29.12.20

Conselho de Centeno. Famílias e empresas devem retomar o reembolso gradual dos créditos

in RR

Mário Centeno alerta para as condições de acesso ao crédito. Num artigo de opinião no “Diário de Notícias”, o governador do Banco de Portugal reconhece os desafios desta crise desigual e apela a que essas condições sejam favoráveis, embora não se deva incentivar empréstimos sem sustentabilidade económica.

Pede ainda às “autoridades orçamentais que evitem os impactos negativos associados ao fim abrupto de algumas medidas” no pós-pandemia, como o lay-off simplificado e as moratórias, que devem ser mantidas ao longo do ano, mas devem ser adaptados à evolução da crise.

Assim, diz Centeno, as famílias e as empresas devem retomar o reembolso dos créditos, mas de forma gradual e efetiva, permitindo um retorno à normalidade sem sobressaltos. “As moratórias não são um perdão de crédito”.

“Até setembro de 2021, estima-se que até 11 mil milhões de euros de reembolsos previstos nos planos de créditos venham a ser adiados devido às moratórias. Não se trata de um acumular de dívida, mas sim de um adiamento do pagamento, acomodando esse momento ao retorno da atividade a níveis mais próximos do período anterior à crise.”

Neste artigo, o antigo ministro das Finanças elogiaros decisores de várias áreas que “foram céleres, inovadores e coordenados. Assim, as medidas adotadas devem, em 2021, ser adaptadas à evolução da crise e devem servir para preparar a recuperação.”

Marcados por 2020, os jovens da geração Z anseiam por um futuro sem covid-19

Reuters e P3

A Reuters falou com dez pessoas jovens à volta do mundo, para descobrir como é que as suas vidas foram afectadas pelo novo coronavírus. Estas são as suas histórias.

Vidas que eram focadas na escola, universidade, desporto ou concertos de k-pop desapareceram de um dia para o outro, para os membros da geração Z.

Se muito foi dito sobre o risco das pessoas mais velhas na pandemia de covid-19, esta geração mais jovem, nascida entre o final dos anos 1990 e inícios da década de 2010, também viu os seus mundos virados do avesso em 2020.

Fechados em quartos ou obrigados a voltar à casa dos pais, muitos passaram de ser estudantes, atletas ou trabalhadores para se tornarem cuidadores de familiares doentes. Uma adolescente fez-se mãe. Como tudo nesta pandemia, nenhum caso é igual ao outro. Alguns foram mais atingidos do que outros, dependendo das circunstâncias pessoais, geografias ou eficácia das acções tomadas para conter o vírus.

Enquanto anseia por 2021, esta geração teme que as suas vidas possam ter sido mais abaladas do que as dos seus precedentes, os millennials, durante a crise financeira de 2008/2009. Além dos danos imediatos na educação e perspectivas de emprego futuro, os economistas prevêem que a pandemia também afecte os salários a longo prazo, a formação nas empresas, a evolução da carreira e a saúde mental.

A Reuters falou com dez pessoas jovens à volta do mundo, para descobrir como é que as suas vidas foram afectadas pelo novo coronavírus. Estas são as suas histórias:


Elisa Dossena, 23Crema, Itália

No início de 2020, Elisa Dossena fez 23 anos e estava ansiosa por terminar a licenciatura e inscrever-se num mestrado de uma das universidades mais prestigiadas em Itália.

Ao mesmo tempo, Itália tornou-se o primeiro país europeu a ser atingido pela pandemia. Todos os planos ficaram em suspenso. Elisa foi obrigada a tornar-se a responsável de facto de uma casa debilitada. Enquanto estudava em Milão, a covid-19 devastava os seus familiares na cidade de Crema, a 50 quilómetros da primeira “zona vermelha”, na Lombardia. Ela voltou a casa para ajudar.

“Foi um período muito negativo para mim. Mas também me fez crescer muito.”Elisa Dossena

Tanto a tia de 59 anos como a avó, de 90, morreram depois de o vírus debelar ainda mais os corpos já enfraquecidos por outras doenças. “Tive de tomar conta da casa e gerir tudo para todos porque a minha mãe estava ocupada a tomar conta do meu pai e da minha avó e a ajudar a minha prima, quando os pais dela ficaram doentes. Senti muita pressão. Era muita responsabilidade”, conta. “Foi um período muito negativo para mim. Mas também me fez crescer muito.”

Depois de um confinamento de três meses, em Junho as restrições foram levantadas e Dossena pôde voltar a ver os amigos. Mas um medo constante de serem infectados eliminou a cultura do toque, abraços e beijos pela qual os italianos são famosos.

“As pessoas pararam de confiar em apertar as mãos, abraçarem-se ou conhecerem pessoas novas”, diz, sentada na sala de estar da casa da família. “Quando entrava num espaço fechado conseguia sentir as palpitações, a ansiedade. Claro que algo tinha mudado.”

Um novo aumento dos casos de infecção, no final do Outono, fez com que a sua cerimónia de graduação fosse celebrada por webcam, ficando sem a festa com a família que geralmente acompanha o ritual de passagem à vida adulta.

Agora, está a estudar remotamente para um mestrado em gestão, aguardando por alguma normalidade em 2021. “Espero que as pessoas possam deixar as suas casas livremente. Espero que seja possível sair para tomar um café com os amigos. Espero que seja possível regressar às salas de aula, escritórios e universidades”, anseia. “Não peço muito, mas aguardo por isto.”

Jackline Bosibori, 17Nairobi, Quénia

A adolescente queniana Jackline Bosibori usou camisolas largas para esconder a gravidez da mãe durante o máximo de tempo possível, com medo de trazer ainda mais problemas à família.

“Se estivesse na escola, poderia não estar grávida”, declara a jovem de 17 anos.

Para Bosibori, que deu à luz em Novembro, o fecho das escolas definiu 2020. Muitos grupos activistas do Quénia temem que a gravidez na adolescência aumente, à medida que as jovens mulheres são obrigadas a ficar em casa, enquanto os pais saem para trabalhar.

O pai da bebé, um adulto, evita a família Bosibori desde que soube da gravidez de Jackline. O presidente do Quénia pediu uma investigação após o aumento dos casos de abuso sexual, em Julho, incluindo violações, durante o confinamento.

Os sonhos de se tornar advogada parecem agora longínquos. “Sinto que não progredi de forma alguma, este ano. Se estivesse na escola, teria alcançado os meus objectivos”, lamenta.

Tudo isto deixa-a ansiosa, confessa, na casa com uma só divisão que partilha com outros seis familiares. “Há pessoas que perderam empregos. Há estudantes que não vão voltar à escola”, explica, durante uma pausa nos estudos, enquanto a bebé dorme.

As escolas no Quénia estão fechadas desde Março. Bosibori quer voltar mal abram em Janeiro, mas preocupa-se com as propinas. “2020 foi um mau e um bom ano para mim. Foi mau porque engravidei sem estar à espera. Mas foi um bom ano porque tive a minha bebé e ela está bem.”

Lee Ga-hyeon, 17Cheonan, Coreia do Sul

Lee Ga-hyeon tem um grande desejo para 2021: escapar, finalmente, do seu quarto numa cidade a 100 quilómetros de Seul e ver os seus ídolos, o grupo pop BTS, num concerto ao vivo. “Os BTS são como uma vitamina para mim, mas o coronavírus tirou-me isso e deixou-me muito zangada”, conta, no quarto decorado com fotografias do grupo, bonecos e até um cobertor com a cara de Jin, um dos membros da banda.

A pandemia obrigou os BTS a cancelarem a digressão mundial agendada para 2020, que os levaria à Ásia, Europa e Estados Unidos da América. Para Lee, não houve mais viagens a Seul para ver concertos e estar com amigos. Em vez disso, o quotidiano tornou-se maioritariamente online, onde a hiper-conectividade da Coreia do Sul a ajudou a criar um canal do YouTube com os eventos dos BTS, dos últimos três anos.

“É muito triste que este quarto seja o único sítio onde posso ver os BTS”, disse.

Embora o país tenha sido bem-sucedido a combater o início da pandemia, a terceira e mais forte onda de infecções forçou os fãs a abraçarem o mundo digital, durante o “ano perdido”. A escola também é online, dificultando ainda mais os estudos de quem se prepara para o exame de acesso à universidade, um ritual de passagem visto como um momento definitivo na Coreia do Sul.

Lee espera que o teste cumpra o calendário do próximo ano, livre de coronavírus. Foi atrasado um mês em 2020, quando cerca de meio milhão de candidatos se sentaram para o exame de oito horas, com máscaras.

Foi um ano que a relembrou do quão especial é ter amigos, mesmo que tenham de ficar longe. “No ano passado, passei muito tempo a conversar com amigos cara a cara, durante os intervalos das aulas, mas não o pude fazer este ano”, disse. “Finalmente percebi o quão preciosos esses intervalos eram.”

Valeria Murguia, 21 anos Califórnia

Valeria Murguia estava a terminar o segundo ano de Comunicação, na Universidade do Estado da Califórnia, em Fresno, e a trabalhar em regime de meio horário no centro de saúde do campus quando a pandemia atingiu os Estados Unidos da América.

De repente, as aulas passaram a ser online e o seu salário modesto, do emprego onde escrevia mensagens nas redes sociais para ajudar os estudantes a manterem-se saudáveis, evaporou-se. Viver em Fresno, uma cidade em rápido crescimento onde o custo da habitação está a aumentar, tornou-se demasiado caro. Por isso, em algumas semanas, Murguia estava de volta a casa dos pais, na pequena cidade rural de McFarland.

Como muitos adultos universitários nos EUA, a vida jovem de Murguia deu uma volta sombria. Tanto ela como os amigos começaram a olhar para a sua saúde de forma mais séria, a estudar mais e a serem mais abertos a relações sérias.

Em casa, Murguia atirou-se aos trabalhos da universidade e ao desenvolvimento de competências que poderá vir a precisar num emprego futuro: aprendeu a construir sites, melhorou as capacidades de design gráfico e estudou organização de eventos. Também trabalhou com os pais, ambos imigrantes do México, nas vindimas.

“Isto tornou as pessoas mais sérias. Vai, certamente, deixar uma marca na nossa geração”, acredita.

Murguia, agora com 21 anos, vai formar-se em Maio, num mercado de trabalho estrangulado. Embora o mercado da publicidade tenha perdido menos empregos do que a maior parte dos sectores, não mostrou um crescimento de postos de trabalho desde Maio.

A jovem não tem dívidas de empréstimos estudantis, o que é menos um peso. E os economistas estão cada vez mais optimistas para 2021, graças aos desenvolvimentos das vacinas de covid-19. Ainda assim, o mercado de trabalho que os espera não se assemelha ao que existia antes da pandemia, onde a menor taxa de desemprego em meio século significava que muitos licenciados podiam escolher entre vários empregos.

“Estou a tentar manter-me positiva, porque se começar a olhar para as coisas negativas, começo a imaginar coisas na minha cabeça. E não quero entrar nesse jogo”, diz.

Xiong Feng, 22Wuhan, China

Xiong Feng lidera a única aula de voguing em Wuhan, um estilo popularizado pelas comunidades LGBT no final dos anos 1980.

