Patrícia Carvalho, in Público
Ao contrário do que acontece noutros países, os dados em Portugal não apontam para o aumento de suicídio entre os jovens. Em 2020 houve 10, em 1991 foram 35.
As informações mais recentes sobre a saúde mental dos nossos jovens são preocupantes. Quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) nos diz que um em cada quatro adolescentes portugueses já se auto-lesionou e que de 2018 para 2022 a sua percepção de infelicidade subiu de 18,3% para 27,7% ou quando um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos indica que 23% dos jovens já tiveram pensamentos ou actos suicidas, a questão é inevitável: há mais suicídios de adolescentes em Portugal? A resposta é não, mas os dados não são muitos. E há factores que não nos permitem sossegar: indícios de que são cada vez mais jovens os que pedem ajuda por terem pensamentos suicidários. E um certo sentido de “desesperança” que é referido por vários especialistas.
“Temos de voltar a criar confiança no futuro”, diz a psicóloga clínica e investigadora Margarida Gaspar de Matos, sobre os miúdos que lhe chegam ao consultório com pensamentos suicidas e que apresentam alguns sinais que a preocupam. “Já estávamos à espera, mas o que sinto é que me chegam miúdos mais novos, com 11, 12 anos, o que é muito preocupante. E outra coisa, que decorre da casuística da consulta, é que me parecem anestesiados. Não é um desespero, é uma desesperança, uma falta de se apegarem à vida, quase como se estivessem a flutuar por cima das coisas”, diz.
Inês Rothes, psicóloga e investigadora do Centro de Psicologia da Universidade do Porto, confirma que a idade parece estar a recuar, quando se fala destes problemas. “Parece, de facto, que há uma tendência para estes comportamentos se verificarem cada vez mais cedo, com outro fenómeno que se relaciona, que são os comportamentos auto-lesivos. É uma percepção que vem quase do senso comum e de algumas questões que vêm da clínica, dos colegas que atendem crianças muito pequenas. É senso comum dizer-se que a adolescência começa cada vez mais cedo, por isso não é de estranhar [esta mudança], embora não haja ainda certezas absolutas”, diz, insistindo: “É preciso termos em conta que, ainda assim, se trata de um fenómeno raro e precisamos de janelas temporais muito grandes para falar de alterações, porque senão podemos estar a falar de flutuações do acaso.”
Dados só até 2020
Em Portugal, os dados sobre suicídios entre os mais novos disponíveis no Instituto Nacional de Estatística (INE) indicam que ao contrário de outros países, não há um aumento de casos. Segundo o INE, entre 1991 e 2020, suicidaram-se 469 crianças e jovens portugueses, entre os 5 e os 19 anos. Desagregando por faixas etárias, seis destas mortes, a última das quais em 2014, foi de crianças entre os 5 e os 9 anos, 52 de crianças entre os 10 e os 14 anos e as restantes 411 de jovens entre os 15 e os 19 anos.
Os anos mais recentes não denotam qualquer aumento - em 2020 registaram-se 10 suicídios apenas na faixa etária mais alta, quando em 1991, o pior dos anos analisados, tinham sido 31, mais quatro na faixa etária dos 10 aos 14 anos. Os dados indicam ainda que há muitos mais rapazes do que raparigas a morrer por este meio: dos 469 casos nos 29 anos analisados pelo INE, 313 (quase 67%) eram de crianças ou jovens do sexo masculino.
Ainda assim, estes dados, garante Inês Rothes, colocam Portugal em linhas com os países desenvolvidos em que vários estudos apontam o suicídio como a 2.ª ou 3.ª causa de morte entre os adolescentes acima dos 15 anos. E Margarida Gaspar de Matos sublinha a probabilidade de “subnotificação de casos”, que também é valorizada pela OMS, tendo em conta, muitas vezes, o estigma associado a estas mortes.
