10.9.07

Quando a realidade ultrapassa a teoria...

Elisa, Ferreira, Eurodeputada, Jornal de Notícias

Na passada terça- -feira dia 4, Cavaco Silva, terminando a sua alocução formal ao Parlamento Europeu, foi ovacionado de pé e com um entusiasmo inusitado por parte dos Deputados Europeus, em particular os da ala esquerda. Houve elogios e cumprimentos de elementos do Grupo Socialista de várias nacionalidades e não foram poucos os que vieram confirmar qual era, afinal, a origem partidária do nosso representante máximo.

Admito que muitos dos leitores não tenham tido oportunidade de ler a referida alocução na Internet; no entanto, vale a pena fazê-lo. É que, em lugar do discurso mais esperado - eventualmente centrado, pensava eu, nos factores de competitividade internacional da União Europeia ou em algo de semelhante -, o que o Presidente da República abordou foi a necessidade de a Europa colocar os valores da solidariedade, quer interna quer internacional (em particular em relação a África), no centro da sua agenda política e desenvolver, para tal efeito, mecanismos de intervenção adequados, inovadores e, sobretudo, eficazes. Neste caso, a citação dos "pais da Europa" escolhida foi a declaração de Schuman de 1950 " A Europa (...) far-se-á por meio de realizações concretas que criem em primeiro lugar uma solidariedade de facto". E Cavaco Silva acrescentou: "Questiono-me sobre se não estaremos no limiar da eficácia das políticas tradicionais de protecção social"; deixando no ar diversas sugestões, como a da necessidade de criar novas oportunidades de partilha da riqueza colectiva, de valorizar as relações entre o Estado e a sociedade civil no combate à exclusão e de transformar a educação e a formação em veículos activos de inclusão social e acesso à partilha daquela riqueza.

O discurso evocou existirem 75 milhões de europeus no limiar da pobreza, assim como que a desigualdade na distribuição de rendimento tem sido crescente dentro da Europa e que "os idosos, os desempregados (…), os isolados e as famílias monoparentais [são] os grupos sociais que enfrentam maior risco de pobreza"; sublinhando ainda, em relação à específica situação das crianças, que há Estados Membros em que "uma em cada três crianças está em risco de pobreza".

Mas, afinal, qual é a surpresa? Haverá alguém que não tenha já ouvido antes estes dados e este tipo de alertas? Claro que sim. Só que a diferença é ouvi-los provindo do espaço do centro-direita, o lado do espectro partidário que tradicionalmente defendia convictamente que, com alguns matizes, o livre funcionamento das forças de mercado acabaria por garantir o bem-estar colectivo, assim acabando por apenas deixar de fora os que na prática, por preguiça ou laxismo, se auto-excluíam.

A verdade é que os discursos mudam. E, neste caso, algum paralelismo poderá ser feito em relação a certas declarações de Sarkozy, talvez a voz crítica mais audível, entre todos os responsáveis políticos da Europa, da política monetária europeia. É que, tradicionalmente, a direita e o centro-direita, interpretando à letra as recomendações monetaristas, tendiam a defender a autonomia total e absoluta do Banco Central Europeu (BCE), assim como as vantagens de que o seu mandato se limitasse ao controlo da inflação e a uma regulação tão minimalista quanto possível das operações dos bancos.

A questão é que, em muitos dos países em que o crescimento económico é particularmente frouxo e nos quais o desemprego e os problemas sociais preocupam - como é o caso da França (ou Portugal) -, é hoje difícil, quase impossível mesmo, explicar aos cidadãos a razoabilidade de o dinheiro europeu se tornar simultaneamente, por opção dos seus próprios decisores, cada vez mais caro para as famílias endividadas, para as empresas e para as exportações (face aos concorrentes internacionais). Há, pois, razão para perguntar, como a chamada "esquerda" o tem feito se, à semelhança do que acontece nos Estados Unidos, o BCE tivesse que se preocupar também com o desemprego e o crescimento económico, não zelando apenas pelo risco de inflação medido pela massa monetária, seriam as suas opções iguais? Ou ainda: será aceitável que o BCE, para preservar a sua inquestionável independência, não tenha de prestar contas a ninguém (ou só marginalmente o faça em relação ao Parlamento Europeu)?

O que antes parecia uma matéria grata à "esquerda", é hoje tratada no mesmo sentido pelo Presidente (de centro-direita) da França! A minha interpretação não é a de que a "direita" esteja a "ficar de esquerda"; penso, isso sim e infelizmente, que a realidade talvez se tenha vindo a tornar tão dura que já não é possível encobri-la com meros discursos teóricos. Restando por saber se não teria sido possível evitar, por antecipação, alguma dessa violência. O que sintetizo com mais uma frase lapidar do discurso de Cavaco Silva (mesmo que se reconheça o pendor social-democrata que desde sempre o caracterizou, alguém acertaria no nome do autor?) "É certo que, sem crescimento económico, não haverá progresso social. Todavia, insustentável e inaceitável, é o crescimento económico assente na destruição social."