O confinamento de 76 dias em Wuhan que, quase sem aviso, cortou as ligações da cidade com o resto da China, a 23 de Janeiro, começou meses antes do resto dos países começarem a sentir as dores da pandemia.

Xiong, como muitas outras pessoas da geração Z em Wuhan, viu a sua vida, educação e negócio envolvidos num tumulto. Ficou impedido de terminar a licenciatura lado a lado com os seus colegas. “Acho que perdi alguns amigos. As relações desapareceram porque não nos mantivemos em contacto durante a epidemia”, disse.

A cidade já regressou ao normal, depois de nenhum caso ser reportado desde Maio. Para a geração Z em Wuhan, as previsões da economia são melhores do que para outras pessoas no estrangeiro, já que os negócios e escritórios reabriram e a China se prepara para se tornar a única grande economia a crescer em 2021.

O período após a pandemia ajudou a atrair novos clientes e Xiong espera manter-se um pioneiro do movimento de dança LGBT, em 2021. “Penso que, depois da pandemia, toda a gente gosta mais de si mesma. As pessoas não trabalham tanto como dantes, por isso é natural que haja mais gente a vir dançar”, refere o professor.

No epicentro do surto de covid-19, os habitantes de Wuhan sofreram um trauma profundo durante os primeiros meses de 2020. Mas Xiong acredita que a experiência trouxe mais lições positivas para as pessoas jovens na China e no resto do mundo. “Acho que o mundo deveria ter mais paz e amor. E as pessoas deveriam parar de estar sempre a lutar umas com as outras”, disse.

Nomvula Mbatha, 32 Diepkloof Township, África do Sul

Quando a esgrimista Nomvula Mbatha terminou em primeiro lugar numa competição sul-africana de sabre, em 2019, parecia lançada para os Olímpicos. Depois, a pandemia de covid-19 começou. Todas as competições foram suspensas e o confinamento que se iniciou no final de Março dificultou os treinos para a equipa da jovem de 23 anos.

“A pandemia tem sido desastrosa para nós”, disse Mbatha, na sua casa em Diepkloof, um township a sudoeste de Joanesburgo. “Basicamente não conseguimos atingir nada. Este ano foi cancelado das nossas vidas.”

Mesmo quando as competições regressaram, Mbatha, a número um com 17 medalhas, teve imensas dificuldades em angariar fundos para participar nos eventos internacionais que lhe assegurariam um lugar nos Jogos Olímpicos de Tóquio, adiados para 2021.
Membro do Soweto Fencing Club, é uma das representantes da nova geração de atletas-estrela com dificuldades em conseguir patrocínios, numa economia marcada por baixo crescimento e elevado desemprego, especialmente para pessoas jovens.

“Não tenho uma resolução para 2021… Não quero ter porque tenho medo.”Nomvula Mbatha

Entre Julho e Setembro, o desemprego entre pessoas dos 15 aos 24 anos aumentou de 52,3% para os 61,3%, de acordo com estatísticas oficiais da África do Sul.

Enquanto os governos procuram estimular o emprego, o foco de Mbatha está nos próximos campeonatos africanos. Mais uma vez, no entanto, a pandemia turva este desejo. Um aumento recente no número de infecções motivou novas restrições. “E se voltamos a confinar?”, diz. “Não tenho uma resolução para 2021… Não quero ter porque tenho medo.”

Solene Tissot, 19 Paris

Sozinha num estúdio minúsculo em Paris, impedida de sair do país para visitar o namorado, separada dos amigos e incerta quanto ao seu futuro, Solene Tissot sentiu o peso da pandemia de covid-19 a aumentar dentro dela.

“Rapidamente te sentes a ficar sobrecarregada com isto tudo. Rapidamente te sentes a sufocar”, explica a jovem de 19 anos.

Tissot, que se mudou para Paris há dois anos para estudar no Instituto de Estudos Políticos de Paris, começou a ter consultas com um psicólogo.

Foi diagnosticada com depressão e ansiedade, duas condições que diz terem sido desencadeadas pela solidão dos confinamentos.

Estas restrições tiveram consequências na saúde mental da juventude francesa. Entre Setembro e Novembro deste ano, quando um novo confinamento foi imposto em Franca, a proporção da população entre 18 e 24 anos com depressão subiu de 11% para 21%, de acordo com a autoridade de saúde pública francesa.

Tissot já não frequenta aulas presenciais porque a universidade as cancelou. Restrições às deslocações tornam visitar amigos um acto ilegal. Há um ano que não vê os avós. A licenciatura que escolheu exige um estágio. Mas com muitas empresas a operarem remotamente, está a ser difícil encontrar uma que a aceite.

No próximo ano, iria estudar no Líbano, onde o namorado vive, mas ainda não sabe se as restrições o irão permitir.

Quando se licenciar, encontrar trabalho será mais difícil. De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, 22% das pessoas francesas entre os 15 e os 24 anos não estavam nem a trabalhar nem a estudar no terceiro quadrante do ano — mais de 19% em relação ao ano anterior.

Tissot está a pensar no futuro. Está a aprender árabe, na antecipação da viagem ao Líbano. “É verdade que 2020 não deixou espaço para grandes ânimos, e eu gostaria de ter isso de volta.”

Abdullah El-Berry, 22Cairo, Egipto

Abdullah El-Berry, um estagiário de jornalismo de desporto, de 22 anos, entrou em 2020 a achar que a vida ia ser difícil. Uma lesão grave no joelho obrigava-o a ir todos os dias à fisioterapia e afectava seriamente as viagens diárias de três horas do Cairo para a sua casa em Shebine al-Qanatir.

A partir do início da pandemia, deixou de poder continuar a fisioterapia, em consequência da sobrelotação dos hospitais do Egipto. Não pôde apresentar a tese. A suspensão de todos os eventos desportivos tornou quase impossível conseguir fazer o seu trabalho. E a sua viagem diária tornou-se ainda mais complicada, após os recolheres obrigatórios.

Agora, acha que 2021 vai ser ainda mais difícil. Com o ordenado muito baixo pago por um jornal do estado, o recém-licenciado não está confiante com a procura de emprego. “Antes, já sofríamos para encontrar um trabalho”, disse. “Agora, muitas pessoas perderam o emprego devido à crise económica da covid-19. Vai impactar toda a gente.”

A população do Egipto cresce rapidamente e mais de metade dos 102 milhões de habitantes têm menos de 25 anos, mostram dados da ONU. O desemprego é alto entre as pessoas jovens, mulheres e licenciados. Para mulheres entre os 20 e os 24 anos, com uma licenciatura, chega quase aos 50%.

Depois de anos de reformas económicas e medidas de austeridade, muitos egípcios não sabem como navegar a tempestade da covid-19. Os confinamentos paralisaram o turismo e outros sectores vitais. Berry acredita que o distanciamento físico e o uso de máscaras continuarão a controlar vidas em 2021, fazendo com que as pessoas da sua geração viagem menos e explorem novas oportunidades.

A lista de desejos que tem para o próximo ano inclui avançar na sua carreira e recomeçar o trabalho no canal de YouTube que teve de abandonar, por causa dos estudos e do coronavírus.

Galina Akselrod-Golikova, 23 Moscovo, Rússia

No início de 2020, Galina Akselrod-Golikova, 23, preparava-se para viajar de Moscovo para Itália, para um emprego de marketing e relações públicas no pavilhão russo da bienal de Veneza. Mal podia esperar para começar.

Mas o sonho nunca aconteceu: o evento foi adiado, o trabalho desapareceu e, em vez de viajar para o estrangeiro, acabou isolada dos amigos e família num apartamento em Moscovo, quando um confinamento começou subitamente em Abril.

O choque perturbou-a profundamente. Preocupou-se tanto que desenvolveu problemas de saúde induzidos por stress. Com o passar do tempo, no entanto, disse estar aliviada pela oportunidade de ter tempo para pensar.

Pela primeira vez, diz, abrandou e dedicou a sua energia a decorar o apartamento, que partilha com o namorado, com flores e mobília antiga restaurada. Não se apressou a procurar um novo emprego e, com tempo para reflectir, diz ter-se apercebido que quer inscrever-se num mestrado em estudos alimentares em Roma.

A Rússia resistiu a um segundo confinamento, de forma a diminuir os impactos da pandemia na economia. Akselrod-Golikova acredita que a pandemia trouxe muitas coisas positivas à sua vida, embora reconheça que foi mais fácil para as pessoas jovens adaptarem-se rapidamente.

“Comecei a apreciar o meu tempo como um recurso e a dedicá-lo à minha família, aos meus amigos. Comecei a conhecê-los de formas diferentes”, disse.

João Vitor Cavalcante, 19 São Paulo, Brasil

João Vitor Cavalcante, 19, trabalhou arduamente em 2019 na carreira de ciclista profissional, prestes a rebentar. Pensou que 2020 ia ser o melhor ano, até agora. Mas a pandemia destruiu esse sonho, empurrando-o para um trabalho numa oficina de reparação de carros. “O ciclismo não é fácil, é cruel, embora eu aprecie essa crueldade”, disse Cavalcante, à Reuters. “Agora não quero mais viver disso. Quero viver para fazer isso.”

Cavalcante é um dos milhões de brasileiros da geração Z que tiveram de alterar drasticamente as suas aspirações devido ao efeito da pandemia na economia.

De acordo com um inquérito financiado por várias organizações sem fins lucrativos brasileiras, cerca de 23% dos brasileiros com idades entre os 15 e os 29 anos tiveram de procurar novas formas de compensar perdas de rendimentos durante a pandemia. Cerca de 60% inscreveram-se para receber pagamentos de emergência do governo, que distribuiu mais de metade do salário mínimo no Brasil a qualquer cidadão sem um emprego formal.

Para Cavalcante, não havia outra opção. Os pais foram forçados a fechar a loja de roupa da família durante os primeiros meses da pandemia e o seu patrocinador deixou-o quando as competições foram canceladas.

O tio convidou-o a trabalhar na oficina de que é dono. “Foi a minha salvação”, disse Cavalcante. “Ou aceitava o emprego ou trabalhava por quase nada. O ano passado tinha mais ou menos um futuro, mas isso acabou.”

João trabalha agora oito horas por dia a reparar carros, um trabalho que o ajudou a suportar a família durante momentos difíceis.

Quer competir novamente em 2021, mas apenas como amador. “Em 2021, espero que as coisas regressem ao normal, que as pessoas possam ver os seus amigos e família outra vez e que valorizem os seus afectos”, disse.

Como reagiu a geração Z à covid-19? “É preciso falar dos problemas de ansiedade que a pandemia agravou”


Pandemia provocou 990 queixas nos transportes em três meses

Luísa Pinto, in Público on-line

As restrições à mobilidade relacionadas com a pandemia fizeram cair o número de passageiros, mas as queixas atingiram as 43 reclamações por dia.
29 de Dezembro de 2020, 6:30

Durante o primeiro semestre de 2020, a Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT) recebeu e tratou 7756 reclamações, o que dá uma média de 43 queixas por dia. Este número representa uma diminuição de 11% face às queixas registadas no semestre homólogo. Mas estes resultados não são directamente comparáveis, uma vez que foi neste primeiro semestre que eclodiu a pandemia de covid-19, com um estado de emergência que impôs fortes restrições à mobilidade. E a pandemia trouxe mesmo novas queixas, que significaram quase 12% do total de reclamações.

