6.9.07

Ser humano

João Wengorovius Meneses, Gestor das ONG TESE e Chapitô, in Diário Económico

Para milhões de seres humanos uma “vida de cão” (americano) seria o melhor que lhes poderiam dar.

“A fome e a violência são absurdos de tal modo estampados na cara do mundo que, quem a isso não é sensível, é porque não se chegou a integrar na espécie humana”.
António Alçada Baptista


Segundo uma edição de Agosto da revista “BusinessWeek”, em 2006 os americanos gastaram 30 mil milhões de euros com os seus animais domésticos. É o resultado de dois terços possuírem animais domésticos, mas sobretudo da exuberância com que estes são tratados: jóias, ginásios, alta costura, seguros, alimentação ‘gourmet’, hotéis de luxo, cirurgia estética e, inclusive, consultas de psicologia, são cada vez mais comuns para cães e gatos. A semana passada morreu Leona Helmsley, deixando mais de 8 milhões de euros à sua cadela. Para milhões de seres humanos uma “vida de cão” (americano) seria o melhor que lhes poderiam dar.

Se à indústria de animais domésticos somássemos, por exemplo, o valor das indústrias de bens de luxo, de cosméticos, de armamento e de brinquedos, teríamos o necessário para acabar com a fome e a exclusão social no mundo. Claro que estas indústrias contribuem para gerar rendimento e desenvolvimento, bem como a felicidade de muita gente. Mas as indústrias do supérfluo também representam escolhas. Escolhas que temos o dever de questionar, porque as escolhas que podemos fazer afectam o mundo dos que não podem escolher.

Diariamente, a pobreza e a exclusão social humilham mais de um terço da população mundial. Elas criam as condições para todos os tipos de violência. A fome nos países pobres ou a violência urbana dos motins em Los Angeles, em 1992, ou em Paris, em 2005, são apenas duas modalidades de exclusão social, a provar a necessidade de sermos cidadãos empenhados, local e globalmente.

Como escreveu Fernando Nobre, da ONG AMI: “A questão da exclusão social, a não ser encarada e resolvida, é uma questão que vai revolucionar a Europa e o resto do mundo e que poderá pôr em causa a própria democracia. A democracia só estará garantida se nós, cidadãos, estivermos atentos, agindo para que certos direitos e deveres sejam garantidos. Nesse sentido, a ética e a justiça são fundamentais: não há mundo possível sem uma ética que veja o Homem como cerne de todas as questões”.

Em Portugal, um quarto da população encontra-se em situação de pobreza ou risco de exclusão. Neste momento, a cintura urbana de Lisboa está madura o suficiente para que nela possa ocorrer o mesmo tipo de motins de Paris. Segundo o Ministério da Administração Interna, em 2006 havia na Área Metropolitana de Lisboa 87 bairros de risco, 38 dos quais de alto risco. São centenas de milhares de pessoas com vidas degradantes e histórias de exclusão. Por exemplo, no Vale da Amoreira (de alto risco) vivem cerca de 15.000 pessoas, mais de 40% das quais com idade inferior a 25 anos. São esses jovens que, sem família e sem boas soluções de inserção social, formal e não formal, constituem a bomba-relógio que cerca Lisboa.

E perante esta realidade temos um Estado falido e com pouca imaginação, empresas autistas, um terceiro sector estagnado e uma sociedade civil pouco mobilizada. Aproveito, porém, para destacar três boas notícias:

Relativamente ao Estado, o “Programa Escolhas” é um excelente programa de inclusão social para jovens que acaba de entrar na terceira fase, com um investimento de 21 milhões de euros e 40 mil beneficiários.

Relativamente à sociedade civil, em 2005 os contribuintes deram 1,47 milhões de euros para instituições religiosas e sociais, através da opção de alocar directamente 0,5 por cento do IRS liquidado. Foram uma minoria mas quase o triplo face a 2004. E como em 2006 a receita do Estado com o IRS foi de 8,25 mil milhões de euros, o potencial de financiamento para essas instituições é de 412,5 milhões de euros.

Por último, relativamente ao terceiro sector, foi lançado o projecto “ser humano”, que visa o acompanhamento à distância de crianças órfãs de Moçambique. Se há um lugar para o amor numa economia (felizmente) liberal ele tem um endereço: www.serhumano.org.