5.9.23

Quase 5% das famílias em risco de gastar mais de metade do salário com crédito à habitação

Rafaela Burd Relvas, in Público online

A percentagem de famílias em sobrecarga financeira para suportar os custos do crédito à habitação permanece baixa, mas está a aumentar de forma significativa, em resultado da subida das taxas de juro.

Quase 5% das famílias com crédito à habitação correm o risco de chegar ao final deste ano a ter de desembolsar mais de metade do seu rendimento disponível para suportar os custos com o empréstimo, em resultado da subida das taxas de juro. Ao todo, serão perto de 70 mil famílias nessa situação, praticamente o dobro daquilo que se verificava há dois anos, segundo as estimativas do Banco de Portugal (BdP).

Os alertas do regulador da banca quanto aos riscos que a subida das taxas de juro acarreta para as famílias já vêm sendo feitos há vários meses. No último Relatório de Estabilidade Financeira, publicado no passado mês de Maio, o BdP apontava que "os encargos mais elevados com o serviço da dívida dos empréstimos à habitação" deveriam contribuir para uma subida do rácio entre a prestação do crédito e o rendimento disponível (o chamado "loan service-to-income", ou LSTI) de 16,3% em Junho de 2022 para 22,3% em Dezembro de 2023. Na prática, significava isto que o regulador antecipava que, no final deste ano, com o crédito à habitação, as famílias teriam de desembolsar, em média, mais de um quinto do rendimento disponível para pagar a prestação da casa.

Segundo estimava ainda o BdP nessa altura, a larga maioria das famílias (cerca de 75%) deveria continuar a suportar uma taxa de esforço igual ou inferior a 30% este ano, mas 18,6% das famílias passariam a suportar uma taxa de esforço superior a 40% no final deste ano (muito acima da proporção de 7,7% das famílias que se encontravam nessa situação em Junho do ano passado).

Mais: perante este cenário de "inflação elevada e de subida rápida das taxas de juro", o regulador via um risco mais elevado de incumprimento no crédito, sobretudo entre os "clientes mais vulneráveis", que têm agora menor capacidade de poupança. Assim, no relatório publicado em Maio, o regulador já considerava ser "expectável" um aumento das perdas por imparidade de crédito e dos empréstimos classificados em stage 2 (a classificação atribuída aos contratos cujo risco de crédito aumentou significativamente desde o início da contratação, mas para os quais ainda não existe evidência de que venha a existir uma perda associada).

Agora, o governador do BdP vai mais longe e aponta mesmo para o número de famílias que se espera que venha a ser mais afectado pela subida das taxas de juro.

"A encruzilhada traz maior aperto financeiro a famílias e empresas em resultado do ciclo de política monetária. No final de 2023, cerca de 70 mil famílias poderão vir a ter despesas com o serviço do crédito à habitação permanente superiores a 50% do seu rendimento líquido", escreve Mário Centeno, numa análise pessoal ao actual momento da economia, a primeira daquela que deverá tornar-se numa série com periodicidade anual. E acrescenta: "O reforço da poupança e a redução do endividamento, bem como os apoios públicos e o papel do sector bancário na prevenção do incumprimento, podem mitigar estes riscos."

Este é um número que está a aumentar desde há dois anos, quando as taxas Euribor (às quais está indexada a larga maioria dos contratos de crédito à habitação em Portugal) iniciaram a actual trajectória de subida: em Dezembro de 2021, de acordo com os dados agora disponibilizados na análise assinada pelo governador do BdP, havia 35,6 mil contratos de crédito à habitação com uma taxa de esforço superior a 50%, um número que cresceu para 45,8 mil no final do ano passado e que, por fim, se estima que aumente para 69,6 mil em Dezembro deste ano.

De acordo com os dados mais recentes do BdP, relativos a 2022, existiam, no final desse ano, à volta 1,5 milhões de contratos de crédito à habitação activos. Cerca de 92,6% destes contratos tinha taxa variável, enquanto outros 5,7% tinham taxa mista e só 1,7% tinham taxa fixa. Este é um retrato que poderá vir a alterar-se em breve, tendo em conta as dinâmicas mais recentes do mercado: em Julho deste ano, os novos empréstimos à habitação com taxa fixa ou mista já representaram, em conjunto, 49% do total de novos empréstimos à habitação, ainda de acordo com dados do BdP.

Considerando estes números, significa isto que, no final deste ano, em torno de 4,6% das famílias com crédito à habitação poderá estar a pagar prestações que representam mais de 50% do seu rendimento disponível. Há dois anos, só cerca de 2,5% das famílias se encontrava nessa situação.

Assim, ainda que permaneça baixa, a percentagem de famílias em sobrecarga financeira aumenta de forma significativa. Em Portugal, de acordo com a definição disponibilizada pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), considera-se que estão em "sobrecarga das despesas em habitação" aqueles que vivem em agregados familiares onde "o rácio entre as despesas anuais com a habitação e o rendimento disponível (deduzidas as transferências sociais relativas à habitação) é superior a 40%".

E os indicadores mais recentes não apontam para um desagravamento desta tendência: ainda que as taxas Euribor já estejam a mostrar alguns sinais de estabilização, o valor das prestações dos créditos à habitação deverá continuar a subir nos próximos meses, já que as revisões periódicas ocorrem a cada três, seis ou 12 meses, conforme o prazo da taxa fixada nos contratos.