Segundo a AMT, do total de 7756 queixas recebidas, 990 dizem respeito à pandemia de covid-19, estando a maioria relacionada com “pedidos de reembolso devidos pelo cancelamento de serviços”; com o “não cumprimento de regras de higienização”; ou o “não cumprimento de regras de distanciamento físico”. E isto praticamente só no segundo trimestre, nos três meses de Abril e a Junho, período em que as medidas relacionadas com a covid-19 estiveram em vigor de forma mais intensa.

O sector rodoviário, onde se incluiu os autocarros, a cobrança de portagens, ou o serviço de táxis, recebeu 60% destas queixas, com 590 reclamações; seguiu-se o modo ferroviário, com 350 queixas (35,4% do total); o fluvial registou 41 reclamações. O sistema marítimo e portuário teve quatro reclamações e o sistema de bilhética e suporte à intermodalidade teve cinco reclamações

A AMT recebe e trata todas as queixas que são reportadas nos Livros de Reclamações que os operadores são obrigados a disponibilizar, incluindo electrónicos, mas também as que são feitas directamente. E só o facto de ter havido muito menos passageiros transportados nos vários modos face ao primeiro semestre de 2019 (-34,7% no modo ferroviário, -42,4% no metropolitano e -43,9% no modo fluvial) ajuda a perceber a diminuição do número de reclamações. Estas informações constam do Relatório sobre as reclamações no Ecossistema da Mobilidade e dos Transportes relativo ao primeiro semestre de 2020 a que o PÚBLICO teve acesso.

Na verdade, e tal como nos semestres anteriores, os modos rodoviário e ferroviário agregam quase 98% das reclamações apresentadas. Assistiu-se, ainda assim, a um aumento de reclamações no sector rodoviário e a uma diminuição no ferroviário e fluvial. No primeiro semestre deste ano, o sector rodoviário teve um crescimento de 12,6% no número de reclamações, passando para 5261. No sector ferroviário, a queda foi de 30,8%, passando de 3160 queixas em 2019 para 2188 em 2020. No sector fluvial, a quebra foi ainda mais expressiva, de 78%, para registar 141 queixas, menos 500 das que havia recebido no período homólogo. Deve ainda registar-se que o multimodal que agrega a bilhética e os sistemas de suporte à intermodalidade teve 138 queixas; o sector marítimo portuário teve, por seu turno, 38 queixas.

Mais operadores reclamados

Vale a pena identificar em que subsectores rodoviários se distribuíram as 5261 queixas registadas, para perceber que o transporte rodoviário de passageiros assegura uma quota de quase 60%, com 3118 reclamações, o que significou um aumento de 5,2% face ao período homólogo. Em causa estão, de acordo com a AMT, 84 operadores, ou seja, mais nove operadores comparativamente ao primeiro semestre de 2019. Entre as dez empresas mais reclamadas, só a Carris e a Vimeca tiveram menos queixas do que no período homólogo, respectivamente menos 35,3% e 6,8%. Todas as outras aumentaram, sendo de destacar a TST - Transportes Sul do Tejo, com mais 67,2% de reclamações, a Rede Nacional de Expressos (RNE), com mais 58,6%, e a Rodoviária de Lisboa, com mais 53%. Na globalidade, entre as razões das queixas estiveram cancelamento do serviço (14,3%), o incumprimento de horários (12,6%) e a conduta dos funcionários (10,6%).

Ainda no segmento rodoviário, mas nos outros subsectores, destaca-se o número de queixas sobre empresas de aluguer de veículos, que foram 925, e as que se fizeram junto dos operadores e gestores de infra-estruturas rodoviárias e entidades de cobrança de portagens. Aqui é que o aumento foi exponencial, de 161%, com 698 reclamações registadas. Também as queixas no subsector do transporte de mercadorias demonstrou um crescimento significativo, ao acomodar 93 queixas e um crescimento de 89,8%.

No subsector dos táxis e do transporte em veículos descaracterizados (TVDE), que tem a particularidade de não oferecer um livro de reclamações em cada veículo - o que faz com que, para reclamarem, os consumidores tenham de se deslocar à sede das empresas ou aos sites dos operadores -, há comportamentos diferentes. A AMT recebeu sete reclamações relativas a táxi (isto é, menos sete reclamações que no primeiro semestre de 2019). No caso do TVDE, as queixas que entraram na AMT aumentaram 73,8% para 212 reclamações, sendo a grande maioria das reclamações sobre pedidos de reembolso de viagens e queixas por erros na facturação de serviços. As queixas repartiram-se entre a Uber (119), a Kapten ( 91) e a Bolt (2).

No sector ferroviário, houve menos serviço prestado e menor número de reclamações. A CP foi a responsável pelo maior número de queixas, com 1494 reclamações, menos 203 reclamações do que no período homólogo. O Metro de Lisboa registou 346 reclamações, ou seja, menos 640 do que no mesmo período de 2019. Já o Metro do Porto, que transportou menos 14,9 milhões de passageiros que no primeiro semestre de 2019, teve mais 25 reclamações do que no ano anterior, registando 83 queixas pelos seus serviços.

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Algarve precisa de «grande mudança» para ser mais resistente às crises

Por Nuno Costa, in Sul Informação

300 milhões de euros que estão a caminho do Algarve serão ajuda

O Algarve precisa de uma «grande mudança para não voltarmos a passar pelo que estamos a passar». A frase é de Ana Abrunhosa, ministra da Coesão Territorial, que defende que a região precisa de ser «mais resiliente e menos dependente» do Turismo.

A governante, que esteve em Faro para lançar a obra do UAlg Tec Campus, realçou, em declarações aos jornalistas, que «o Algarve é das regiões que mais sofreu com pandemia» e que o «bolo adicional de 300 milhões de euros» do Fundo de Recuperação, especialmente dirigido ao Algarve, traz «uma grande responsabilidade» e será importante para «este processo de mudança que temos de fazer na região».

E, segundo a governante, «vai ter de fazer uma grande mudança. A região precisa de ser mais competitiva resiliente e menos dependente de uma única atividade económica», reforçou.

Ainda assim, sublinhou, «o turismo continuará a ser uma importante atividade económica do Algarve e do país».

Questionada sobre as áreas em que, não só o Algarve, mas o país, precisa de investir, Ana Abrunhosa começou por destacar a habitação. «No Algarve há o Turismo, mas muito do turismo pode transformar-se em habitação. Nós já alterámos a legislação e, agora, o Alojamento Local já pode transformar-se em habitação e temos um problema no país que é o arrendamento».

Além disso, acrescentou, «temos de investir na ciência para resolver os problemas das sociedades. Também a área social e da saúde precisam de grandes investimentos. Somos uma população envelhecida e apostar no envelhecimento ativo e saudável é uma das áreas em que eu acho que é de futuro no Algarve. Quem não gostaria de viver no Algarve? Se gostamos de passar férias, gostaríamos de viver e essa é uma área no Algarve a explorarmos. Para isso precisamos de conhecimento e das universidades e autarquias a trabalhar em conjunto».

Por isso, considera a ministra, «do bolo adicional de 300 milhões de euros que o Algarve vai ter, uma fatia importante tem de ser para a Universidade do Algarve. Se estamos a atribuir à UAlg esta responsabilidade, temos de dar-lhe os meios para desempenhar esse papel, para ajudar a diversificar a base económica da região. Mas isso, não muda de um momento para outro, vai causar dor e demorar tempo», concluiu.

Jovens portugueses estão a enviar menos SMS. 44% ainda acha que o telemóvel faz mal à saúde

Karla Pequenino, in Público on-line

Inquérito a 729 adolescentes mostra que muitos ainda acreditam que as radiações electromagnéticas emitidas pelos telemóveis são prejudiciais para a saúde, mas isso não faz com que os usem menos. É aos 10 anos que a maioria dos portugueses recebe o primeiro telemóvel.

Os jovens portugueses estão a enviar muito menos SMS. Em 2019, eram enviados mais de 100 SMS por dia. Actualmente, a média ronda as 51 mensagens diárias. No entanto, os telemóveis continuam a fazer parte das rotinas dos mais novos: é aos 10 anos que a maioria dos portugueses recebe o primeiro telemóvel (alguns usam desde os cinco anos); só 0,8% não tem; e, em média, passam 33 minutos por dia em chamadas. Visitar redes sociais, usar serviços de mensagens online (Messenger e WhatsApp), navegar na Internet e ver vídeos no YouTube são alguns dos usos mais frequentes para os aparelhos.

Estes são os números sobre a utilização de telemóveis em Portugal reportados pelo mais recente inquérito do Faqtos, um projecto do Departamento de Engenharia Electrotécnica do Instituto Superior Técnico (IST), em Lisboa, que nasceu em 2010 para informar os mais jovens sobre a radiação electromagnética que existe nos telemóveis e recolher dados sobre a forma como estes aparelhos são usados. Os questionários procuram descobrir, por exemplo, quantos telemóveis têm os adolescentes, que serviços mais utilizam e quanto tempo é que passam ao telefone.

Apesar do uso ubíquo do telemóvel, perto de 44,6% dos jovens inquiridos no ano lectivo de 2019/2020 disse estar preocupado com as radiações electromagnéticas emitidas pelos aparelhos (19,2% não tem uma opinião formada sobre o tema), mas isso não os impede de usar o telemóvel. Apenas 24% dos receosos decidiu procurar mais informação sobre o tema e a diminuição no número de SMS não está relacionada com os receios.

“Curiosamente, o número de SMS [enviados] baixou para mais de metade atingindo o valor mais baixo de sempre”, lê-se no mais recente relatório do projecto Faqtos. “Esta redução estará eventualmente relacionada com a disponibilização por parte dos operadores de tarifários com pacotes de dados incluídos e, consequentemente, à crescente utilização de canais de comunicação baseados na Internet para troca de mensagens.”

Desde que o projecto começou, já foram recolhidos 11 401 testemunhos de 138 estabelecimentos de ensino. No último ano lectivo, foram feitos 729 inquéritos (apenas 0,8% dos alunos inquiridos disseram que não tinham telemóvel próprio) em 19 estabelecimentos do ensino básico e secundário — a maior parte dos inquiridos tinha idades compreendidas entre os 15 e os 17 anos.

Regra geral, a preocupação dos jovens portugueses com as radiações electromagnéticas tem diminuído ao longo da última década. Os autores do Faqtos acreditam que isto se deve, em parte, ao uso generalizado de tecnologia de comunicações móveis que se vê actualmente.


Além dos inquéritos anuais, a equipa do Faqtos faz medições da radiação electromagnética em Portugal e organiza palestras para desmistificar ideias erradas sobre o tema. “Não é possível fazer uma avaliação objectiva dos riscos sem quantificar os níveis de radiação electromagnética a que a população é exposta para poder compará-los com limites de segurança estabelecidos por organismos internacionais de saúde”, justifica a equipa na página online do projecto, lembrando que a radiação electromagnética não é novidade.

“Estamos expostos desde sempre à radiação electromagnética. Basta pensar que o Sol é a nossa maior fonte de radiação electromagnética”, lê-se no site.