Otília Queiroz, pedopsiquiatra do Centro Hospitalar Universitário de Santo António e coordenadora da área de Pedopsiquiatria na Administração Regional de Saúde do Norte, diz também desconhecer qualquer estudo que aponte para o aumento de casos de suicídio entre os jovens portugueses, e salienta a especificidade do fenómeno, quando ocorre entre os mais novos.
Linhas de apoio
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Conversa Amiga
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Telefone da Esperança
222 030 707
“Os comportamentos suicidários na adolescência têm, frequentemente, um cariz impulsivo (ocorrendo em reacção a um stressor agudo) e a intenção suicida é muitas vezes ambígua ou até mesmo inexistente; são comportamentos que frequentemente traduzem a incapacidade em lidar, naquele momento e nas circunstâncias em que o adolescente se encontra, com um determinado problema ou uma situação difícil e/ou em comunicar de uma forma eficaz as suas dificuldades”, explica, numa resposta escrita enviada ao PÚBLICO.
Cristina Marques, pedopsiquiatra da Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental, deixa um alerta similar, também numa resposta escrita: “Na situação dos adolescentes estes comportamentos têm significado psicopatológico que não é necessariamente sobreponível ao dos adultos, podendo corresponder a situações de todos os espectros de gravidade psicopatológica e até comportamentos de imitação e contágio na ausência de uma doença mental.”
Inês Rothes sublinha que, muitas vezes nas crianças mais pequenas um suicídio pode resultar mais da “impulsividade” do que de algo planeado e Margarida Gaspar de Matos refere que nos casos que lhe chegam ao consultório há, quase sempre “uma impotência ligada à desesperança”. E que algo que para outra pessoa parece um problema insignificante, para estes miúdos se apresenta como “uma dor muito grande, algo de que não se consegue livrar”.
Sem doença mental
Não se deve, por isso, pensar que há uma doença mental associada a cada tentativa de suicídio de uma criança ou adolescente. Otília Queiroz diz que, sendo verdade que “possam ocorrer tentativas de suicídio em adolescentes portadores de doença psiquiátrica grave, essas situações são relativamente raras e na maioria das situações o que se encontra subjacente é a percepção de incapacidade de lidar com uma situação difícil ou com uma adversidade; há ainda que ter em conta que, por razões decorrentes do seu desenvolvimento neurocognitivo e emocional, os adolescentes são mais propensos a comportamentos impulsivos e têm mais dificuldades em regular os seus estados emocionais negativos, tendendo a vivenciá-los de uma forma mais extrema.”
Todas insistem, contudo, que não é possível encontrar uma razão simplista, uma causa única para uma tentativa de suicídio - há “uma constelação de factores para cada caso”, descreve Inês Rothes. É sempre uma questão complexa e que pode ser influenciada por factores culturais, geográficos ou o momento histórico que se vive.
“O pedido de ajuda é um dos principais obstáculos da saúde mental”
Chama-se Sobreviver, começou a funcionar em Junho de 2021 e pretende apoiar as pessoas “que perderam alguém para o suicídio”. Os “sobreviventes”, como são chamados pela associação e pela sua presidente, a psicóloga Sofia Santos Nunes, que também perdeu o pai desta forma.
Apesar da sua formação, explica que a Sobreviver não tem “um objectivo clínico”, mas antes dar aos familiares ou amigos de alguém que se suicidou a possibilidade de terem um espaço de partilha, onde possam falar sem medos dos tabus ou estigmas que ainda acompanham o tema. Porque, refere, “por cada suicídio, e as estatísticas são variáveis, há entre seis a 10 pessoas directamente afectadas”. “Há um antes e depois, a reestruturação de toda a personalidade, da estrutura familiar. Há toda uma mudança na estrutura e na forma como vemos a vida”, afirma, e no caso dos familiares mais próximos, o processo de luto “extremamente complexo” pode mesmo comportar características similares ao “stress pós-traumático”.
