9.9.07

Luís era um grande capeador

Ana Cristina Pereira, in Jornal Público

Luís vivia numa tenda montada entre invólucros de seringas. De quando em quando, era enxotado pela população

Em linguagem de rua, "era um grande capeador". Um capeador é uma espécie de sinaleiro. Passa a vida junto a uma boca de tráfico de droga, a orientar "clientes" (toxicodependentes) para o seu "patrão" (o traficante). "Vai ao S.! O S. é que é bom!" Acumulava estas funções com as de mensageiro: detectava dois indivíduos, cheirava--lhe a polícia, gritava: "Água! Água!" Luís tinha o seu valor como mensageiro. "Via muito bem a bófia e ver muito bem a bófia é salvar o traficante."
Dormia no baldio do Bairro do Aleixo, aglomerado de cinco torres com vista para o Douro, mercado abastecedor de droga na zona ocidental do Porto. "Sem lâmina para a barba, chuveiro para o banho", numa tenda montada entre invólucros de seringas e outros desperdícios. Nas noites frias, procurava um bafiento buraco. De quando em quando, era enxotado por moradores; de quando em quando, alguém se encarregava de queimar tendas e roupas. Agora, procura outro sentido num apartamento de inserção gerido pela associação Benéfica e Previdente.

Bairros de tráfico e consumo, como o Aleixo, atraem dois tipos de consumidores: os flutuantes (vão ali comprar a dose, partem para o trabalho ou para a zona onde realizam pequenos expedientes, regressam com dinheiro para voltar a consumir) e os fixos (fazem toda a sua vida ali). "Não é difícil arranjar dinheiro no bairro, um gajo tem é de se saber fazer à vida." A par dos traficantes, há os enviados (intermediários entre o traficante e o cliente), os capeadores, os mensageiros, os picas (preparam doses alheias, ajudam os "clientes" a injectar-se; recebem em troca cigarros ou pequenas porções de "caldo"). Estes podem assumir funções de vendedores (fornecem materiais como caricas, seringas, limões, água ou cigarros).

O rodopio é permanente na Torre 1 (as outras são usadas como pontos de recuo). Luís sentia "culpa quando um traficante era apanhado, mesmo que não estivesse a capear para ele". Todos os capeadores com brio a sentem. "O traficante é uma pessoa muito dura", mas é quem garante a dose. "Tive um traficante que me queria tirar de lá, ele disse: "Vais fazer um tratamento senão vais marar"."

O perfil dos "patrões" alterou-se. "Os miúdos tomaram conta do tráfico nos bairros." Não são barões da droga, como se vê nos filmes, são pequenos e médios traficantes. "E isto que agora se vende nem é droga, é medicação." As doses saem muito adulteradas. Luís sabe como é que o produto chega assim ao mercado. Tinha "um dom" - "Tenho um jeito maluco para cozer e embalar cocaína e para martelar heroína."

Não culpa o contexto. Era um miúdo atlético no seio de uma família funcional. Jogava futebol num clube local. De repente, mudou de rumo (ou perdeu-o). Começou a consumir aos 13 anos. Por curiosidade. Há quatro meses, quando entrou no Hospital de Joaquim Urbano, no Porto, era um farrapo de quase 33 anos. Tem 1,75 metros, pesava 41 quilos. Não procurava "comida de lume, leite, essas coisas". Comia uma bola de Berlim e era como se tivesse comido "leitão e batatas".

A droga tomou conta de toda a sua existência. No início da carreira, Luís pedia dinheiro aos pais. Depois, começou a roubá-los. Um dia, foi com uma carrinha a casa carregar os móveis que restavam. "Dizem que é possível levar uma família à miséria, é verdade." Quando caiu no Aleixo, tornou a guiar-se pelo instinto de sobrevivência. Não sai dali nem para ir às consultas.

"Um toxicodependente inventa dinheiro. Consumia mais quando estava no bairro do que quando desgracei a minha família", comenta, no rescaldo de um telefonema do pai. Consumia no meio "das bactérias, dos vírus, do lixo". Agora, sonha ser capaz de usar essa força que o fazia enfrentar o inferno para calar a ressaca em metas mais positivas.

Já tentou definir a droga. "A droga é um bem que Deus criou, que a gente gosta mas não se pode tocar. A droga tira o gosto pela vida. Não somos felizes com nada, só queremos mais droga. A droga nunca chega." Mirrou, perdeu os dentes, contraiu HIV - "Apanhei uma seringa do chão, lavei-a com água, usei-a. Andei a chutar de 1990 a 98. Não era nada cuidadoso com as seringas. Tenho o HIV incubado."

Resistiu seis anos no interior do degradado Aleixo. Saiu de lá com uma overdose. "Branco como um cão, a roupa toda suada." Internado no Hospital de Santo António, foi transferido para o de Joaquim Urbano. Fez uma desintoxicação, foi medicado, inserido num programa de metadona, ingressou na Benéfica e Previdente.
Já tirou bilhete de identidade, cartão de contribuinte, cartão do serviço nacional de saúde, já preencheu o requerimento para rendimento social de inserção (RSI). Já toma banho todos os dias, já tem horários para as refeições, já pesa 61 quilos.
"Aqui tenho casa, boa comida, medicação. A medicação dá-me uma ajuda louca", diz, sentado numa cadeira de esplanada, com vista para a roupa a secar. Planeia iniciar um curso de mecânica de automóveis em Novembro. O curso dar-lhe-á equivalência ao 9.º ano. Os pais alegraram-se. Depois do grande desgosto, o filho está a dar-
-lhes "um grande prazer".

Não é a primeira vez que faz um tratamento, já tentou deixar a droga muitas vezes - "se eu disser 20 é porque foi mais". Das outras vezes, ao fim de uma semana estava a consumir. Agora, nada o "puxa para a droga". Mas sabe que a tentação vai atacar. "A chave é: força de vontade."