Com dois filhos pequenos e a mãe ao seu cuidado, o ordenado mínimo e eventuais apoios não chegam para Alexandra encontrar uma nova casa para arrendar. As rendas mantêm-se inacessíveis para muitos e continuam a marcar o drama da crise habitacional em Portugal. Por isso mesmo, os protestos pelo direito à habitação voltam hoje à rua, num momento em que o pacote legislativo Mais Habitação começa a ser discutido e votado na especialidade.
Apoios à Habitação não chegam: “É impossível. Se uma renda é 800€ e eu recebo 744..."
A crise habitacional em Portugal tem-se intensificado, afetando cada vez mais pessoas e famílias. Alexandra Taborda, 45 anos, é uma das vítimas dessa realidade.
Há seis meses, Alexandra recebeu uma carta da senhoria que a informava de que o contrato de arrendamento não seria renovado e que, por isso, teria de deixar a casa onde morava há cinco anos, em Queluz, em seis meses.
“Fiquei surpresa. Fiquei e não fiquei, porque ela implicava muito comigo...”, conta à Renascença, acrescentando que mora numa casa "um bocadinho mal tratada", já que "a senhoria nunca a quis arranjar".
Com dois filhos pequenos e a mãe ao seu cuidado, Alexandra sabia que não podia sair de repente, sem uma alternativa.
Desesperada, procurou ajuda em várias instituições: Junta de Freguesia, Segurança Social, Câmara de Sintra e até mesmo a Santa Casa da Misericórdia. “Nenhuma delas me abriu a porta, nada."
Alexandra está à procura de uma casa para alugar, mas o preço das rendas e o pedido de duas, às vezes até três, cauções como depósito insistem em atrasar uma solução para a sua situação. Os apoios não são suficientes, afirma, e “não ajudam nas rendas”, em situações como a sua.
Mesmo que eu receba mais 200 euros, não dá para sustentar, para água, luz, comida, passe. Não dá. São muitas despesas”
“É impossível, mesmo com o apoio que eu tenho do abono e o apoio que eles dão, não dá… Se uma renda é 800 euros e eu recebo 744 euros, mesmo que eu receba mais 200 euros, não dá para sustentar, para água, luz, comida, passe. Não dá. São muitas despesas”.
Foi num local improvável, o Facebook, que encontrou a ajuda que procurava, não uma casa acessível, mas uma associação que se dedica ao auxílio de pessoas em situação de vulnerabilidade habitacional.
“Foi a única porta que vi aberta. Foi na Habita! que consegui uma resposta para a situação em que estava”, afirmou.
Ao participar numa assembleia da associação - que promove ações em defesa do direito à habitação -, percebeu que o seu problema estava longe ser o único.
“Havia muita gente na mesma situação que eu e ajudaram-me a resolver minha situação. Ajudaram-me a escrever uma carta à senhoria, a expor a situação e [a dizer] que não ia sair enquanto não tivesse uma solução de habitação”.
"É aquela ansiedade de a senhoria me vir bater à porta"
Por não haver um processo judicial de despejo, e por não ter conseguido encontrar outra casa que pudesse pagar, a associação aconselhou a redigir uma carta na qual referia, “simplesmente”, que Alexandra não podia sair porque não tinha para onde ir e que iria continuar a pagar a renda. Referia ainda que, caso a senhoria continuasse a fazer bullying, seria apresentada queixa - na sequência do que Alexandra relata como várias "implicações" em situações do dia-a-dia.
Até ao momento, ainda não obteve qualquer resposta à sua carta.
“Continuo à procura [de outra casa], porque é aquela ansiedade de ela [senhoria] me vir bater à porta... Tenho a certeza de que um dia vai acontecer e eu todos os dias chego e vou a correr ao correio a ver se tenho essa carta [de despejo]. Ando à procura de casa e não consigo, não consigo porque as rendas são tão altas… Tenho o ordenado mínimo e a única que trabalha lá em casa sou eu. Tenho dois pequeninos e tenho a minha mãe”, desabafa.
Esta situação reflete a realidade de muitas outras pessoas em Portugal. Os preços das rendas têm aumentado significativamente, especialmente nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, no Algarve e na Madeira. Os valores por metro quadrado nas áreas metropolitanas têm se tornado cada vez mais altos, com Lisboa a liderar a lista.
Segundo dados do INE, no último trimestre de 2022, foram feitos, em Portugal, 22.628 novos contratos de arrendamento. É com base neste número que foi calculado o valor de 6,91 euros por metro quadrado. Este valor representa um aumento de 10,6% em relação ao trimestre anterior. Além disto, registaram-se menos 3,3%, ou 747, menos contratos do que nos últimos três meses de 2021.
Durante esse ano, as rendas aumentaram em todas as sub-regiões portuguesas, sendo que as mais altas verificam-se nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, no Algarve e na Madeira.
Nos municípios, os quatro com valores mais altos por metro quadrado também foram os que assistiram aos maiores aumentos. Em Lisboa, o metro quadrado de um imóvel recém-arrendado fechou 2022 a custar, em média, 14,13 euros. Este valor está quatro euros acima do custo mediano da Área Metropolitana de Lisboa. Na capital, o aumento, em comparação ao final de 2021 foi de 22,4%.
