite que a fixação de uma margem de lucro neste sector pode ser feita como “medida de exceção”, tal como aconteceu durante a pandemia no caso das máscaras e do gel — em que a margem de lucro foi limitada a 15% —, embora ressalve que “essa avaliação é claramente do plano político”.

Além da especulação, autoridades estão a investigar eventual concertação de preços entre os supermercados

Mais recentemente, em outubro de 2021, o Governo aprovou um decreto-lei que permite fixar as margens de lucro máximas na comercialização de combustíveis, impondo limites sempre que se verifiquem aumentos injustificados. O Executivo nunca chegou, no entanto, a usar esta “arma”, já que naquele sector os preços baixaram entretanto. Mas o mesmo não está a acontecer no caso dos alimentos.

Esta semana, o preço de um cabaz alimentar básico voltou a bater novo recorde, custando mais 26% do que há um ano, segundo a Deco/Proteste. A taxa de inflação dos produtos alimentares atingiu em janeiro 21,1% o valor mais elevado da Europa Ocidental e que representa mais do dobro do valor da inflação geral registada no país. “Queremos uma explicação cabal sobre porque é que isso acontece”, frisa o secretário de Estado do Comércio, Nuno Fazenda (ver entrevista).

Contudo, existe a expectativa de que a pressão pública colocada nas últimas semanas sobre os supermercados seja suficiente para levar o sector a baixar os preços, sem serem necessárias mais medidas. Ao Expresso, o diretor-geral da APED lamenta que o Governo e a ASAE estejam a fazer dos supermercados o seu alvo e considera “inaceitável que se esteja a lançar uma suspeição” sobre a distribuição, sem sequer estar concluída uma análise a toda a cadeia, incluindo a produção e a indústria alimentar, onde a inflação até é mais alta do que no retalho.

“Não somos nós que estamos a provocar este aumento dos preços”, frisa Gonçalo Lobo Xavier. “É toda a cadeia agroalimentar que está a ser impactada pela subida dos custos de produção”, como energia, combustíveis, fertilizantes ou rações. O diretor-geral da APED garante que a concorrência entre os supermercados é tão grande que “todos já fazem um esforço diário para conseguir os preços mais baixos”. “Não sei se é possível fazer um esforço ainda maior”, diz.

O EXEMPLO FRANCÊS

Lá fora, vários países já estão a tomar medidas para conter a inflação dos produtos alimentares. Na Grécia, o Governo obrigou os supermercados a ter pelo menos um produto de cada categoria.

O modelo francês, que passa pela negociação e não pela imposição de limites às margens de lucro, é visto em Portugal como um caminho possível, tendo sido discutido na reunião entre a APED e o primeiro-ministro. “É uma medida interessante. Estamos disponíveis para encontrar soluções”, diz Lobo Xavier.

Já a redução do IVA ou a fixação de preços estarão, à partida, postas de parte. No caso do IVA, a experiência feita com alguns produtos, como as conservas de peixe, que baixaram de 23% para 6%, não resultou em qualquer benefício para os consumidores, uma vez que o preço final não só não baixou como até aumentou 4%.

Para já, no entanto, o foco do Governo está apenas no reforço da fiscalização. Foram já instaurados 51 processos-crime por especulação, sobretudo devido a situações de desvio entre o preço cobrado nas caixas dos supermercados e o anunciado nas prateleiras, com diferenças que chegaram aos 70%, e pela desconformidade no peso de produtos embalados.

Além da especulação, estão também a ser investigadas situações de eventual concertação de preços pela Autoridade da Concorrência (AdC), que esta semana foi igualmente convocada pelo primeiro-ministro. Nos últimos anos, foram abertos 15 processos a cadeias de supermercados, tendo sido aplicadas multas que ascenderam a €676 milhões. “As práticas sancionadas foram essencialmente de alinhamento de preços entre distribuidores, através de um fornecedor comum, sendo que todos beneficiavam com este alinhamento, com exceção do consumidor”, especifica a AdC.

No caso dos produtos em que foram agora identificadas pela ASAE margens de lucro brutas médias acima de 40%, como as cebolas, as autoridades vão apurar se a margem é semelhante entre as três maiores cadeias de distribuição, o que, a confirmar-se, poderá indiciar uma eventual concertação de preços.

Ressalvando que existe uma forte concorrência neste sector e que o alinhamento de preços não é comparável ao das gasolineiras, o diretor-geral do Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração Geral do Ministério da Agricultura explica que a grande concentração que existe no retalho — os quatro maiores grupos detêm mais de 70% do mercado — dá aos supermercados um enorme poder negocial. “Esta concentração pode levar a situações de oligopólio”, diz Eduardo Diniz.

Muitos produtores acusam a distribuição de esmagar as suas margens de lucro, impondo-lhes preços de aquisição de produtos que praticamente não cobrem os custos de produção. Já os supermercados garantem que em muitos bens, como o leite, têm uma margem de lucro zero, porque o preço subiu exclusivamente devido ao aumento imposto pelos produtores.

Seja qual for a origem da escalada de preços, a verdade é que, de semana para semana, o cabaz básico tem estado a aumentar, tornando-se inacessível para cada vez mais famílias.

