1.
A notícia mais importante desta semana não teve grande repercussão mediática.
As caixas de comentários dos media não se encheram com opiniões, indignações, observações sábias ou ignorâncias atrevidas.
Mas a notícia era decisiva e ideológica.
Ideológica por que a existir uma diferença entre esquerda e direita esta se faz da procura de uma ideia de "Igualdade".
Igualdade de oportunidades.
Igualdade no acesso à informação.
Igualdade até no modo como o Estado pode potenciar o sonho, a ambição, a vontade de ser mais e de conquistar objetivos por mais longínquos que pareçam.
2.
Ser pobre não é apenas um problema de sobrevivência diário. Não é apenas ir para a cama com o frigorífico vazio ou acordar sem saber o que o dia oferecerá.
Ser pobre é estar condenado a subir montanhas toda a vida.
Ser pobre é não ter condições para que os filhos possam ter bons resultados, mesmo que sejam brilhantes, mesmo que desejem agarrar o mundo e fazê-lo seu.
Ser pobre é não poder ter livros em casa, é não poder pagar explicações - sabendo que nos melhores cursos as entradas para a universidade se definem às décimas.
Ser pobre é não ter um lugar para estudar, não saber o que é o silêncio, é acordar de madrugada para apanhar os transportes e chegar à escola com a cabeça adormecida.
Ser pobre é morar em casas sem condições, dormir em camas com dois e três, acordar com o som de madrugadas violentas e viver todos os dias com o peso de que o importante é "fazer-se à vida".
3.
Por isso, vieram-me as lágrimas aos olhos com a notícia.
"O novo contingente fez duplicar o acesso ao ensino superior de alunos muito pobres", alunos do Escalão A, filhos de famílias que precisam do Estado para comer e para o mais básico dos básicos. Filhos de famílias que ganham menos de 3 mil euros por ano, miúdos sem dinheiro para comprar roupa.
Uma notícia maravilhosa.
2800 alunos e alunas muito pobres puderam entrar no Ensino Superior.
E sabem uma coisa?
A diferença não é grande entre esses quase 3 mil e os que entraram no contingente normal.
Alguns entrariam de qualquer maneira, mesmo em medicina. Houve alunos muito pobres a entrar com médias superiores a 18.
Outros não entrariam sem este incentivo, mas desenganem-se os que eventualmente acham que as suas notas foram muito abaixo da média dos que entraram.
Não, não foram.
Menos três ou quatro décimas, nos piores casos.
4.
Nasci de duas famílias, mas vivi sempre com a minha mãe e avó materna. Uma família pobre.
Eu era um privilegiado, tinha acesso a livros e sabia o que era viver bem, ouvir música, ter espuma no banho de imersão e provar comidinha boa. Sabia-o pela casa do meu pai e da minha tia paterna.
Não me posso queixar.
Mas ainda assim não tinha as condições para atingir os resultados dos meus amigos no Liceu Pedro Nunes, o lugar onde fui, ainda assim, mais feliz.
Tentava disfarçar as roupas gastas, comia sandes de mortadela por custarem sete e quinhentos. E tinha uma lábia tão grande que pus os ricos a comer mortadela por tê-los convencido de que eram bem melhores do que as de queijo.
Eles podiam ter o que eu não podia.
E nos círculos mais elitistas era olhado de lado porque não pertencia ali - podia ler e escrever bem, podia ser esperto e retórico, podia ser um bom desportista, alto e com aspeto de "beto", mas faziam-me sentir que não era dali, que estava emprestado ali, que por mais que me esforçasse, por mais que fosse brilhante, nunca sairia da casa pobre onde estava condenado a viver para todo o sempre.
Impossível esquecer a conversa com uma "amiga" rica. Lembro-me de ela, visivelmente espantada, me dizer, à laia de elogio, que disfarçava bem a minha condição por ter uma carinha de príncipe. Que se eu quisesse podia levar muitas ao engano.
Que felicidade a notícia!
2800 miúdos pobres entraram na universidade.
Senti-me vingado por lhes poder dizer que ninguém está condenado a nada.
Que eles e elas são tão bons como os melhores.
Que eles e elas pertencem ao lugar onde quiserem pertencer.