​27% dos jovens tem restrições

Tal como nos anos anteriores, os inquéritos do IST mostram que as raparigas continuam a fazer maior uso do telemóvel. Este ano, porém, a diferença não foi muito acentuada: em média as raparigas falam cinco minutos a mais por telemóvel do que os rapazes e enviam mais três SMS. Tanto as raparigas como os rapazes fazem cerca de cinco chamadas por dia.

O inquérito de 2019/2020 revela ainda que cerca de 27% dos jovens tem restrições à utilização do telemóvel por parte dos pais, em parte devido aos receios da exposição à radiação electromagnética, mas também para evitar o vício com os equipamentos ou para conter os gastos financeiros. Grande parte (50,6%) dos inquiridos gasta entre cinco e dez euros por mês, embora a despesa média mensal para todos os alunos que responderam aos inquéritos se situe nos 10,50 euros por mês. O tarifário da maioria já inclui plano de dados para acesso à Internet, mas praticamente 94% dos jovens tem acesso a Wi-Fi em casa.

O número de jovens com mais do que um telemóvel diminuiu desde 2010 actualmente apenas 6% dos inquiridos fala em múltiplos aparelhos (no começo do projecto Faqtos era 18%).

​Há motivos para preocupação com a radiação?

Por ora não há provas científicas de que exista uma relação entre a radiação electromagnética emitida pelos telemóveis e problemas de saúde ou sintomas como dores de cabeça e cansaço. A Organização Mundial de Saúde (OMS) nota que apesar do “grande número de estudos realizados nas últimas duas décadas para avaliar se os telemóveis representam um potencial risco para a saúde”, à data, “não há provas de efeitos adversos à saúde causados pelo uso de telemóveis.”

No livro A Ciência e os Seus Inimigos (Gradiva, 2017), o físico Carlos Fiolhais e o bioquímico David Marçal explicam também que a radiação dos telemóveis é “bastante segura”, uma vez que não é ionizante. A radiação ionizante, explicam os responsáveis pelo projecto Faqtos, é toda a radiação que passa pelo processo de ionização (através do qual um átomo ou molécula perde um electrão). Este processo não acontece de forma espontânea, sendo necessária a interacção de uma molécula ou de um átomo com uma radiação com níveis de energia altos. Os raios X e os raios gama são exemplos de radiação ionizante que é capaz de produzir alterações moleculares e, consequentemente, danos no tecido biológico.

Carlos Fiolhais e o bioquímico David Marçal notam, no entanto, que é importante continuar a fazer estudos para avaliar os efeitos deste tipo de radiação.

A luta para manter portas abertas: como a pandemia afectou novos negócios

Daniel Moura Borges, in Público on-line

Este ano a pandemia de covid-19 dificultou ainda mais as possibilidades de sucesso de novos empreendedores. Numa luta constante para manterem as portas abertas, os estabelecimentos que começaram a surgir no final de 2019 e início de 2020 viram os seus rendimentos iniciais reduzidos pelo confinamento.

“Tudo o que não poderia acontecer num primeiro negócio aconteceu”, diz Bruno, sentado numa mesa interior da Chasing Rabbits, uma loja de vinis que funciona também como café, da qual é dono. Juntamente com a sua parceira Ana, Bruno abriu o espaço há pouco mais de um ano, em Novembro de 2019.

Na Rua do Sol ao Rato, entre Campo de Ourique e o largo do Rato (Lisboa), Ana e Bruno decidiram começar um negócio baseado nas respectivas vivências e no que gostam de fazer. Formados na área da publicidade e do design gráfico, decidiram investir num negócio que é uma “continuidade de uma partilha musical” que já faziam em casa.

No salão principal da loja costuma está sentada uma cadela Border Collie chamada Grace. Estão expostos à venda postais de artistas conhecidos, desde Tom Waits a Lou Reed, vários pins, sacos de pano com o logótipo da loja e ainda algumas revista da área da música. Há algumas mesas para os clientes se sentarem, mas o espaço é apertado.

Em frente há uma passagem para uma pequena esplanada exterior, decorada de verde com plantas e flores. À esquerda a divisão onde estão expostos discos, livros e mais recentemente uma exposição fotográfica intitulada Do Espaço que existe entre o Princípio e o Fim, bem como um cantinho de audição de música com um gira-discos e um longo sofá em pele.

Os primeiros meses foram suficientes para se ligarem ao bairro e para conquistarem alguns clientes que se tornaram habituais, mas o sucesso do negócio é difícil de medir, precisamente por causa do início da pandemia. “Tanto pode estar a tapar um futuro muito promissor, como pode estar a tapar um futuro não muito promissor”, diz Bruno.

Quando projectaram o futuro, Bruno e Ana não equacionaram uma pandemia que levaria ao encerramento contínuo da fonte de rendimento. “Nunca achas que chega perto de casa... e de repente chega”, explica o dono. Fecharam as portas durante o primeiro fim-de-semana do confinamento, por perceberem “que as pessoas estavam assustadas” e que “já não estavam a circular da mesma forma”.

Pensaram que “poderia não valer a pena abrir” novamente, visto que o negócio estava a começar e que não tinham ainda alicerces e rotinas. “Decidimos não o fazer porque o processo já estava em curso, há dinheiro investido”, justifica. “Achámos que nos poderíamos adaptar”.

E foi o que fizeram. Abriram a esplanada exterior para haver alguma circulação de ar e a possibilidade de as pessoas manterem o distanciamento. Apostaram no formato online através do site, que agora funciona também como loja, bem como das redes sociais. Mas não foi o suficiente para colmatar as falhas no rendimento.

“Perdemos rendimento porque tivemos o espaço fechado com rendas para pagar, com fornecedores para pagar, com comida para nos alimentarmos”, diz Bruno. “É dinheiro que se foi da bolsa que era o que nos daria alguma almofada na construção do negócio. Foi-se, e está cada vez mais difícil neste momento.”

Do Estado receberam o apoio aos sócios-gerentes, mas recusaram as linhas de créditos. “É um assumir que vamos ter outra corda ao pescoço”, explica o dono.

O objectivo dos gerentes é tentar reduzir a dívida ao máximo e aumentar o lucro para tornar o negócio sustentável, mas a imprevisibilidade da pandemia tornou qualquer planeamento impossível. Encomendas de stock, contratação de pessoal, flexibilização de horários, tudo é posto em causa devido à covid-19.

“É bom ainda estarmos cá. É muito mais difícil do que era há um ano. É muito mais desgastante do que era há um ano atrás, mas ainda continuamos cá.”, confessa Bruno. “Quanto tempo vamos continuar? Não sabemos”, admite. “Temos ainda alguns indícios positivos, mas a margem de erro é gigante”.

Pôr um negócio em pausa

Um pouco mais abaixo, ainda na Rua do Sol ao Rato, abriu em Setembro de 2020 o The Whisk Café. Catarina e Ricardo, que gerem o café, conheceram-se em Angola, enquanto trabalhavam os dois na área de consultoria de gestão. Planeavam que o espaço abrisse em Maio, mas a pandemia veio adiar esses planos e pôr uma pausa em todo o desenvolvimento do projecto.

A ideia surgiu em Novembro de 2019 e o casal empenhou-se na procura de um espaço para começar a planificação e construção do café. As obras começaram em Fevereiro, altura em que abandonaram outras fontes de rendimento para se focarem no projecto. Os planos estavam feitos para abrir o mais depressa possível, mas em meados de Março, quando a taxa de propagação do coronavírus começou a aumentar em Portugal, o arquitecto desapareceu.

As obras pararam quinze dias na altura do confinamento e o espaço acabou por ser desenhado pelos donos. O The Whisk é um salão algures entre o estilo industrial e vintage com uma longa mesa de madeira ao meio, acompanhada em comprimento por um espelho na parede. Várias mesas de diferentes formatos ocupam a montra e os cantos do café e as paredes estão enfeitadas com placas metálicas de estilos diferentes. Ao pé da porta lê-se, num sinal iluminado, “The Whisk”.

Aliados à falta de arquitecto e ao adiamento das obras surgiram outros desafios. “A maior dificuldade foi por parte da EDP”, explica Ricardo. “Precisávamos de ter um aumento de potência significativa e eles não nos deram resposta. Pedimos em Fevereiro e só nos responderam em Agosto”.

Outro problema foi a entrega de equipamentos. A máquina de café do The Whisk, que veio de Itália, atrasou-se porque as fábricas encerraram devido à covid-19. O mesmo aconteceu com os equipamentos da cozinha, que vieram da Alemanha. Todo este tempo entre problemas significou apenas despesa e nenhum rendimento para os donos.

Não conseguiram ajuda financeira por parte do Estado. “Uma candidatura que fizemos em Abril, recebemos uma resposta negativa há um mês”, diz Ricardo. “De 60 e tal projectos que foram submetidos, apenas três candidaturas não foram aprovadas e a nossa foi uma delas”, diz Catarina.

“Quando o presidente da câmara de Lisboa disse que iam haver apoios para a restauração eu telefonei para a Câmara e eles disseram-me: «Você só começou actividade este ano, não tem histórico do ano passado, por isso não há nada»”, lamenta Ricardo. “Eu vou pagar na mesma os impostos, nós começámos este ano, é este ano que precisamos de ajuda”.

Associado à falta de clientes e de rendimentos está também a dificuldade em gerir um café num momento tão imprevisível. A falta de uma matriz de instruções clara e as constantes mudanças nas medidas de restrição contra a covid-19 causaram já alguns mal entendidos.

“No primeiro fim-de-semana nós fechámos porque achámos que as notícias não eram muito claras. Não queríamos estar a abrir e depois receber uma multa. Foi um rombo enorme porque depois percebemos que o fim-de-semana teria corrido bastante bem”, explica Catarina.

Segundo a empresária, o mesmo aconteceu com as segundas-feiras antes dos feriados de 1 e 8 de Dezembro, em que o café fechou mais cedo do que podia ter fechado porque as instruções não era claras.

O orçamento para o plano de negócio foi ultrapassado apenas por cerca de 10%, mas os custos fazem-se sentir nas poupanças pessoais dos donos, já que estiveram vários meses com o negócio parado e continuam na expectativa de como será o futuro.

“Quando se falava em retorno ao investimento em três, quatro anos se tudo corresse bem, hoje não consigo prever quando é que as coisas voltam ao normal”, explica Ricardo.

“Há dias em que não entram 10 pessoas na loja”

Germano Roriz, dono da mercearia de produtos brasileiros Mercadim, em Picoas (Lisboa), lamenta o mesmo: “Eu fiz um plano de dois anos. Em dois anos, teoricamente, um negócio bem administrado consegue começar a ter o seu ponto de equilíbrio. Já se passou um ano e eu estou muito longe do ponto de equilibro”.

Germano abriu o Mercadim em abriu em Novembro de 2019 com a sua mulher Flávia, depois de terem decidido mudar-se para Portugal para passar o resto da vida. A maioria dos seus clientes é imigrante brasileira que vêm à procura de produtos da sua terra. Entre as prateleiras podem-se encontrar bombons Malandro, farofa de mandioca e paçoca Moreninha do Rio, entre outros produtos tradicionais do Brasil.

Na esquina da Rua São Sebastião da Pedreira com a Rua Viriato, em frente ao Hotel Turim Europa, o negócio está posicionado de forma estratégica.

