Ana Henriques, in Público online
Antigo vice-reitor da Universidade do Porto via família da empregada como sua família e chegou a ajudá-la com dinheiro. Mas isso não foi suficiente para o ilibar.
A empregada doméstica de um sacerdote católico do Porto venceu uma acção judicial contra o patrão, que ao longo de 20 anos de serviço nunca lhe pagou subsídios de férias nem de Natal. As ajudas financeiras que lhe foi dando enquanto usufruiu dos seus serviços não evitaram a condenação do octogenário, que via a mulher e respectiva família como sua família também.
Quando foi contratada para empregada interna da moradia no concelho de Gaia, onde residia o padre, em 1999, a mulher ainda trabalhava de manhã como funcionária da Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto, donde só viria a reformar-se anos mais tarde. Já o patrão era vice-reitor da mesma universidade, instituição onde chegou também a dirigir a Faculdade de Letras. Apesar de o salário não ser famoso, aos 350 euros mensais acrescia ter direito a alojamento e alimentação, não só para si como para a filha e o marido, que estava entrevado. Não pagava água, luz nem gás.
Em 2007, a empregada reforma-se da faculdade e fica a trabalhar a tempo inteiro como interna. Estava a caminho dos 70 anos e a saúde já não era a mesma: diabética e hipertensa, desenvolvera problemas de visão. O patrão providencia-lhe as frequentes deslocações ao hospital.
Diz o ditado que mulher doente é mulher para sempre, e este caso não foi excepção. Quando o marido morre, mãe e filha continuam a morar com o padre. Quando esta última se casa, o académico cede-lhe, por um valor quase simbólico, uma casa que tem ali perto para morar com o marido. Oferece-lhe ainda cerca de 12 mil euros para que compre um carro, para chegar ao emprego. Mais tarde há-de ainda emprestar 37.500 euros à doméstica, que precisa do dinheiro para fazer umas obras numa casa sua.
Mas nunca formalizou um contrato com a empregada, nem a inscreveu na Segurança Social. Quando é julgado em tribunal pela primeira vez, em Janeiro de 2021, desvaloriza por completo a relação contratual que mantém com a empregada, dizendo e repetindo que sempre tinham sido todos como uma família. Quase fazendo crer que aceitou partilhar o seu lar com três pessoas por mera caridade e não apenas para não estar sozinho, escreve a juíza que o condenou em primeira instância.
Porém, dos quase 70 mil euros exigidos pela queixosa a título de trabalho suplementar, violação ao direito de férias, violação do descanso semanal e indemnização por despedimento ilícito, o tribunal só decretou o pagamento de cerca de 17 mil. A justiça considerou impossível não ter gozado um único dia de férias ou de folga ao longo destas duas décadas, como dizia ter sucedido. Também não ficou comprovado que a sua jornada diária tivesse início às 7h30 e só terminasse às 21h30, com pausas pelo meio para as refeições – até porque os afazeres profissionais do padre o levavam volta e meia a ausentar-se.
A ruptura entre patrão e empregada dá-se em 2019, numa altura em que a octogenária, que entretanto se tornara dependente da insulina, só a custo desempenhava algumas das tarefas domésticas. Limpar a casa já não conseguia. O seu salário tinha subido para os 400 euros. O padre contrata então uma substituta, mantendo mesmo assim a ex-empregada a morar consigo. Ter-lhe-á mesmo dito: “Agora já podes descansar.”
O problema é que ela começa a implicar com a sua sucessora, que ameaça ir-se embora. Como os seus avisos para que deixe de criar mau ambiente não surtem efeito, o patrão acaba por trocar a fechadura de casa, aproveitando uma ida ao médico da ex-empregada.
A exactidão do relato que a mulher faz da conversa que houve nesse dia não ficou provada. “Senhor doutor, quero saber porque me manda embora”, terá dito. “O doutor disse-me que, enquanto vivesse, eu continuava aqui.” O padre mantém a calma até mãe e filha pegarem em Tokio, que ali tinha sido criado, para o levarem consigo. Fica desnorteado: “Se levam o cão, tiro-vos a casa”, terá ameaçado, numa alusão ao imóvel que prometera deixar-lhes em testamento.
Mas levaram mesmo o animal consigo, e a doméstica meteu uma acção em tribunal contra o antigo vice-reitor a reclamar os 70 mil euros. Exigia ser também paga pelos quatro meses em que continuou a residir lá em casa já sem exercer qualquer tipo de tarefa – conduta que o tribunal de primeira instância classifica como “desonesta, desleal e socialmente censurável”.
O advogado que defendeu o padre em tribunal acusa mãe e filha de ingratidão e cupidez. Se não fosse a sua má conduta, a empregada ainda hoje moraria com o patrão, alega. Recorre da condenação com sucesso: o Tribunal da Relação do Porto iliba o antigo reitor, com base no argumento de que, tendo sido a própria doméstica a reconhecer já não ser capaz de desempenhar todo o serviço, a relação laboral caducou, tendo os seus créditos laborais prescrito por os ter reivindicado mais de um ano depois de ser substituída.
Porém, esse não foi o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, que em Maio passado decidiu que a generosidade do padre para com esta família em nada prejudica os direitos da trabalhadora em matéria de subsídios de férias e de Natal. Para cancelar o contrato de trabalho firmado oralmente em 1999, o patrão devia tê-lo feito por escrito, com aviso prévio. “Mas não o fez e a sua conduta deve qualificar-se como um despedimento ilícito”, escrevem os conselheiros, para quem o facto de a mulher ainda desempenhar algumas tarefas quando foi substituída faz com que a relação laboral não tenha caducado.
Mas não foram só vitórias para a empregada, que o Ministério Público junto do Supremo entendia não ter razão. Mesmo tendo visto o ex-patrão condenado por a ter despedido de forma ilegal, o facto de a queixosa se ter conformado com isso numa fase anterior do processo impediu que fosse indemnizada por esse facto – tendo recebido apenas os tais 17 mil euros, em vez de ter arrecadado mais 12 mil por despedimento ilícito.
Contactado pelo PÚBLICO, o advogado do sacerdote, Romualdo Mota e Silva, diz que o seu cliente irá pagar o devido. Sobre a decisão que o condena limita-se a proferir uma alocução latina, segundo a qual o excesso de justiça também pode redundar em injustiça: “Summum ius, summa iniuria.”