Inês Cardoso, opinião, in TSF
O perfil das pessoas que se viram enfiadas na pele de sem-abrigo está a mudar. Há mais mulheres, mais casais e mais crianças a viver nas ruas. Famílias afetadas pela crise que não conseguem pagar a casa. Quem o explica é o coordenador da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-abrigo, que acrescenta haver também mais imigrantes detetados pelo sistema.
Henrique Joaquim contrapõe à dureza do retrato alguns sinais de otimismo, considerando que as instituições estão atentas e a chegar melhor às pessoas. Mas logo Maria José Vicente, da Rede Europeia Anti-Pobreza, lança alertas pouco dados à esperança. Como faltam infraestruturas para acolher estas pessoas, muitas vezes os maridos são colocados num local e as mulheres noutro. "Isto leva a que, passados uns dias, voltem à rua", admite.
Os alertas de especialistas, que apontaram a inflação e a dificuldade de muitas famílias em suportar os custos básicos de vida, foram ouvidos num seminário que decorreu ontem em Gondomar. Pela mesma altura, mas em Sintra, ouviam-se outros avisos pela boca de Christine Lagarde. Diz a presidente do Banco Central Europeu (BCE) que ao conseguirem aumentos salariais para tentarem compensar as perdas de poder de compra sofridas com a crise, os trabalhadores da zona euro estão a contribuir para novas subidas de juros. Dito de outra forma, o crescimento dos salários provoca uma nova fonte de inflação "persistente" que tem de ser combatida. Até porque, completa Lagarde, o crescimento da produtividade segue abaixo do projetado.
Apesar da aparente frieza das análises, os principais economistas que por estes dias participam no Fórum BCE concordam com Lagarde, alertando para o risco de se entrar numa espiral inflacionista, que cabe aos bancos centrais travar. Traduzindo por miúdos: não apenas vem aí nova subida das taxas de juro em julho, como a política irá manter-se se persistirem progressões salariais consideradas exageradas.
As mães e os pais que se veem empurrados para as ruas pelo aumento dos preços terão dificuldade em entender estas lições de economia, e ainda mais dificuldade em explicar aos filhos que a sugestão para travar a crise é reforçar a dose que os deixou de má saúde. Quanto à presidente do BCE, ninguém duvidará da profundidade do conhecimento que detém da economia, mas é legítimo questionar que modelo de desenvolvimento é este, em que os grandes números estão tantas vezes em total rota de colisão com as necessidades das pessoas.
A política é a permanente gestão de alternativas e pressupõe escolhas. Há decisores, como Lagarde, para quem as expectativas das pessoas são um aborrecido entrave ao desejado comportamento dos gráficos e cenários macroeconómicos. E há quem acredite que é possível reinventar soluções e modelos de desenvolvimento, tendo as pessoas no centro das tomadas de decisão. A política deveria ser isso: a vida ao comando da governação, mesmo que tenha de reescrever-se a cartilha.