1.9.23

Os sem-abrigo e o jogo do empurra

António Capinha, opinião, in DN


Recuámos tão atrás quanto os meios digitais nos permitem para analisarmos as declarações políticas sobre os sem-abrigo. Desde 2015 que a nossa busca se revelou profícua em afirmações de protagonistas políticos sobre a urgência de acabar com os sem-abrigo em Portugal. António Costa, em 2015, então Presidente da Câmara de Lisboa, manifestava a necessidade de "devolver dignidade aos sem-abrigo".

O tema foi estando presente, sucessivamente, na agenda mediática, com afirmações do socialista Vieira da Silva, então responsável máximo no ministério da Solidariedade, quando falava da "integração dos sem-abrigo na sociedade". Marcelo Rebelo de Sousa foi, mais tarde, o paladino deste combate no conveniente período natalício de 2018 quando afirmava que "estar em cima da realidade social dos sem-abrigo era muito importante".


Pois bem! Vejamos então os resultados, actuais, desta sucessiva prosápia política.

Em 2018, números de Lisboa, havia 2473 cidadãos sem um tecto para dormirem. Em 2022, ainda na capital, existiam 3138. O número dos sem-abrigo em 2021, em todo o país, era de 9604, sendo que um terço "vive" em Lisboa.


A mesma Lisboa onde, em 2022, o número de pessoas sem-abrigo ascendia aos 394. Para constatar esta realidade basta, aliás, percorrer algumas ruas da cidade.

O orçamento dedicado ao assunto, apesar de ter aumentado ao longo dos anos, tem-se revelado, manifestamente, insuficiente. Em 2022, em Lisboa, foram gastos 5,7 milhões de euros com a protecção dos sem-abrigo. Em 2019 esse valor tinha sido de 1,6 milhões de euros, tendo ascendido aos 4,2 milhões de euros em 2021.


Com este panorama ficámos surpreendidos com a notícia da situação de braço de ferro que existe entre o Governo e a Câmara de Lisboa a propósito de necessidade de encontrar, em Lisboa, um espaço alternativo para albergar, provisoriamente, os sem-abrigo que vivem, actualmente, no Quartel de Santa Bárbara em Arroios. Nesta velha unidade militar da GNR, em boa hora, vão ser construídos 240 fogos de renda acessível, pelo que o espaço deverá ser desocupado até 30 de Setembro. Para o efeito, Carlos Moedas pediu ao Executivo de António Costa a cedência de um espaço que recebesse (repito, provisoriamente) os sem- abrigo do Quartel de Santa Bárbara. A resposta, sob a forma de um rotundo não, veio da ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho.

Ó vida! Mas será que no dimensionado património imobiliário de Estado não haverá um espaço para receber (digo outra vez, provisoriamente) os sem-abrigo do Quartel de Santa Bárbara? Então Sra. ministra? Procurou bem? A Sra. ministra acha mesmo que responder à Câmara de Lisboa "que a situação dos sem-abrigo é da responsabilidade das entidades locais" é uma resposta que se dê para uma questão desta gravidade?


É no mínimo lamentável que, para um assunto com esta sensibilidade social, não exista um patamar de entendimento entre a Câmara de Lisboa e o Governo. Já sabemos que pactos de regime e plataformas de entendimento não é coisa que esteja no ADN dos partidos que nos representam. Mas caramba! Trata-se de dar um tecto a concidadãos nossos que dele necessitam.

Talvez não seja má ideia, então, a Sra. ministra Ana Mendes Godinho reler o discurso de tomada de posse do primeiro-ministro António Costa em Outubro de 2019, quando este prometeu uma "maioria de diálogo. De diálogo parlamentar, político e social".

E, assim, colocar em prática este salutar princípio político que António Costa fez questão de escolher para o solene momento da sua tomada de posse.

Esta questão dos sem-abrigo é, deste modo, uma excelente oportunidade para materializar as promessas políticas do Governo e acabar com o jogo do empurra numa questão tão prioritária como dar um tecto a quem precisa dele.