27.3.23

Alimentação: como se formam os preços? Qual a relevância da margem bruta?

Victor Ferreira, in Público

O Governo diz que há preços inexplicáveis em produtos alimentares, com base em dados da ASAE. Mas uns rejeitam essa conclusão e outros declinam culpas. Por que é tão difícil apurar a verdade?

Por que é que o preço da cebola se tornou tema de artigos nos últimos dias?

Porque a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) veio a público dizer que detectou nos supermercados e hipermercados do país preços de alguns produtos alimentares, como as cebolas, em que a margem bruta aplicada pelos vendedores ronda os 45% e os 50%.

E por que é que a ASAE divulgou as margens brutas de certos produtos alimentares?

Estes dados foram comunicados numa conferência de imprensa conjunta da ASAE com o ministro da Economia e do Mar, em que ficou dito que alguns destes valores são inexplicáveis. Aliás, foi o próprio primeiro-ministro António Costa que, no final de Dezembro de 2022, revelou numa entrevista televisiva que não compreendia a evolução de preço de certos bens alimentares, acrescentando que queria que a ASAE investigasse os preços dos alimentos. Os dados do INE confirmam que a inflação nos alimentos é superior à inflação global e que não tem acompanhado o ritmo de descida desta última.

Qual é a relevância das margens brutas?

Resumidamente, a margem bruta é o valor da receita que fica para o vendedor depois de pago o que gastou para ter aquela venda. Um exemplo, para clarificar, antes de responder à questão da relevância: se uma loja compra um quilo de algo a 100 e vende a 200, então a margem é de 100. Mas o indicador da margem bruta é apresentado sob a forma de uma percentagem: é o resultado da divisão do que fica para o vendedor face à receita que teve. O quociente é multiplicado por 100, para obter a percentagem. Voltando ao exemplo: os 100 que ficaram para o vendedor a dividir pela receita de 200 dão um resultado de 0,5, o que multiplicado por 100, dá uma percentagem de 50%.

A margem bruta pode ser relevante, porque ela pode ser usada como uma das estratégias de formação de preço.

E como é que se forma o preço?

Uma economia cada vez mais digital e aberta escancarou a porta ao preço "dinâmico" (varia consoante o momento) e à chamada "arbitragem" (cobrar mais a um do que a outro por uma questão de marketing, seja ela a marca, a geografia ou o perfil do comprador). Ainda assim, pode-se simplificar e resumir o mecanismo de formação do preço a três estratégias basilares: a margem bruta estratégica; por utilidade; por comparação.

No primeiro caso, o vendedor fica com uma margem e não abdica dela. É isto que explica um fenómeno corrente que muitos consumidores têm dificuldade em compreender, que é um aumento muito maior do preço no final da cadeia. Exemplo: um produtor fornecia um produto ao custo unitário de 100 a um retalhista que optara por uma margem estratégica de 50%; como já explicado, o consumidor final pagaria então 200.

Agora imagine-se que o fornecedor passou o custo unitário de 100 para 200; como o retalhista optou pela margem bruta estratégica, vai então cobrar 400. Do fornecedor para a loja, houve um aumento de 100, quando da loja para a casa do consumidor houve um aumento de 200. Apesar disso, o que muita gente desconsidera é que a margem bruta foi a mesma: 50%.

Outra forma de definir um preço é por utilidade. A maneira mais fácil de exemplificar é pensar numa inovação. Alguém inventa o teletransporte. A utilidade dessa forma de viajar pode levar o vendedor a cobrar cinco, seis, dez vezes mais do que a viagem de avião, de uma forma mais ou menos discricionária, porque não há uma referência anterior, para comparar.

Qual é a estratégia mais comum na distribuição?

No que toca à distribuição alimentar, no entanto, a estratégia mais comum de fixação de preço é a terceira hipótese básica, por comparação com a concorrência.

Nos produtos alimentares, há sempre alguma lógica por detrás do preço, sobretudo em bens agrícolas ou alimentares de alta volatilidade, isto é, em que o preço dificilmente pode ser fixo e varia consoante a época, como anota o economista Filipe Grilo, docente da Porto Business School.

Num mercado altamente concorrencial, com muitos operadores, a variabilidade do preço seria maior, pelo menos em teoria. Pelo contrário, num mercado pequeno, há maiores riscos de uma concentração de poder em poucos operadores e é essa a situação portuguesa, como salienta Filipe Grilo, o que permite também uma concentração de preço em intervalos pouco diversos.

No caso da grande distribuição, que contrata pessoas cuja única missão é ver os preços da concorrência, há produtos em que a margem bruta é baixa ou quase inexistente, por opção. São os produtos geradores de tráfego. Estão sujeitos a essa política de preço (e muitas vezes são os produtos que aparecem em grande destaque nas campanhas publicitárias) porque embora não gerem grande lucro atraem clientes à loja. Onde depois há outros produtos em que as margens brutas são elevadas e que são, por isso, geradores de lucros.

É pela margem bruta ou pelos lucros que podemos detectar abusos?

Nem uma coisa, nem outra. Mais do que avaliar a margem bruta num momento, importaria avaliar a evolução dessa margem bruta. A ASAE já o pode fazer, porque faz relatórios mensais de preços, e o INE também tem essa informação. Porém, esta monitorização "não é fácil" e "o modelo da distribuição é muito complexo", destaca Filipe Grilo. Mais difícil ainda é perceber se um aumento destas margens é ou não justificável. Afinal, é a margem bruta que garante receitas que vão cobrir todos os outros custos. E é inegável que esses custos aumentaram no último ano, aponta o mesmo especialista.

Voltemos às cebolas. Se a margem bruta aumentou 52% nalguns casos, como diz a ASAE, isso pode ter sido a antecipação de um movimento de alta de preço. O Inverno não foi de feição para grandes produtores de cebolas como os Países Baixos, exemplifica Grilo. Portanto, a análise da margem também pouco diz sobre eventuais especulações. A própria ASAE admitiu-o, ao referir que precisa de avaliar a margem líquida para aferir se há práticas criminais.

Mas os lucros dos grandes retalhistas dispararam. Não é a prova de especulação?

Não necessariamente. Pode ser um sinal de alerta, mas pode haver muitas outras explicações. Por exemplo, uma mudança nas preferências de consumidores. Numa economia flagelada pelo aumento de custos e de juros, uma transferência de clientes para produtos de marca própria garante preços mais baixos a quem compra e margens brutas mais altas a quem vende. Em termos teóricos, desde que os restantes custos sejam controlados ou reduzidos, no final pode haver mais lucros, sem especulação.

Então é com a margem líquida que se apurará a verdade, como diz a ASAE?

É muito difícil que assim seja. A margem líquida é o que fica para o vendedor depois de pagos todos os custos e não apenas os custos variáveis. Ora, as empresas têm algum controlo sobre os custos fixos. Podem, por exemplo, antecipar despesas, investimentos, podem reforçar amortizações ou custos operacionais, podem tornar-se menos eficientes e tudo isso acaba por reduzir a margem líquida, ou, por outras palavras, podem camuflar lucros extraordinários por especulação.