“Escolhi este lugar porque estou perto de uma agência do SEF, estou perto do Fogo de Chão que é uma churrasqueira brasileira muito movimentada, estou perto de uma Conservatória, onde os brasileiros têm de ir muito, estou perto das Finanças, estou perto do Boi Preto, que é outra churrasqueira brasileira. Ou seja, o lugar que eu escolhi é o lugar que os brasileiros frequentam”, explica Germano.

No entanto, o início da pandemia retirou alguma da relevância comercial da zona ao mercado. A agência do SEF fechou, as churrasqueiras fecharam, a conservatória também. O Mercadim perdeu clientes que entravam na loja vindos da rua, passando a depender de pessoas que vinham especificamente para fazer compras de produtos especializados. “Muitos clientes habituais voltaram para o Brasil”, acrescenta Germano.

Embora seja um negócio de bens essenciais e tenha a possibilidade de ficar aberto mais tempo que os restaurantes, o facto de ser uma mercearia especializada significa que a quantidade de clientes é mais reduzida. “Há dias em que não entram 10 pessoas na loja”, diz o empresário.

Como os donos do The Whisk, Germano também não teve acesso a apoios financeiros por parte do Estado porque não tinha rendimentos relativos ao ano anterior, e portanto teve de utilizar a sua reserva destinada ao negócio para se sustentar numa altura em que os clientes são escassos e o lucro é incerto.

“Estamos a comer a nossa reserva, o que não era o planeado. Não era suposto estarmos a usar o nosso dinheiro de reserva para morar e para comer”, explica. “O que a pandemia fez foi dilapidar aquela reserva que era específica para a manutenção do negócio até que ele se conseguisse equilibrar”.

As encomendas de stock sofreram muita instabilidade durante o início da pandemia, devido ao desconhecimento do que se passava e iria passar. Antes, como não sabiam o que se avizinhava, os donos fizeram uma compra de stock para o número de vendas que esperavam fazer. Com o início da pandemia e do confinamento, muito desse stock teve de ir para o lixo por passar a data de validade, porque não havia procura. Todas as compras de têm de ser, portanto, calculadas minuciosamente, para que não haja mercadoria em falta ou a mais.

Retomar uma normalidade de vendas a médio prazo mantém-se como o objectivo de Germano, que tem visto o negócio que construiu a sofrer com a falta de clientes, a falta de apoios e a imprevisibilidade das pessoas e da pandemia. No entanto, mantém-se optimista com o início da vacinação. “Eu só olho para a frente”, conclui.

Portugal acolhe três iraquianos, que se juntam aos mais de 600 refugiados já reinstalados

in Público on-line

Até ao momento, chegaram a Portugal 631 pessoas no âmbito do Programa Voluntário de Reinstalação do ACNUR e da Comissão Europeia, 253 do Egipto e 378 da Turquia, segundo o gabinete da ministra de Estado e da Presidência.

Três cidadãos iraquianos chegaram hoje a Portugal, elevando para 631 o total de refugiados acolhidos ao abrigo do Programa Voluntário de Reinstalação do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), anunciou o Governo.

“Os três cidadãos iraquianos [provenientes da Turquia], todos parte do mesmo agregado familiar, serão acolhidos em Loures”, refere o gabinete da ministra de Estado e da Presidência, Mariana Vieira da Silva.

Segundo a mesma fonte, até ao momento, chegaram a Portugal 631 pessoas no âmbito do Programa Voluntário de Reinstalação do ACNUR e da Comissão Europeia, 253 do Egipto e 378 da Turquia.

Estes cidadãos beneficiam do estatuto de refugiado concedido por despacho do ministro da Administração Interna, sendo titulares de uma declaração comprovativa do Estatuto de Protecção Internacional enquanto aguardam a emissão do título de residência para refugiado, nos termos da Lei de Asilo, adiantou o executivo.

“O acolhimento e a integração das pessoas refugiadas têm sido uma prioridade do Governo, num esforço contínuo que envolve Estado central e autarquias locais, bem como entidades públicas e privadas, e que tem sido reconhecido pelas Nações Unidas, pela Organização Internacional das Migrações, pela União Europeia e pelo Conselho da Europa”, considerou o Governo em comunicado.

O gabinete da ministra de Estado e da Presidência salientou ainda a “participação activa de Portugal no esforço europeu de acolhimento aos refugiados”, através do apoio às propostas da Comissão Europeia de construção de uma política europeia de asilo comum, assente nos princípios da responsabilidade e solidariedade, no respeito pela dignidade da pessoa humana e no combate ao tráfico de seres humanos.

28.12.20

Pão, rendas ou eletricidade. Os novos preços dos bens e serviços para 2021

Ana Moura // Lusa, in Zap

Ano novo, vida nova, ou neste caso, ano novo, preços novos. Todos os anos os portugueses contam com novas atualizações nos preços de bens e serviços que são considerados essenciais. No próximo ano as rendas e as portagens vão manter-se inalteradas, o preço da eletricidade vai descer e do tabaco vai aumentar.

De acordo com as atualizações dos preços para 2021 já conhecidas, o preço da eletricidade para os consumidores do mercado regulado vai descer 0,6% a partir de 1 de janeiro de 2021, de acordo com a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE).

Esta descida vai beneficiar os consumidores que ainda permanecem no mercado regulado – menos de um milhão – ou que, estando no mercado livre, tenham optado por tarifa equiparada. Já em 2020, a ERSE tinha decidido uma descida destas tarifas de eletricidade em 0,4%.

Relativamente às rendas das casas, o coeficiente de atualização para o arrendamento urbano e rural apurado pelo INE para vigorar entre 1 de janeiro e 31 de dezembro de 2021 é de 0,9997 o que, na prática, dita uma manutenção dos preços das rendas.

Este coeficiente de atualização é aplicável às rendas em regime livre, para habitação com renda condicionada e para arrendamento não habitacional, caso as partes, inquilino e senhorio, não tenham acordado condições diferentes.

O congelamento das rendas em 2021 já era esperado uma vez que a inflação média dos últimos 12 meses, sem habitação, indicador que serve de referência, foi negativo (-0,01%).

Já o pão, um dos bens alimentares mais consumidos, pode sofrer alterações negativas para a carteira dos portugueses. A subida de 635 para 665 euros do salário mínimo nacional poderá ditar um aumento do preço de venda do pão, segundo perspetiva a indústria de panificação, ressalvando que o peso e o preço deste produto são livres.

Porém, nem todos os bens e serviços estão suscetíveis a aumentos no próximo ano. Os preços das portagens nas autoestradas deverão voltar a manter-se em 2021, tendo em conta que a taxa de inflação homóloga, sem habitação, em outubro foi negativa (-0,17%).

A fórmula que estabelece a forma como é calculado o aumento do preço das portagens em cada ano estabelece que a variação a praticar em cada ano tem como referência a taxa de inflação homóloga sem habitação no continente verificada no último mês para o qual haja dados disponíveis antes de 15 de novembro, data limite para os concessionários comunicarem ao Governo as suas propostas de preços para o ano seguinte.

A estabilização dos preços das portagens em 2020 e 2021 segue-se a quatro anos consecutivos de subidas: em 2019 as portagens nas autoestradas aumentaram 0,98%, depois de aumentos de 1,42% em 2018, de 0,84% em 2017 e de 0,62% em 2016.
Transportes

Para quem usa os transportes públicos diariamente também há boas notícias. Os preços dos transportes públicos coletivos de passageiros vão manter-se inalterados em 2021, de acordo com a informação divulgada pela Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT).

Os preços das viagens no Alfa Pendular são uma exceção, aumentando 0,5% a partir de 1 de janeiro. Assim, por exemplo, uma viagem no Alfa Pendular só de ida entre Lisboa e Braga, passará de 48,50 euros (em classe conforto) e 34,20 euros (turística), para 48,80 euros e 34,40 euros, respetivamente.

No que diz respeito às telecomunicações, a NOS não vai atualizar os preços em 2021, enquanto a Vodafone disse à Lusa que “à semelhança do que aconteceu no ano passado, não estão previstos aumentos generalizados de preços”.

Já a MEO adianta que irá proceder a uma atualização do preço base de mensalidade em tarifários/pacotes, com efeitos a 1 de janeiro de 2021, de acordo com o previsto contratualmente, sendo que os clientes abrangidos foram devida e atempadamente informados.

Por fim, o tabaco deverá ser um bem com aumento de preço. O Orçamento do Estado para 2021 altera a fórmula de cálculo do Imposto sobre o Tabaco (IT), medida que, segundo os cálculos da consultora Deloitte, deverá refletir-se num aumento do imposto em cerca de cinco cêntimos por maço de cigarros e que “previsivelmente, corresponderá a um aumento de 10 cêntimos no preço de venda ao público do mesmo maço”.



O que esperar da solidariedade em 2021?

André Rito, in Expresso

Projetos Expresso. Comunidade. O ano que está a terminar representou um enorme desafio para a economia social e para as instituições do terceiro sector. Foi também um ano de gestos anónimos e silenciosos e de ajudas decisivas aos mais fragilizados

É Natal e o tempo é de balanços e perspetivas para 2021. Com o novo ano à porta, depois de quase 10 meses de pandemia e com um futuro incerto pela frente, as instituições de solidariedade social assumiram uma importância decisiva em Portugal. Foram, em grande parte, o pilar de muitas famílias vulneráveis, que se confrontaram com o desemprego, problemas de saúde, de pobreza e risco de exclusão social. Por isso a pergunta é legítima: qual é o futuro da solidariedade,

“Foi um ano muito difícil, que ainda não acabou. Tudo foi posto à prova, instituições, serviços públicos, pessoas, famílias, ciências, solidariedade, política”, começou por explicar o sociólogo António Barreto. Apesar de todas as dificuldades vividas em 2020 — com cada vez mais exemplos de pobreza agravada —, a solidariedade ficou patente nos bons exemplos de pessoas e instituições que se dedicaram a apoiar quem mais precisava. “Foi esta mistura que nos deu uma enorme riqueza para o futuro.”

A relevância da economia social e solidária já se mostrara evidente antes da pandemia. Mas num ano tão exigente como 2020, as próprias instituições viram a sua atividade ameaçada ou limitada pela crise sanitária. Um estudo desenvolvido pelos Institutos Politécnicos de Setúbal e de Portalegre alertava, no final de julho, para o risco de encerramento de uma em cada cinco instituições de solidariedade social. A redução da sua capacidade de intervenção e das próprias receitas implicou uma maior ginástica financeira — para pagar salários, por exemplo — por parte de instituições, que já viviam de orçamentos apertados.

Num contexto difícil, o futuro será feito de mudanças, embora igualmente exigente, até porque a pandemia ainda não tem um fim inequívoco à vista. “Abriu-se a discussão, que consiste em saber como é que nós vamos reagir, se vai haver muitas mudanças importantes na sociedade, no Estado, na Administração Pública”, disse António Barreto, que não acredita em grandes alterações a curto prazo. “O grande sofrimento das pessoas é querer sobreviver, reorganizar-se, recuperar meios, saúde, reencontrar as suas vidas.” É possível, conclui o sociólogo, que “com as novas experiências que foram tentadas nas escolas, nas empresas, gradualmente possa haver mudanças importantes”.

