23.1.10

"Aqui não chega ajuda nenhuma. O que andam os estrangeiros a fazer?"

Por Paulo Moura, Port au Prince, in Jornal Público

Muitos correram para os campos onde está a ser distribuída comida e água. Mas a maioria ficou perto das suas casas e espera que alguém os venha ajudar


O dilema é este: ficar próximo dos próprios bens, de existência duvidosa, ou ir para onde possa haver distribuição de água e comida - o que também nunca é certo.

Logo após o terramoto, foi anunciado na rádio que as pessoas deveriam ir para um espaço aberto, o maior possível, e ficar no centro. Muitos correram portanto para o estádio. Outros para os descampados ou parques. Nesses locais formaram-se campos de desalojados e é lá que, agora, as autoridades locais e as agências internacionais fazem alguma distribuição de comida e água, e é para lá que se dirigem os grupos de médicos e outro tipo de ajuda.

Mas a maioria da população não está nestes centros. Ficou perto das suas casas, na tentativa de recuperar alguns bens ou, pelo menos, impedir que alguém se aproprie deles. Por toda a cidade, há cartazes ou panos dizendo em várias línguas "Precisamos de ajuda", ou "Socorro". São famílias ou grupos de famílias que acamparam perto das casas, destruídas ou não. Mesmo quando estão intactas, poucos têm coragem de dormir lá dentro.

"Help. 200 people. We need water, food, etc" lê-se numa tábua branca. Numa pequena clareira num bairro pobre, na zona de Delmas 31, uma comunidade está acampada com toldos de plástico, dormindo no chão. À entrada, uma mulher está a fritar, a carvão, uma espécie de panados de carne, que vende a quem tiver dinheiro. Sentado numa cadeira, ao centro do grupo, Tomas Toussant, 59 anos, cabelo branco e pele mais escura do que a de todos os outros, lidera a vida da nova "aldeia". Foi ele que tomou a iniciativa de fugir para ali, em pleno tremor de terra. Como é o mais velho da rua, todos lhe obedeceram. Instalaram-se e esperam que alguém os venha ajudar. Até agora, ainda ninguém veio. É uma zona obscura da cidade, e uma rua desconhecida, que não fica propriamente no trajecto de ninguém.

Há vários dias que ninguém come nada, diz Toussant. E apenas têm água porque alguns dos homens saem todos os dias para tentar comprar. E, claro, tentar "apanhar" alguma outra coisa pelo caminho. "As pessoas vão todos os dias para a cidade, à procura de amigos desaparecidos", explica o "velho", como lhe chamam. "Claro que aproveitam para ver se encontram alguma coisa pelo caminho. Tudo o que possa ser útil trazem."

É esta a actividade a que dedicam os homens válidos. Outra é tentar resgatar mais coisas das casas, que ficam ali, à vista, na rua em frente.

"Temos medo de entrar em casa", diz Jean-François, um jovem que estudava inglês na universidade. "Mas já conseguimos trazer algumas roupas."

No grupo há muitas crianças, uma delas com um ferimento grave numa perna, que provavelmente terá de ser amputada. Nunca veio aqui um médico, nem virá. Na comunidade, ninguém sabe onde há um hospital a funcionar. E não gastam muito tempo a procurar, porque se têm medo de entrar em casa, têm ainda mais de sair de ao pé de casa. Estão à espera que alguém os encontre.


Ajuda chegou ao estádio

Mas a pouca ajuda que chega não é a locais como este. A distribuição de água e comida é feita em campos como o estádio. Ali, houve água potável de manhã cedo e rações militares americanas à hora de almoço. As pessoas correm para o sítio, na bancada central, onde os soldados começam a entregar os pacotes castanhos com uma refeição individual a que basta juntar água. Fazem fila, que logo se torna interminável, armam zaragatas, há gritaria, empurrões, discussões terríveis, de vida ou de morte. Os soldados das forças especiais dos EUA, de camuflado e capacete, nem se movem, distribuindo os pacotes, imperturbáveis.

Há cerca de 3500 pessoas no estádio. Vivem sob toldos de plástico, com fogareiros a carvão, dispostos ao longo das bancadas mais baixas, onde se vão cozinhando feijões, arroz. Uma mulher conseguiu uma cabeça de peixe que terá de render para uma família de nove pessoas.

Tudo parece funcionar bem, no recinto, com locais para o lixo e casas de banho, graças à liderança do responsável pelo estádio, um homem chamado Ben Constant, que decidiu, por conta própria, ficar aqui e transformar a instalação desportiva num campo de desalojados.

À parte uma pequena preocupação ("o tapete de relva artificial. Devia tê-lo retirado. Vai ficar inutilizado"), Ben dedicou-se a tempo inteiro à sua nova missão. Ele, que era DJ, percorre agora a cidade, com a carrinha onde tem instalados potentes altifalantes, a chamar as pessoas para o estádio e para as distribuições de comida.

Num dos lados do relvado, instalou-se um pequeno hospital, gerido por médicos israelitas, primeiro, e agora por americanos. Fazem curativos, administram antibióticos. "Vários tipos de infecções, tétano", são agora os problemas mais recorrentes, diz Tony Petrehn, um dos médicos americanos.

Os israelitas foram os primeiros a chegar, no domingo. No aeroporto, viram as equipas de ajuda, de vários países, atrasarem-se ali sob pretextos vários. Eles decidiram avançar para a cidade. "Quando aqui chegámos, era o caos. Era como se tivesse explodido uma bomba no meio de uma multidão", diz Alan Schneider, médico da B"nai B"rith International, uma organização israelita de assistência.

"Durante os primeiros dias, isto era uma zona de guerra e não havia absolutamente nenhuma ajuda. Estavam todos no aeroporto, dizendo que a situação na cidade era demasiado perigosa, e as pessoas estavam aqui a morrer aos milhares. Nós viemos e constatámos que não há perigo nenhum. As pessoas estão simplesmente desorientadas. Isto é uma catástrofe como nunca tinham visto. É preciso saber lidar com elas."

Mesmo agora, a ajuda continua a não chegar, Alan não entende porquê. "As pessoas vêem os helicópteros no ar, toda esta movimentação, e ficam confusas. Aqui não chega ajuda nenhuma. O que andam os estrangeiros a fazer?"