23.6.23

Se juros apertam demais, haverá famílias a gastar 70% do orçamento em comida, energia e dívidas

 Luís Reis Ribeiro, in DN


Governo português tem de fazer esforço adicional até 2028 para manter as "contas certas". Fundo pede cortes de 640 a 840 milhões de euros por ano nos próximos cinco anos.

Se as taxas de juro da zona euro subirem mais do que hoje se espera porque a inflação muito elevada não recua, as famílias portuguesas (metade delas) podem ser conduzidas a uma situação limite, sendo forçadas a gastar 70% do seu orçamento em comida, luz, água e dívidas, avisa o Fundo Monetário Internacional (FMI) no estudo anual (Artigo IV) sobre a economia portuguesa, ontem divulgado (quinta-feira, 22 de junho).


Nesta nova avaliação do antigo credor de Portugal há elogios à condução da política orçamental (o FMI alinha com as previsões do governo e parece acreditar nas metas do défice e da dívida), a instituição também reviu em alta a previsão de crescimento deste ano, mas deixou um aviso: é preciso mais para reduzir o défice e, sobretudo, a dívida pública.


Pelas contas do Fundo, o governo vai ter de fazer um forço "discricionário" adicional entre 2024 e 2028 (para segurar o saldo orçamental numa posição de "equilíbrio") equivalente a 0,25% do Produto Interno Bruto (PIB) ou até 0,3% do PIB. Dá entre 640 a 840 milhões de euros por ano a preços correntes (de 2023) em novos cortes ou poupanças orçamentais adicionais.

Mas para já, apesar da recuperação melhor que o esperado, muito apoiada no turismo, e da "resiliência" do mercado de trabalho português, o FMI diz que está preocupado com um cenário mais agressivo para o lado das famílias, sobretudo as mais vulneráveis, as mais expostas ao aumento do custo de vida e à crise de oferta de habitação.

"A análise da missão [os economistas do FMI que estiveram em Portugal em maio] sugere que, em cenários adversos (assumindo taxas de juro mais elevadas e um crescimento mais lento do rendimento bruto das famílias), quase metade delas poderá ser obrigada a gastar mais de 70% do seu rendimento em alimentação, serviços de utilities [como gás, eletricidade, água] e nos pagamentos das suas dívidas, trazendo isto efeitos mais acentuados para as famílias de baixos rendimentos", diz o FMI.

"Esta situação poderá também ter efeitos macrofinanceiros mais alargados, ligados à redução do consumo das famílias e a perdas no crédito [incumprimentos bancários, malparado]. No entanto, o recente apoio por via de medidas do governo e a força do mercado de trabalho são fatores atenuantes importantes", acrescenta a instituição liderada por Kristalina Georgieva.

Como referido, a previsão de crescimento para a economia portuguesa, este ano, foi revista em alta pelo FMI face ao cenário avançado pela instituição em abril passado.

E o défice público deverá ser substancialmente inferior ao previsto há quase três meses, no Outlook económico da primavera. O peso da dívida pública também. Com isto, o FMI alinha com os números do governo em ambos os indicadores das contas públicas referentes ao ano em curso.


Assim, em vez de uma retoma de apenas 1% este ano, o FMI, no novo estudo anual e abrangente, prevê que a economia portuguesa avance 2,6% em termos reais, em 2023, a segunda melhor previsão até agora divulgada pelas principais instituições. O governo, no Programa de Estabilidade de abril, diz estar à espera de um crescimento de 1,8%. Portanto, o FMI está mais otimista.

Segundo o novo Artigo IV, o défice público deve permanecer em 0,4% do PIB em 2023, o mesmo valor do ano passado. O FMI alinha assim com a previsão do governo e do ministro das Finanças, Fernando Medina. No Outlook de abril, o FMI previa que o défice subisse de 0,4% em 2022 para 1,2% este ano.

Quanto ao peso da dívida pública, a instituição também está notoriamente mais otimista, prevendo agora que o rácio desça de 113,9% do PIB em 2022 para 107,9% no final deste ano. Também está mais em linha com a previsão das Finanças, que aponta para um nível de dívida de 107,5% em 2023.

Diz o FMI que "apesar das novas medidas de apoio orçamental, o défice diminuiu significativamente até atingir 0,4% do PIB em 2022, refletindo principalmente receitas fiscais mais fortes". E acrescenta que "a dívida pública caiu abaixo do nível pre-pandémico para 113,9% do PIB", sendo que em 2023, "prevê-se que a situação orçamental seja globalmente semelhante à de 2022" e que "a dívida pública se mantenha numa trajetória descendente em 2023 e no médio prazo".

Quanto à inflação, um dos indicadores mais seguidos atualmente por causa do seu valor anormalmente elevado e da forma como tem penalizado o poder de compra e pressionado em alta algumas atualizações salariais, o FMI está praticamente na mesma. No Artigo IV, a previsão para o andamento dos preços é revista em baixa ligeira, para 5,6%.

"Procura arrastada pelo custo de vida elevado"

Seja como for, o FMI alerta que "a forte recuperação de Portugal manteve-se até ao início de 2023, mas prevê-se agora que o crescimento abrande no curto prazo", diz o estudo do Fundo. "O crescimento da procura interna deve ser arrastado para baixo pelo elevado custo de vida e o crescimento das exportações abrandar", refere.

Embora diga que "os riscos são equilibrados", o FMI sublinha que "as condições financeiras mais restritivas - potencialmente acompanhadas de uma correção acentuada dos preços da habitação, ou um abrandamento mais profundo a nível mundial ou regional, e preços da energia persistentemente mais elevados - podem prejudicar ainda mais o crescimento, aumentando os riscos". "Em contrapartida, a continuação da forte dinâmica do turismo e a resiliência do mercado de trabalho constituem os principais riscos positivos".

O FMI insiste, como sempre, na importância da consolidação orçamental e recomenda que o governo mantenha freio nas contas públicas e aposte numa política "restritiva".

"Do lado das receitas, a simplificação do sistema fiscal e a eliminação das distorções, a revogação das taxas reduzidas de IVA, a reintrodução de impostos sobre o carbono e a melhoria da administração fiscal são reformas fundamentais".

Na despesa, são necessárias mais "reformas para conter as pressões sobre os gastos do envelhecimento da população com pensões e cuidados de saúde". "São prioridades de longa data", relembra o FMI.

luis.ribeiro@dinheirovivo.pt