País solidário

De acordo com um inquérito do Instituto Nacional de Estatística (INE), revelado no ano passado, Portugal apresentava perto de 700 mil voluntários, que realizavam trabalho social e solidário. A taxa de voluntariado, em 2018, rondava os 7,8%. O Inquérito ao Trabalho Voluntário mostrava ainda que o nosso país estava posicionado abaixo da média da UE (19,3%) — apenas a Roménia (3,2%) e a Bulgária (5,2%) registavam taxas de participação mais baixas, por oposição ao Norte da Europa, em países como a Holanda (40,2%) e a Dinamarca (38,1%).

O desempenho de Portugal, clarificaram então os peritos do INE, explicava-se, em parte, pela cultura de participação em atividades de trabalho voluntário organizadas coletivamente e pelas suas condições socioeconómicas. Mas os números nem sempre traduziram a realidade de um trabalho tantas vezes feito de forma informal, através de apoio a familiares, vizinhos, pouco mensurável mas com um peso importante na solidariedade. Foi, aliás, este tipo de apoios que ganhou dimensão com a pandemia, multiplicando-se as iniciativas de bairro de apoio aos idosos e famílias carenciadas.

Focando os números, os últimos dados do INE revelam que em Portugal existem mais de 71 mil entidades ligadas à economia social — que representam 3,0% do valor acrescentado bruto nacional — com quadros técnicos, psicólogos, especialistas, mas sobretudo voluntários. E é a estes que, defendeu António Tavares, provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto, devem ser dadas condições. “Em Portugal, os nossos voluntários, jovens e mais velhos, não são compensados. O Estado nem um papel lhes dá a dizer que prestaram um serviço à comunidade, esse reconhecimento não existe. São as próprias instituições a pagar o seguro desse trabalho. Noutros países existem benefícios, como a isenção do serviço militar ou créditos na universidade.”

Com uma pandemia a afetar sobretudo os mais vulneráveis, os idosos, as crianças, o risco de exclusão social aumenta exponencialmente. E é aqui que se encontra o foco para 2021. Artur Santos Silva, presidente honorário do BPI, cuja parceria com a Fundação “la Caixa” atribuiu, nos últimos 10 anos, mais de €15 milhões para a implementação de 508 projetos de inclusão social em Portugal, defende que o combate à pobreza é uma prioridade para o próximo ano. “Temos quase um em cada cinco portugueses a viver em situação de pobreza. Esse é o grande desafio do sector social.”

Poucas projeções poderão ditar com fiabilidade quais serão as consequências da pandemia. A este problema soma-se o envelhecimento progressivo da população. “Os seniores são outra área importante. Como se viu nesta pandemia, as pessoas mais atingidas foram as mais velhas, pouco enquadradas pelas famílias e amigos, em lares, com alguma assistência, mas em solidão. Portugal tem uma das populações mais envelhecidas da Europa, e precisamos de ajudar a resolver os problemas destas pessoas”, concluiu Santos Silva.
VALORES SOCIAIS

€38,5
milhões foi, segundo o Observatório de Doações Covid-19, o valor entregue por dezenas de empresas nacionais e estrangeiras durante a pandemia, para apoios financeiros, compra de ventiladores, ajuda a famílias carenciadas, entre outros

111
mil é o número de beneficiários da prestação social para a inclusão, da Segurança Social. As pensões por velhice ultrapassam os dois milhões de beneficiários

228
mil é o número de pessoas que em novembro passado se encontrava a receber prestações de desemprego
AS PRIORIDADES

Acesso

Saúde O acesso a serviços de saúde de qualidade para toda a população será um dos grandes desafios para 2021. No Interior, o problema ganha outros contornos devido ao encerramento de muitas das unidades de saúde familiar e de cuidados continuados, durante o tempo em que Portugal atravessou o período de resgate financeiro. É por isso que os especialistas defendem a urgência de criar redes de cuidados assistenciais no mundo rural

Educação

Crianças Com a quebra de rendimentos das famílias, uma crise pela frente e a incerteza do vírus, o risco de pobreza e exclusão infantil tornou-se mais evidente. Por outro lado, a telescola, o ensino remoto, e os novos modelos educativos representam um desafio enorme no que respeita à equidade no acesso aos materiais e tecnologia

Capacitar

Proteção social Pessoas portadoras de deficiência em Portugal são dos grupos mais vulneráveis à pobreza e exclusão social. Em 2017, o Governo criou a Prestação Social para a Inclusão no valor mensal de €136,7 (menores de 18 anos) e um máximo de €273,39 para os beneficiários com idade igual ou superior a 18 anos. Mas os especialistas dizem que as barreiras ainda são enormes

Textos originalmente publicados no Expresso de 24 de dezembro de 2020

O direito à habitação (em oito anos)


Por Augusto Vasco Costa, Arquiteto, opinião, in Sol


Se o saldo final de cada etapa for o dobro do seu investimento inicial, reinvestido na fase seguinte e assim sucessivamente, o seu crescimento será exponencial. Isto é, se começarmos por construir uma casa e formos dobrando o seu resultado, ao fim de 16 etapas, temos 65.532 casas construídas!

«A miséria gera frustração, violência, vandalismo, revolta.

O terrorismo nasce da pobreza». Papa Francisco

Muito embora a nossa Constituição de 1976, diga que todos temos direito a uma habitação condigna e muito embora, ciclicamente, nos prometam mil milhões de euros para a construção de milhares de casas, passados mais de 40 anos, lemos que 3.300 famílias continuam a aguardar, há anos, o seu realojamento e 25.000 famílias vivem sem condições mínimas de habitar, sem contar com os sem abrigo e com a nossa «classe média tem das piores casas da Europa» vidé Expresso de 6-11-2020

A solução que se sugere, para se cumprir a Constituição e, finalmente, se realojar, pelo menos, as referidas 3.000 famílias e dar uma habitação condigna ás outras 25.000 famílias, a meu ver, será apenas necessário um investimento inicial de 150.000 e que o Governo e municípios, cedam para o efeito alguns dos terrenos e prédios que têm devolutos, recebendo no seu final, por esta cedência, 700 € por cada m2 construído.

Esta proposta fundamenta-se no seguinte raciocínio:

Se o saldo final de cada etapa for o dobro do seu investimento inicial, reinvestido na fase seguinte e assim sucessivamente, o seu crescimento será exponencial.

Isto é, se começarmos por construir uma casa e formos dobrando o seu resultado, ao fim de 16 etapas, temos 65.532 casas construídas!

Para se conseguir este objetivo, 60% destas casas, serão vendidas a preço de mercado, sendo os restantes 40%, 35% distribuídos ‘a rendas acessíveis’ pelos estratos sociais mais desfavorecidos e os restantes 5%, distribuídos pelos ‘sem abrigo’, numa primeira fase isentos de renda, para começarem uma nova vida, que lhes permita serem úteis, obterem o seu próprio sustento e assim reintegrarem-se novamente na comunidade a que pertencem: «se o teu vizinho tem fome, não lhe dês um peixe, ensina-o a pescar» provérbio chinês.

Mas porque as cidades não são só habitação, 30% da área construída, será para comércio e serviços e 5% para equipamentos públicos e sociais.

Claro que haverá sempre os desconfiados: «Como se vê, pelos 60%, o que se pretende é continuar a dar casas aos ‘ricos’ e duvidando ‘que os ‘ricos’ queiram ir viver para junto dos ‘pobres’»...

Primeiro, hà que sublinhar que, vender 60% a preço de mercado permitirá:

1. Criar as mais-valias para construir , não só 35% de casas de renda acessível e 5% para os sem abrigo, mas paralelamente, 30% para comércio e serviços e 5% para equipamentos públicos e sociais;

2. Conseguir-se mais facilmente a inclusão dos ‘pobres’ na sociedade, isto é, serão os ‘pobres a irem viver com os ricos’ e não o contrário.

Se assim não for qual a alternativa?

1. Continuar a esperar, mais 40 anos pelos milhões de euros prometidos e a situação a agravar-se?

Ou resolver em oito anos, este grave problema social, que se reflete no nosso bem estar e no nosso dia a dia?

2. Viver, nos ghettos, sejam para ‘ricos’ ou para ‘pobres’, que vão crescendo, em altura, em Lisboa e arredores, agravando mais as clivagens existentes?

Ou voltarmos a projetar, ruas e praças, à ‘escala humana’ dos nossos bairros históricos, com mais do dobro da sua densidade de construção, que proporcionam o ‘mix-social’ e verdadeiras comunidades, e por isso são lugares ‘cheios de vida’, mais seguros e cada vez mais procurados?

Vidé Martim Moniz, onde com esta forma de pensar, aumentámos em cerca de 30% a área de construção inicialmente prevista para o projeto da ‘EPUL Jovem’, para que, não só os jovens aqui habitassem, mas igualmente, para que outras gerações e estratos sociais partilhassem esta praça que, muito embora com um aumento substancial da sua densidade de construção, voltou a ser um lugar de referência, onde o mito ou preconceito, de que o ‘rico’ não quer viver ao lado do ‘pobre’ não se põe e a procura e o valor das suas habitações são crescentes.

Concluindo, vamos cumprir a Constituição?

Pela minha parte, estou pronto a colaborar ‘pro bono’ neste ‘Direito à Habitação’.

Alguém mais quer colaborar, antes que seja tarde?

Como dizia Antero de Quental: «Revolução não quer dizer guerra, mas sim Paz!

Longe de se apelar à insurreição, pretende-se preveni-la, torná-la impossível».

Quer ser família de acolhimento? Saiba como fazer

Filomena Barros, in RR

Há 1.250 crianças à espera de uma alternativa à instituição onde estão acolhidas, ou seja, que podiam estar numa família de acolhimento.

Pelo segundo ano consecutivo, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa lançou uma campanha – a LX Acolhe – para angariar novas famílias de acolhimento. Mas há dúvidas: Quem se pode candidatar? Há uma idade limite? Existem ajudas financeiras?

Até agora, já foram contabilizados 560 contactos e realizadas 16 sessões informativas (seis presenciais e 10 online). As sessões foram frequentadas por 135 famílias e sete já formalizaram novas candidaturas, de acordo com os dados avançados à Renascença por Isabel Pastor, diretora da Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar da SCML.

“Pode dizer-se que, de uma maneira geral, a reação a esta campanha de 2020 superou a de 2019”, reconhece.

Da primeira campanha, em novembro de 2019, resultaram 25 famílias de acolhimento.

A família de acolhimento é uma medida de proteção, transitória e temporária, que proporciona à criança ou jovem, que se encontra em situação de perigo, a opção de ficar num ambiente familiar, em vez de ser colocado numa instituição.

Quem pode concorrer?

Tem que ter mais de 25 anos. Mas pode ser qualquer pessoa ou família, residente em Portugal e podem ser famílias estrangeiras.

Qual a idade das crianças acolhidas?

Pode ser acolhida uma criança e jovem de qualquer idade, embora a prioridade seja dada a crianças até aos seis anos.

Há critérios de admissão da candidatura?

Há diversos requisitos, como a idade, situação familiar, condições de saúde, autonomia financeira (embora haja uma compensação financeira associada a esta medida de proteção) e as condições da habitação. A avaliação de candidatos implica ainda saber se existe “uma rede social de apoio, condições de personalidade, aspetos afetivos, e um aspeto muito importante a capacidade de se ligar a uma criança que terá o seu percurso de vida e deixará a família de acolhimento”, como explica a responsável Isabel Pastor.