Para os que ficam há muitas vezes processos de “culpa muito pesados e complexos”. E se quem se suicidou for um menor, tudo pode ser ainda mais complicado, diz, já que os pais são muitas vezes “apontados” como alguém que “falhou”. Por isso, defende, é importante passar a mensagem de que “o suicídio é evitável”, que há sinais a que se deve estar atento e que podemos agir sobre eles, mas também que há casos em que, por mais atento que se esteja, “não vai ser possível salvar a pessoa”. “É preciso pensar naquela mãe que fez tudo, que andou com o filho nas urgências, nas consultas, e mesmo assim não resultou”, diz.
Acima de tudo, é preciso “empatia e compaixão” para quem sobrevive ao suicídio de alguém querido. E, tal como é preciso dar espaço para falar a quem está a pensar em suicídio, é preciso fazer o mesmo com quem perdeu alguém dessa forma. “A principal necessidade de quem nos chega é falarem do ente querido”, garante. O primeiro passo também pode ser difícil. “O pedido de ajuda é um dos principais obstáculos na saúde mental. Temos pessoas com 30 anos de luto, que vêm ter connosco porque há algumas coisas que não ficaram bem resolvidas, outras muito no início do processo. Ainda há um estigma muito grande em pedir ajuda”, diz.
Nos Estados Unidos, um relatório recente do Centro para o Controlo da Doença aponta para que quase uma em cada três raparigas do ensino secundário considerou o suicídio em 2021, o que representa um aumento de 60% comparando com 2011. Num artigo da Time que parte destes dados, uma psicóloga defendia que as redes sociais deveriam ser mais responsabilizadas por esta evolução, mas por cá resiste-se a diabolizar esse meio, embora se reconheça que ele é mais um factor a que é preciso estar atento, sobretudo por potenciar eventuais actos de contágio ou imitação.
Há sinais aos quais é preciso estar atento - mudanças de comportamento de sono ou na alimentação, isolamento, falta de interesse ou incapacidade para desempenhar actividades normais, por exemplo. E os comportamentos auto-lesivos podem não estar directamente relacionados com uma intenção de suicídio, mas Inês Rothes defende que não devem ser desvalorizados, porque vários estudos indicam que a 4.ª razão mais apontada pelos jovens para terem este comportamento é “para afastar pensamentos de morte, de ideação suicida”, diz.
Mas isto também não significa que o facto de haver mais casos de auto-lesão no país aponte para um aumento dos suicídios entre os mais jovens num futuro próximo. A investigadora lembra que também se acreditou que a grave crise de 2008 iria fazer aumentar o suicídio em geral e que em muitos casos isso não aconteceu - nos países com uma forte resposta social até houve uma diminuição. Aqui, uma boa resposta na área da saúde mental pode ter o mesmo efeito, sublinha.
E não são apenas as equipas médicas que devem estar envolvidas - os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO desvalorizaram, por exemplo, o encerramento dos serviços de Pedopsiquiatria à noite, que já acontecia nos hospitais de referência do Norte e Centro, e a que agora se junta o do Sul, o D. Estefânia, em Lisboa. Toda a comunidade deve e pode intervir se suspeitar que há alguma intenção suicida de alguém que conhece. Acompanhar a pessoa, falar com ela, mantê-la ocupada, e em casos mais graves, encaminhá-la para os serviços de saúde adequados. O essencial é não ignorar. “É preciso dizer-lhes que há sempre uma solução e que amanhã pode ser o melhor dia da vida deles. Que se estão confusos ou com uma dor muito grande devem falar com alguém, seja quem for. Vamos apostar no dia de amanhã. Hoje não é o teu dia, mas amanhã pode ser”, diz Margarida Gaspar de Matos.
Otília Queiroz sintetiza: “O mais importante é abrir uma via de comunicação com a criança/adolescente, que lhe permita expressar as suas preocupações e sentimentos, ou seja, tentar perceber o que é que naquele momento se está a passar na sua vida que é causa de sofrimento ou mal-estar, e de que forma se está a sentir. A partir da identificação do problema poderá, então, ser possível trabalhar na resolução do mesmo, articulando sempre com os seus cuidadores e responsáveis legais."