Por Alexandra Campos, in Jornal Público
Quando a reforma dos centros de saúde arrancou, 750 mil portugueses não tinham médico de família. Com as reformas antecipadas, a situação pode piorar este ano
Estava escrito que ia acontecer. O problema é que aconteceu três anos antes do previsto. Com o anúncio da mudança das regras da reforma para a função pública, centenas de médicos, sobretudo médicos dos centros de saúde, têm inundado a Caixa Geral de Aposentações (CGA) com pedidos de saída antecipada. É a própria reforma dos cuidados de saúde primários, a jóia da coroa do Governo socialista, que pode ficar em causa, avisam os mais pessimistas.
Com as faculdades a abarrotar de estudantes de Medicina, estava tudo planeado para que em 2013 os centros de saúde conseguissem finalmente dar um médico de família a cada português. Agora, se os cerca de 400 médicos dos centros de saúde que até meados de Março pediram a aposentação não aceitarem o regime especial aprovado no dia 18 de Março em Conselho de Ministros (ver caixa), de uma assentada mais 600 mil portugueses ficam "a descoberto", calcula Rui Nogueira, vice-presidente da Associação Portuguesa de Médicos de Clínica Geral. Cada clínico tem a seu cargo 1500 utentes, em média.
Mesmo contando com os novos especialistas que vão começar a trabalhar em meados deste ano (cerca de 100), "perde-se aquilo que se tinha ganho com a reforma dos centros de saúde, em termos de acessibilidade". É que, somados estes novos utentes que ficam a descoberto aos que ainda hoje continuam sem clínico assistente ("400 mil"), o número de pessoas sem médico de família duplicaria este ano (800 mil). Um cenário mais grave do que existia quando a reforma dos cuidados de saúde primários arrancou, em 2006. Nessa altura, 750 mil pessoas não tinham médico atribuído.
Formação em risco
E há outro problema a considerar: grande parte destes clínicos são orientadores de formação dos internos da especialidade, que começam a chegar aos centros de saúde em cada vez maior número, graças ao aumento das vagas promovido nos últimos anos. "Além do rombo na assistência à população, há o rombo na formação [de novos especialistas]", lamenta Isabel Caixeiro, do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos.
Foi a antecipação da convergência na idade da aposentação com o sector privado (65 anos) de 2015 para 2012 e o aumento das penalizações de 4,5 para 6 por cento ao ano que gerou a preocupante corrida à CGA - em apenas dois meses os pedidos suplantaram o total de 2009. E a corrida continuou. Na região Norte, se em 2009 foram concedidas 41 reformas, até ao final de Março deste ano o número de pedidos já tinha mais do que triplicado - 135. No Centro, perto de 130 médicos também meteram os papéis na CGA.
A nível nacional, até à semana passada, enquanto os sindicatos falavam em 600 pedidos de aposentação antecipada, o Ministério da Saúde confirmava a existência de 500. Oitenta por cento são médicos de família, apesar de também haver problemas em algumas especialidades hospitalares (ver texto ao lado).
O coordenador da Missão para os Cuidados de Saúde Primários, Luís Pisco, que há duas semanas admitia que seria uma "catástrofe" se 300 médicos se reformassem de uma vez só, agora desdramatiza a situação. Sem querer "alinhar nas teses catastrofistas", e apesar de reconhecer que este problema "é lamentável e pertubador", entende que "não são 300 nem 400 médicos que vão provocar o colapso do SNS".
Jovens colocados
Além disso, acredita que muitos ainda vão recuar e nota que este ano começam a trabalhar novos especialistas. O Ministério da Saúde já anunciou a entrada de 97 novos médicos, que concluíram a formação em Fevereiro. Nunca um processo de colocação de jovens médicos foi tão rápido em Portugal. E no Verão sairá uma nova fornada que deve começar a trabalhar apenas no final do ano.
Entretanto, a confusão está instalada. A CGA vai demorar meses a avaliar os pedidos e até lá os médicos que pediram para sair continuam ao serviço. Resta saber se o que foi anunciado vai convencer a maior parte a retroceder. Os dirigentes sindicais estão convencidos de que não, porque a proposta ainda é pior do que o actual regime em vigor, ao retirar a hipótese de ficarem com um terço da reforma. Mas os responsáveis políticos acreditam que isto bastará, até porque muitos médicos não fizeram bem as contas. A alta-comissária da Saúde, a médica Maria do Céu Machado, acredita também que alguns vão recuar e apela ao "dever de cidadania" dos colegas. "Serem recontratados [como pretendem os sindicatos] é quase imoral, porque estamos em crise financeira."
O que faz correr estes médicos que pedem a reforma antecipada, contando com penalizações que podem ser superiores a 40 por cento? Obviamente, a mudança de regras. Mas não só. Alguns dizem-se fartos da falta de condições de trabalho. Como Adelaide Lima, do Centro de Saúde de Campanhã, que aos 56 anos se apressou a apresentar o pedido em 29 de Janeiro. Cá fora, tem outras propostas de trabalho.
"Este problema começou há 20 anos atrás", explica Rui Lourenço, presidente da Administração Regional de Saúde do Algarve, onde, desde Outubro de 2009, 30 médicos de família e de saúde pública pediram a reforma (16 este ano).
Sem oferta de médicos especialistas na Europa comunitária, a solução passa pela contratação de aposentados e de outros estrangeiros. E estas eram justamente duas das recomendações do "plano de contingência" sugerido pelos autores do Estudo de Necessidades Previsionais de Recursos Humanos em Saúde, concluído em 2009, e onde se traçava um diagnóstico reservado para a substituição geracional dos médicos de família. Até 2020 mais de metade saem e, mesmo com a afectação de 30 por cento das vagas no internato da especialidade, o número de novos clínicos será insuficiente. Por isso, propunha-se um ataque em várias frentes: para além da contratação de mais estrangeiros e aposentados, o recurso a portugueses formados no estrangeiro e incentivos ao adiamento das reformas. Nada de novo, portanto.