Em seis freguesias lisboetas - Campo de Ourique, Estrela, Misericórdia, Parque das Nações, Santa Maria Maior e Santo António -, o preço mediano por metro quadrado de novos contratos de arrendamento situa-se entre os 14 e os 16,34 euros. Mas foi a freguesia de Marvila que registou o maior crescimento homólogo, com um aumento de 29,1% em relação ao período de outubro a dezembro de 2021. Já Arroios registou o maior aumento no número de contratos, como, aliás, já tinha acontecido no ano anterior.
O valor do metro quadrado arrendado em Lisboa aumentou 33,8% entre 2017 e 2022 e, em Portugal, 48,5%. A diferença entre a realidade de Lisboa e do país, que tinha estreitado durante os primeiros dois anos da pandemia, voltou a aumentar em 2022, quando a capital registou um aumento acentuado no preço por metro quadrado em novos contratos de arrendamento.
O segundo município mais caro para arrendar é Cascais, com um metro quadrado a custar 13,66 euros e um aumento homólogo de 21%. Segue-se Oeiras, com 12,65 euros e uma subida de 23,9% e o Porto, com um metro quadrado a valer 10,64 euros e um aumento de 16,3% em relação ao ano anterior.
Perante este cenário de crise na habitação, vários movimentos e organizações têm se mobilizado em defesa do direito à habitação e o movimento Casa para Viver, que a 1 de abril organizou uma manifestação em várias cidades do país, volta às ruas de Lisboa para uma concentração no Largo Camões e para entregar à Assembleia da República propostas de medidas que consideram efetivas na resposta à crise habitacional.
“Queremos que a banca pare de lucrar com os créditos à habitação e que as pessoas consigam ver os créditos estabilizados"
Os protestos pelo direito à habitação voltam à rua, num momento em que as condições de acesso ao arrendamento e compra de casa continuam a agravar-se.
Em declarações à Renascença, Teresa Mamede, jurista e ativista da Habita! – uma das mais de cem associações que integram o movimento Casa Para Viver – destaca que a decisão de realizar o protesto “O + Habitação não serve a população!”, esta quinta-feira, se deve ao facto de o pacote legislativo Mais Habitação começar a ser discutido e votado na comissão parlamentar da especialidade.
“Já que o governo fez orelhas moucas àquilo que as pessoas gritaram na rua, vamos entregar as nossas propostas para solucionar a crise da habitação na Assembleia da República”.
O movimento tem defendido um conjunto abrangente de sete medidas, entre as quais o impedimento de despejos sem garantia de habitação alternativa adequada, que o preço das rendas seja indexado ao valor dos rendimentos do agregado (sem exceder uma taxa de esforço superior a 20%) e garantir a renovação automática dos atuais contratos de arrendamento, bem como fixar o valor das prestações dos créditos para primeira habitação.
“Queremos também que a banca pare de lucrar com os créditos à habitação e que as pessoas consigam ver os créditos habitação estabilizados e (...) que consigam ter uma habitação que possam pagar. É isso que nós acreditamos que o pacote mais habitação não faz.”.
Reclamam ainda a “revisão imediata das licenças para especulação turística” e o “fim real” dos vistos ‘gold’, do estatuto de residente não habitual, dos incentivos para nómadas digitais e das isenções fiscais para o imobiliário de luxo e para empresas e fundos de investimento.
O movimento defende que o atual pacote de habitação é insuficiente para resolver o problema habitacional e que, embora inclua algumas medidas de apoio e subsídios, estas não beneficiam todos os inquilinos ou pessoas com empréstimos. Segundo a ativista, com este pacote, o Estado acaba por proteger os lucros da banca e dos proprietários.
“Todas as pequenas diminuições que se possam verificar no pagamento das rendas ou nos créditos na vida das pessoas são colmatadas com dinheiro público. E para nós não faz sentido que as pessoas estejam a perder tanto e a passar por tantas dificuldades”, argumenta.
Como ativista na Habita!, Teresa relembra que recebem vários casos de pedidos de apoio – desde “pessoas jovens que são inquilinas e que, por exemplo, partilham casa, vivem em quartos arrendados” a “algumas sem contrato, que sofrem bullying dos senhorios”.
“A maior parte das pessoas que nos procuram talvez sejam pessoas que estão em risco de despejo por vários motivos – por não renovação de contrato, porque os senhorios criam uma pressão gigante para que saiam, ou então impõem rendas que as pessoas não podem pagar, o que na prática é um despejo.
Crise começou a "afetar diferentes camadas da população"
“Não é uma crise de agora”, mas “a situação está a agudizar-se”, realça Teresa, justificando que a situação se intensificou porque “começou a afetar também diferentes camadas da população que até agora não eram afetadas”.
Antecipando a concentração desta quinta-feira, a ativista afirma esperar que, “finalmente, o Governo e todos os partidos com assento parlamentar oiçam aquilo que as pessoas estão a exigir”.
Para Teresa, “é evidente que o número de pessoas que foi para as ruas no dia 1 de Abril, numa manifestação que foi organizada por movimentos sociais, que foi uma manifestação de bases, não foi organizada por nenhum partido, nem por nenhum sindicato e o facto de terem ido tantas pessoas para a rua, mostra o nível do descontentamento e a urgência da resolução desta crise.