SALMÃO É o peixe que tem estado quase sempre entre os produtos com maiores subidas de preço. Segundo a Deco, o quilo custa agora mais €6 do que há um ano. Só desde janeiro subiu €3,10

CENOURA Como noutros produtos hortícolas, a subida do custo dos fertilizantes refletiu-se no preço de venda ao público, com um aumento de 59% (mais €0,47 do que há um ano). É um dos produtos onde a ASAE identificou uma margem de lucro bruta mais elevada, chegando aos 45%

LARANJA O produtor está a vender o quilo, em média, a €0,40. E o embalador cobra o dobro (€0,80 a €0,90) à distribuição. Nos supermercados é vendida, em média, a €1,49. É o segundo produto onde a ASAE identificou maior margem de lucro bruta (48%)

AZEITE Foi um dos bens alimentares cujo preço começou a subir logo depois do início da guerra e é um dos dez que mais aumentaram. Por garrafa, paga-se agora em média €6,91, mais €2,23. É uma subida de 48%. Só na última semana ficou €0,42 mais caro

LEITE Segundo a Deco, um pacote custa agora, em média, mais €0,30 do que há um ano. É uma subida de 43%. No caso do leite, os supermercados dizem ter margem de lucro zero, alegando que a subida sentida no consumidor se deveu apenas ao aumento definido pelos produtores

FEBRAS É um dos produtos do porco mais consumidos e tem margem de lucro bruta de 45% nos supermercados. Os produtores dizem ter aumentado em 60% o preço a que vendem os animais aos matadouros, mas estes dizem estar a pagar mais 107% do que há um ano. Contas feitas, os consumidores pagam agora quase mais um euro (22%) por quilo

AÇÚCAR Um quilo chega, em média, a custar €1,69, mais 56% do que em março do ano passado. Esse salto põe o açúcar na lista dos dez produtos que mais encareceram

OVOS O custo das rações e a escassez provocada pela gripe das aves (um surto nas duas maiores explorações nacionais obrigou ao abate de milhares de animais) fizeram disparar em 35% o preço (mais €0,42). A margem de lucro bruta nos supermercados é de 43%

BATATA Produto básico na mesa dos portugueses, subiu 40% no último ano, custando agora, em média, €1,28 por quilo, segundo as contas da Deco/Proteste. São mais €0,37

CEBOLA É o produto em que a ASAE identificou a maior margem de lucro bruta média (52%). O quilo custa agora mais €0,68 do que há um ano, o que representa uma subida de 64%. É um dos maiores aumentos

POLPA DE TOMATE É um dos produtos que mais aumentaram, tendo quase duplicado. Custava €0,79 há um ano e agora o preço médio é de €1,49. É uma subida de 87%

ALFACE O custo dos fertilizantes disparou, levando os produtores a aumentarem em 150% o preço de venda aos supermercados. Uma crise de produção no Reino Unido obrigou o país a ir ao mercado internacional, aumentando a procura e os preços. Segundo a Deco, o preço por quilo saltou de €1,96 para €3,22 (mais 64%)

FARINHA Há um ano, foi um dos primeiros produtos a ficarem mais caros, devido ao impacto da guerra na exportação de cereais. Um quilo já não está longe dos €2 (€1,83), o que se traduz num salto de 31%


ENTREVISTA

Nuno Fazenda

Secretário de Estado do Comércio

O que é que o Governo planeia fazer para travar a subida do preço dos alimentos?

O Governo está a promover uma fiscalização intensa em duas frentes: a especulação, que passa pelo desvio dos preços cobrados nas caixas dos supermercados em relação aos que estão indicados nas prateleiras, e a análise da composição dos preços, confrontando a fatura do preço a que o supermercado comprou [o produto] com o preço a que está a vender ao público, para analisar as margens de lucro brutas. E depois temos de ver o que são as margens de lucro líquidas. Estamos a alargar essa análise a toda a cadeia agroalimentar, até ao produtor, para podermos agir com mais eficácia.

Admitem tabelar o preço de alguns produtos essenciais ou fixar um teto máximo para as margens de lucro?

Depois da fiscalização o Governo tomará as medidas necessárias, e estão todas em aberto. Não há nenhuma que se exclua e podem passar por iniciativas de natureza legislativa.

Até 1984, a lei definia um limite de 15% para a margem de lucro líquida, mas desde então não existe nenhum limite.

Sim, mas quer o Governo quer a Assembleia da República podem desenvolver legislação para reforçar a defesa dos consumidores. É uma hipótese que não excluímos.

A partir de que margem de lucro é que vão agir por considerarem que é ilegítima?

Essa percentagem será definida em função dos dados que recolhermos e da análise que está a ser feita neste momento.

E admitem reduzir o IVA de alguns produtos alimentares?

Em Espanha, o que sabemos é que o [corte do] IVA foi absorvido pelos operadores. Os consumidores não tiveram qualquer benefício.

Como explica que a inflação dos bens alimentares em Portugal seja mais do dobro da inflação geral?

É isso que queremos saber e é por isso que estamos a investigar. Queremos uma explicação cabal por parte de todos os envolvidos na cadeia agroalimentar sobre por que é que isso acontece. Há produtos que aumentaram 40%, 50%, 60% e 70%. Este é um desafio que convoca todos: o Estado, no seu papel de regulador e fiscalizador, mas também os operadores, a nível da sua responsabilidade social.

A ASAE tem as ferramentas necessárias para atuar no caso das margens de lucro?

A ASAE dispõe de meios, mas o Estado tem também outras instituições que podem ser mobilizadas para esta temática. Não deixaremos de mobilizar todos os meios, instituições e recursos humanos para fazer face a este desafio do aumento do preço dos bens alimentares. O Governo está a agir e irá agir ainda com maior intensidade.