9.9.07

Começar de novo quando já se perdeu quase tudo

Ana Cristina Pereira, in Jornal Público

Associação Benéfica e Previdente abriu no Porto residência solidária para ajudar infectados em situação de extrema exclusão


Pernas e braços cobertos de cicatrizes - marcas permanentes dos anos em que se injectava. Afundado no sofá, Alfredo transpira aborrecimento: "Isto não é para mim. Não é fácil lidar com regras quando não se está habituado a ter regras para nada." O "isto" de que fala é a residência de inserção de portadores de HIV/sida, gerida pela associação mutualista Benéfica e Previdente.

Inaugurada em Abril último, no centro do Porto, a Residência Os Solidários conta com 12 camas distribuídas por dois apartamentos situados em andares distintos do mesmo prédio. Acolhe pacientes do Hospital de Joaquim Urbano a precisar de cuidados extra-hospitalares e sem suporte familiar - toxicodependentes, sem abrigo ou alojados em pensões pela Segurança Social.

O HIV/sida é um problema com implicações de cariz individual e social: hospitalizações prolongadas ou frequentes, alterações emocionais, desemprego, afastamento e/ou rejeição de amigos e familiares. Quando está associado à toxicodependência tudo se complica, nota a enfermeira Sónia Veloso, da direcção da associação.

Inserção social


Alfredo morava numa pensão: "Tinha privacidade, restaurante pago. Podia almoçar das 12h00 às 15h00, jantar das 18h00 às 22h00. Fazia o que queria, ninguém me dizia nada." Não tinha, como sublinha o director da Benéfica e Previdente, Carlos Salgueiral, um projecto de inserção social e laboral. Aqui - satisfeitas as suas necessidades básicas, como administração da medicação prescrita, alojamento, lavandaria, comida -, recebe apoio social e psicológico permanente.

Quando o PÚBLICO foi à casa, Alfredo estava lá há três meses. Ao fim de pouco mais de um mês já dizia que ia sair: "Quero a minha privacidade. Prefiro estar sozinho. Isto não me está a trazer nada? O quê? Fazer o jantar? Arrumar o quarto? Tomar banho? Isso já faço!" Não estava disposto a respeitar nem a imposição de abstinência. "Se tiver de consumir, consumo. Consumo desde os 15 anos, tenho 35."

A sua atitude desnuda o quão difícil é trabalhar a inclusão de quem chegou ao fim da linha. Nem quando esteve preso deixou de consumir - cumpriu "dez anos e nove meses por roubo e furto". Morou nas ruas do Bairro de São João de Deus, na zona oriental da cidade. "Andava como um bicho, com a barba grande." Esteve lá três anos, andou "fugido por roubar os ciganos", tornou a estar lá outros três. "Uma altura, via morrer um [companheiro] por semana." Nem tais mortes o sacudiam. "Era a vez deles. Estás metida na droga, não pensas em nada. Não há sentimentos sequer."

Rotatividade elevada

A rotatividade, na residência, é elevada. "Há utentes a quem é preciso ensinar até hábitos de higiene, a maior parte não tem escolaridade mínima obrigatória", retrata Sónia Veloso. O projecto procura desenvolver competências básicas e relacionais - o que acarreta cumprir pequenas tarefas (como pôr a mesa, lavar a louça, arrumar o quarto, meter a roupa na máquina, pô-la a secar), respeitar horários bem precisos. E incentivar a formação profissional com dupla certificação.

A dirigente da Benéfica e Previdente admite fazer sentido criar residências não livres de droga para toxicodependentes em fim de linha, numa lógica de redução de danos, mas essa não é a vocação deste projecto. A frequência dos cursos recomenda "alguma estabilidade emocional, que implica abstinência" de drogas ilícitas, com eventual recurso a drogas de substituição.

Entre os seis utentes na Residência Os Solidários, três exibiam revolta, um já tinha ordem de expulsão. "A nossa estadia é paga. Para que nos querem manipular? Sabemos que querem o nosso bem, mas também não pode ser tudo como eles querem", verbalizava Alfredo. "Nem uma televisão se pode ter no quarto!" Naquele momento, estava sentado em frente à televisão com o companheiro de quarto, um queria ver um programa, outro queria ver outro. Nenhum percebia que aprender a partilhar faz parte do seu processo de inserção.

O trio não apreciava viver com "pessoas com maneiras de pensar diferentes". Amiúde estalavam conflitos. Actos corriqueiros, como fazer o almoço, parecem o cabo das tormentas. "Há pessoas que não sabem cozinhar, eles querem ensinar. Ah! Pessoas que começaram a consumir aos 12 anos! Nunca fizeram nada em casa! Vão mudá-las aos 35/40 anos?", insurgia-se Alfredo. A "única" coisa que lhe agradava era o curso de jardinagem (iniciado em Julho, interrompido em Agosto, com recomeço em Setembro). O que vale é que nem todos são assim. Como diz Luís (ver texto ao lado), "a chave é: força de vontade".

12
Número de camas disponíveis na Residência Os Solidários, distribuídas por dois apartamentos