Qual é a comparticipação financeira?

É atribuído um subsídio de 605 euros para crianças até seis anos, com majoração que atinge os 684 euros no caso de crianças com deficiência ou doença crónica. No caso de crianças com mais de seis anos, o subsídio é de 526 euros.

O tempo de acolhimento é definido à partida?

Não é definido à partida, mas a medida é transitória e temporária. A criança ou jovem volta para a família biológica ou é adotada, por exemplo, consoante o seu projeto de vida. A família de acolhimento não pode ser candidata a adoção.

Qual a área geográfica da Campanha Lisboa Acolhe, da SCML?

Os concelhos abrangidos na área de intervenção territorial da SCML, e como tal do Programa de Acolhimento Familiar, são: Amadora, Cascais, Lisboa, Loures, Mafra, Odivelas, Oeiras, Sintra e Vila Franca de Xira, correspondentes à NUT 3 da área metropolitana de Lisboa.

Significa que as famílias candidatas residem nestes nove concelhos?

Os interessados devem residir em qualquer dos nove concelhos da NUT 3, para se candidatarem ao Lx Acolhe da SCML.

Como apresentar candidatura?

A candidatura pode ser enviada por correio, para: SCML – Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar Largo Trindade Coelho 1200-470 Lisboa ou entregue pessoalmente, mediante marcação prévia através dos contactos 213 263 063; 910 051 226; 910 047 370.

Onde obter mais informações?

Através do site www.scml.pt ou email: servico.acolhimentofamiliar@scml.pt

Governo analisa estratégia para a pobreza

Raquel Albuquerque, in Expresso

Primeira Estratégia Nacional de Combate à Pobreza está em construção e a receber contributos da população

A comissão responsável pela elaboração da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza entregou ao Governo, na semana passada, uma primeira proposta do documento, que está agora a ser analisada, não havendo para já data para a sua conclusão. Em simultâneo, decorre também um processo de recolha de sugestões da população sobre o que devem ser as prioridades desta estratégia.

Até agora, Portugal nunca teve uma estratégia nacional de combate à pobreza, mas apenas planos de ação para a inclusão, construídos no quadro da União Europeia. Ter esta abordagem nacional servirá para assegurar que todas as medidas sociais destinadas a evitar situações de pobreza estão interligadas, articuladas, sem se sobreporem nem deixarem ninguém de fora. Não ter esta estratégia em Portugal era uma falha para a qual os especialistas em desigualdades chamavam a atenção há já alguns anos. O programa do Governo incluiu esse objetivo e a pandemia veio reforçar ainda mais a necessidade de a elaborar, uma vez que contribuiu para “degradar os indicadores de desemprego e agravar as condições materiais de muitos portugueses”, como se lê no despacho publicado em outubro, que oficializou a criação da comissão responsável pela elaboração desta estratégia.

Coordenada por Edmundo Martinho, provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a comissão é composta por mais seis especialistas, entre os quais Carlos Farinha Rodrigues, professor do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) e especialista em questões de pobreza e desigualdades. O objetivo é que esta comissão envolvesse as entidades que dão resposta à pobreza em Portugal, como a União das Misericórdias, a Cáritas ou a Rede Europeia Anti-Pobreza.

No final, esta estratégia deverá ser um conjunto de medidas muito concretas que abranjam toda a população, desde as crian­ças aos idosos, com atenção especial às pessoas com deficiência. Entre as metas está a reposição do complemento solidário para idosos para um valor acima do limiar de pobreza e, a nível local, a garantia de que os apoios existentes abrangem situações precárias na habitação, saúde, formação ou emprego, “com particular incidência nas bolsas de pobreza das áreas metropolitanas”, como refere o despacho da Presidência do Conselho de Ministros e do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, que tem esta tarefa em mãos.

Espera-se ainda que esta estratégia sirva para melhorar a análise e monitorização da evolução dos indicadores relativos à pobreza. É ao Instituto Nacional de Estatística que cabe a publicação anual dos dados sobre pobreza: os próximos, já relativos a 2020, deverão ser conhecidos em fevereiro.

DEBATE PÚBLICO

A recolha dos contributos da população para a construção desta estratégia está a ser feita através do preenchimento de um inquérito disponível no site Portugal Melhor (portugalmelhor.gov.pt). Aqui é pedida a identificação de cinco prioridades e também propostas concretas sobre o que deve ser corrigido, reforçado ou criado de novo nas políticas públicas de combate à pobreza. Numa fase seguinte, a estratégia será colocada em consulta pública.

Os especialistas não têm dúvidas de que houve um forte agravamento da pobreza e da exclusão social em Portugal, fruto da pandemia de covid-19, que também expôs e acentuou as desigualdades já existentes no acesso dos portugueses à saúde, educação e habitação.

“A vida é livre e isto é uma espécie de antivida”

Isabel Lucas, in Público on-line

A pandemia apareceu num momento em que José Gil estava a pensar a morte, o que o fez partir para a escrita com urgência, olhando o vírus ligado à crise ambiental e a políticas que tornam o futuro do homem insustentável. Fala de um apocalipse pela primeira vez anunciado pela ciência e não por seitas religiosas. E tem esperança que a mudança de política nos Estados Unidos dê uma ajuda.

À partida há perguntas sobre 2020 e o que virá depois. Por exemplo, se vier uma vacina, e depois da euforia natural de um fim de pandemia, em que espécie de mundo estaremos? Será ainda um mundo de catástrofes naturais, talvez atenuado por uma mudança de política nos Estados Unidos, mas poderemos falar de uma estabilidade duradoura a propósito do que aí vem? E se não, como é que nos vamos adaptar à instabilidade? “Temos de inventar”, responde José Gil, filósofo, de 81 anos, que afirma que aquilo a que chamamos normalidade não virá e o que vivíamos antes é mitificado.

Esperançado com a vitória de Joe Biden e as implicações que isso poderá ter no mundo, o autor de obras como Portugal, Medo de Existir ou Caos e Ritmo aplica ao momento actual temas que tem estudado ao longo da sua vida, entre eles o medo, o corpo, as alterações climáticas. É a linguagem, num momento em que lhe parece que a pandemia nos deixou sem ela, numa espécie de tactear performativo onde falta o essencial ao humano: o toque, a espontaneidade. Isso gera uma angústia que é mais do que intelectual. Tem a ver com a liberdade da vida.

Lendo muito do que tem escrito ultimamente, e também no seu livro anterior, Caos e Ritmo, há uma ideia subjacente, a incerteza do mundo contemporâneo. Nunca sentimos essa incerteza tão grande quanto neste momento?
Parece-me que é a evidência de todos os dias. A incerteza é o eco subjectivo de uma caotização, de uma não-ordenação do mundo cada vez maior. O que vivemos e o que ainda estamos a viver neste ano de 2020 confirma e mostra isso ainda mais. A pandemia mostrou-nos uma série de coisas que pressupúnhamos e víamos mais ou menos, desde as enormes desigualdades sociais, que conhecíamos, mas não sabíamos como eram planetárias, até à fragilidade e, ao mesmo tempo, ao imperialismo do sistema económico mundial. E esse sistema é o único sistema. É ele que rege as vidas planetárias inteiras, desde os países com sistemas económicos mais subdesenvolvidos aos mais industrializados.

Num desses ensaios, em Abril, escrevia que a luta pela sobrevivência física não tinha gerado até então nenhum sobressalto político nem sequer espiritual, que não gerou esperança no futuro. Passados oito meses, acha que se pode falar de alguma transformação?
Não houve mudança nenhuma, continuamos na mesma, excepto num ponto ao qual eu dou hoje uma importância fundamental, que é o facto de a democracia ter sido vitoriosa nos Estados Unidos.

Essa é a grande alteração?
Para mim, é. Ainda não nos demos conta da importância que teve esta mudança. Porquê? Porque não nos damos conta do que seriam quatro anos mais de trumpismo a mandar no mundo. Politicamente era uma experimentação de uma nova forma de fascismo – na ordem política, na ordem social. Há estudos a ser publicados nos Estados Unidos que mostram que não é só um protofascismo, é uma versão nova que não conhecíamos — que não conhecemos — de um tipo de autoritarismo e totalitarismo. O facto de a Constituição [Americana] e a relação dos americanos e das autoridades americanas com a Constituição ainda não se ter deteriorado e ter saído vitoriosa de todas as tentativas de Trump a derrubar é um facto único. Acho que a vitória de Biden e a pandemia são os acontecimentos de 2020.

Isto a que se chama apocalipse é, pela primeira vez na história, anunciado pela racionalidade científica e não por seitas milenaristas, proféticas, religiosas. Agora é a ciência que está a anunciar a possibilidade do fim da espécie

E acha que a vitória de Biden é consequência da pandemia?
Parece que não, não se sabe bem. Os estados que antes e no momento da eleição estavam mais atingidos pela pandemia votaram Trump. Digo que aparentemente não teve influência, por outro lado, vai-se dizendo que na opinião geral, mais ou menos subliminar, da população americana isso contou e conta ainda. A maneira incapaz, desordenada, criminosa como Trump lidou com a pandemia e com a doença que atingiu e está a atingir cruelmente os americanos parece que está a contar.

Isto leva-me à relação que estabelece entre a crise gerada pela pandemia e a crise das alterações climáticas. Estando Trump fora da Casa Branca a partir de Janeiro e chegando Biden, estamos perante a tal mudança em matéria de política global?
Evidente. Gostava de lembrar um artigo [Hello From the Year 2050. We Avoided the Worst of Climate Change — But Everything Is Different, de Bill McIbben] publicado na Time Magazine, um longo estudo, política-ficção, de um homem que falava dos Estados Unidos a partir de 2050. Supunha ele que a luta contra as alterações climáticas tinha sido mais ou menos atenuada para um estado quase de estagnação. Porque é que isso tinha sido possível quase para o planeta inteiro? Porque tinha mudado a ordem política? O que vamos certamente viver será uma euforia com o fim da pandemia, com o princípio da retoma económica. Uma espécie de efusão de progresso e de estabilidade na vida pessoal, social, nas expectativas para o futuro. Voltar-se-á, como já se diz, à normalidade, que não existe. Não virá a normalidade. Virão outras maneiras de viver, mas o capitalismo numérico, com toda a obrigação de teletrabalho, da cibereconomia em todos os domínios, vai expandir-se enormemente. Nesse clima de alegria geral as pessoas vão descompensar e vão entrar em grande animação. Isso já aconteceu com a pandemia de 1918. A capacidade que temos — nós a sociedade — de absorver a desgraça, de esquecer e de metabolizar e de ir para a frente é enorme. A médio prazo é outra coisa. A médio prazo não é bem uma retoma, vai haver cada vez mais uma série de catástrofes climáticas mais próximas umas das outras. E climáticas significa muita coisa. Significa deslocações de populações e sistemas de agricultura devastados. Há uma coisa que acho necessário acentuar: isto a que se chama apocalipse é, pela primeira vez na história, anunciado pela racionalidade científica e não por seitas milenaristas, proféticas, religiosas. Agora é a ciência que está a anunciar a possibilidade do fim da espécie.

Isso é um dado positivo, por um lado, por ser a ciência, e por outro preocupante.
A forma do anúncio é um dado positivo. O facto real, a possibilidade objectiva, não é um dado animador. É um aumento de angústia, mas é a única possibilidade de nós podermos fazer face a isso, de sabermos o que devemos enfrentar. Não é uma crença do tipo em que se baseia muitas vezes um certo discurso antiambientalista ou mesmo os negacionistas dos Trumps e dos Bolsonaros.

O que se mostrou com a pandemia é que temos medo e o outro pode ser um perigo. Isso é muito mau.

E que passa pelo que referia há pouco, uma espécie de recusa do regresso à chamada normalidade. Ou seja, diante desta confirmação científica, resta-nos recusar o regresso a essa “normalidade”.
Estou de acordo consigo. Mas é muito complexo, não basta dizer “temos que fazer”.

Tem que se dizer como é que se faz?
Sim, como e quem. Quem vai tomar a decisão política, como é que se conjugam interesses tão diferentes, tão divergentes, como os interesses económicos, ambientalistas, ecológicos e sociais. A ecologia não é unicamente uma ecologia ambiental. Tem aspectos societais extremamente importantes, e espirituais. É o nosso destino que está em jogo. Como é que essas divergências todas vão poder resolver-se na vida social normal, no plano político, por exemplo, entre ambientalistas, entre correntes cada vez mais poderosas da extrema-direita, antiecológica, etc.. E depois há a pressão cada vez maior das catástrofes ambientais que se vai fazer sentir numa consciência ecológica global que não estamos ainda a formar como consciência colectiva. O que precipitará uma convergência de interesses tão diferentes para que o homem dê conta que tem que mudar completamente? Mudar completamente significa mudar completamente os sistemas ecológicos, até que a própria economia tenha interesse em substituir as energias fósseis por energias renováveis. A própria evolução da política económica levará a uma mudança dos espíritos. As pessoas habituar-se-ão a ter mais em conta o interesse da comunidade em vez do interesse pessoal e do interesse de uma facção. Como é que se vai chegar aí? O que está em jogo é: ou nós soçobramos ou, para não soçobrar, mudamos radicalmente. Mudar radicalmente não temos bem ideia do que significa; ninguém tem.

Esta pandemia poderia ter sido — ou pode ainda ser — o gatilho para essa mudança? Ou ainda estamos muito manietados pelo medo do contágio imediato?
A pandemia fez-nos descobrir, não digo o pior de nós, mas muita coisa que nos impediu de ter uma acção conjunta em prol das tais igualdades. A hostilidade que existe entre uma pessoa e outra, o não podermos tocar, a maneira como obedecemos ao Estado. O estado de emergência fez-nos escolher uma coisa muito má: estamos prontos a obedecer a uma instância que entra nas nossas vidas. Temos que confinar, temos que fazer isto e aquilo e obedecer. Os efeitos estão lá e são a criação de hábitos de aceitação de que uma autoridade estatal ou um governo possam intervir e mandar na nossa vida pessoal. Isso muda completamente a nossa consciência e a própria democracia. A pandemia já mudou o campo completo de acção no espaço público, no espaço comunitário em que todos se cruzam. Já não olhamos para os outros com a espontaneidade de nos aproximarmos porque somos da mesma espécie, porque gostamos uns dos outros. O que se mostrou com a pandemia é que temos medo e o outro pode ser um perigo. Isso é muito mau.

Está a referir dois campos que também se sobrepõem, o da experiência colectiva e a experiência mais individual e mais doméstica, e nesses dois campos está o corpo. Até que ponto esta pandemia alterou a percepção do corpo?
A relação com o corpo alterou-se. Tenho a convicção de que quando chegarmos a um desconfinamento total voltaremos a seguir a vocação interna do nosso corpo, dos nossos movimentos corporais, que é a de se juntar, de se relacionar uns com os outros. O que mudou foi pior. Reduziu-nos a espontaneidade da liberdade da vida dentro dos parâmetros de segurança que distinguem os homens dos robots. A vida é livre e isto é uma espécie de antivida.

Falou da linguagem. Parece que andamos à procura de uma linguagem para nos adaptarmos a este momento, e que temos falhado. Se olharmos este ano por fases, primeiro houve uma espécie de silêncio como resposta ao vazio. Depois pediu-se a ficcionistas que escrevessem, como se só eles estivessem na posse de uma gramática possível de ser aplicada à nova realidade, e leram-se livros sobre crises anteriores. Até que ponto a linguagem se tem vindo a ajustar para falar do que está a acontecer?
Acaba de explicar muito bem aquilo que que aconteceu. Eu diria de uma outra maneira. Não é só para explicar o que nos acontece que necessitamos de uma linguagem. É [também] pelo poder performativo de toda a linguagem. Se se pediu a escritores, não era só para explicar; era para que a linguagem deles, para que a escrita deles pudesse convocar a própria realidade estranha. Para animar, para ir até à realidade. A performatividade da linguagem é essa: a linguagem convoca a realidade e convoca-nos para lidar com a realidade. Não é só a distância. Isso é a grande perda da pandemia.

O que é que o instigou a escrever sobre este momento, foi uma urgência de reflexão?
Foi certamente uma urgência. Escrevi numa certa pressão interna. Eu estava a sentir que o meu discurso já não era capaz de atingir o real, tendo a ilusão de que anteriormente o atingia. Depois outras coisas. Estava a trabalhar também na morte, e verifico que a morte é um campo de pensamento, ou não pensamento, sobre o qual muito pouco se disse. Os filósofos disseram muito pouco. É curioso. Tem a ver com a dificuldade de pensar a morte. A morte é o impensável por excelência, mesmo para os que acreditam na imortalidade da alma, na medida em que entre viver e o tempo do pós-morte há uma diferença que nos faz sempre lamentar perder a vida. Isso aponta para aquilo de que temos uma consciência mais ou menos confusa. A morte é a morte-nada, nada acontece, é o não-acontecimento absoluto. É o impensável. Se não é pensável, então faz-nos pensar e temos que pensar. O grande escrito da filosofia ocidental é o Fédon, de Platão. Mas depois do Fédon não houve muita gente que retomasse o tema. E o Fédon surgiu para negar que a morte fosse um nada. Houve imagens que me impressionaram muito, dos cadáveres empilhados, anónimos, em Manaus, São Paulo, no Irão, em Nova Iorque. Levou-me a pensar não só na morte, mas na morte através do cadáver e no que é um cadáver. Não posso precisar o que me levou até às alterações climáticas e à associação com a morte-nada. Porque há uma morte-nada na extinção colectiva.

Houve todo um novo pensamento, uma estética da morte, porque ela entrou-nos em casa através dos meios de comunicação social. O medo da morte foi o que nos manteve em casa e todos os dias há uma contabilidade de cadáveres no mundo inteiro.
E fazendo aparecer os mortos pela janela obscura e mais atroz: o cadáver anónimo. Desligado totalmente do que foi uma vida.

Isso leva-me a outro conceito trabalhado por si, o do sujeito digital que se afirmou neste tempo. Sobre isto, sobre este tempo, quem acha que tem estado a pensar melhor?
Sobre a realidade do corpo numa era digital não há muita coisa. Há autores que segui, o Bernard Stiegler, o Michel Serres. Os dois morreram há pouco tempo. Há outros autores muito importantes, pouco conhecidos. Foi publicado pela Relógio d’Água um livro de um especialista muito conhecido internacionalmente, Nick Bostrom, Superinteligência. Um livro terrível. Só tem uns cenários, cenários que ele faz e que são hiperinteligentes, sobre o pior que há no homem. Como se mata outro, como um ganha ao outro, como se chega ao topo, e tudo extremamente bem formulado e estudado. Simplesmente as premissas são de uma ideia horrível do homem e do que vai acontecer. Para ele é evidente que o que vai acontecer pressupõe certos instintos e pulsões no homem que são universais, que sempre existiram e que vão determinar a evolução da inteligência artificial.

Como é que viveu pessoalmente este tempo, o que o angustiou mais?
O que me angustiou mais, e me angustia, é uma espécie de dissolução das existências comuns, corporais das pessoas. Isto não é intelectual. Angustiava-me e angustia-me. Já não se têm as mesmas relações com as pessoas. Nós fazemos por pressupor sempre que isto é provisório; temos a máscara, mas é só por uns tempos, mais tarde havemos de tirar a máscara e falar e estar juntos. Mas não é a mesma coisa. E depois o facto de eu levar muito a sério as alterações climáticas e as consequências possíveis. O que António Guterres diz de tempos a tempos é para mim evidente. Está sempre a gritar de angústia porque está a viver a possibilidade real de nos afundarmos e de vivermos os piores sofrimentos. Inomináveis. Insisto, volto a isso, esta vitória do Biden e a derrota do Trump — sobretudo a derrota, que ele desapareça, mas não vai desaparecer, claro – é uma esperança enorme para a luta contra as alterações climáticas.

Há outra esperança relativamente à pandemia mais evidente, a vacina. Com a vacina entrou-se numa nova fase ou transformação?
Há uma imagem que circula por todo o planeta. É curioso. A imagem da luz ao fundo do túnel. Depois o túnel é mais ou menos comprido segundo as esperanças. Significa que se vai poder viver aquilo que já se vê, que parece tangível, a normalidade. Ou seja, o que nós vivíamos anteriormente. Mas o que vivíamos anteriormente é mitificado. Se se reportar a esse tempo, que é um ano, estávamos cheios de medo. De vários tipos de medo. Esse medo da morte que apareceu com a pandemia, no meu entender, veio absorver aquele medo que já estava antes a ser instigado nas populações. A vacina está a alimentar uma esperança, vai animar muita gente que precisa de ser animada, porque há um grande desânimo, um grande desencorajamento, depressões. E vai contribuir para a tal euforia de que falei há pouco. Se há um efeito mágico da vacina é este. Depois há um efeito real, que não é esse. Ainda não se sabe bem, mas vai contribuir para uma imunidade de grupo e, como queremos ver eliminado o perigo da covid-19, isso é bom, é óptimo. Mas não significa que a esperança que ela traz de cura de uma pandemia seja também esperança para a cura dos nossos males sociais.

Ou seja, voltarmos à normalidade ou a essa expressão que entretanto surgiu, à “nova normalidade”.
Tenho impressão que a nova normalidade queria dizer uma coisa que parece controversa mas é mesmo importante. Quando se dizia nova normalidade, o que se queria dizer é que as coisas serão diferentes, mas que teremos uma normalidade no sentido de viver de modo estável. Com certezas e não incertezas, com segurança e não insegurança, com previsibilidade e não com imprevisíveis. Será diferente, mas estaremos seguros e estáveis? Quer dizer, duradouramente estáveis? A médio prazo, e mesmo a curto prazo, não sabemos se vamos poder instaurar uma nova estabilidade duradoura ou se o nosso futuro vai ser cada vez mais instável por razões que têm a ver com as alterações climáticas, com as recessões económicas, com os conflitos políticos e as tensões, se vamos ser levados a uma coisa impensável na nossa história que é viver na instabilidade. Como é que nos vamos adaptar a uma instabilidade? Temos que inventar. A questão é saber encontrar as interrogações que estão nas coisas. As coisas chocam umas com as outras e quando chocam nasce uma interrogação. É preciso é apanhar essa interrogação.