Catarina Gomes, in Jornal Público
Reforma quer que estabelecimentos de ensino regular acolham cada vez mais menores com necessidades especiais. Uma organização ajuda as crianças a aprenderem a defender-se
Os alunos portadores de deficiências que frequentam o ensino regular são "vítimas preferenciais" de violência física e psicológica por parte dos colegas de forma continuada (o que é designado como bullying), constatam vários especialistas. A Federação Nacional das Cooperativas de Educação e Reabilitação de Crianças Inadaptadas (Fenacerci) já deu mesmo formação a crianças para se aprenderem a defender e a pedir ajuda.
Seis alunos com necessidades educativas especiais da escola básica de Lagos, em Vila Nova de Gaia, terão sido maltratados por um professor que lhes colocava papel na boca para que se calassem. Os pais apresentaram queixa-crime ao Ministério Público, foi noticiado na semana passada. A Condeferação Nacional das Associações de Pais (Confap) tem na próxima sexta-feira uma audiência com o procurador-geral da República onde o tema principal é a violência escolar, mas onde as agressões a crianças de ensino especial também poderão ser abordadas, explicou o seu presidente, Albino Almeida.
O caso de Vila Nova de Gaia é grave mas excepcional, dizem os especialistas. Quando se fala de violência exercida sobre deficientes em meio escolar, os casos mais frequentes são mesmo entre colegas, através do fenómeno do bullying, que encontra nestes alunos vítimas de eleição.
Os últimos números do Ministério da Educação contabilizaram 49 mil alunos com necessidades educativas especiais no ano passado, cerca de 90 por cento estão no ensino regular, sete por cento em Cooperativas de Educação e Reabilitação de Cidadãos Inadaptados (Cercis) e quatro por cento em colégios de ensino especial, enuncia Rodrigo Queiroz e Melo, da Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo. Com as recentes mudanças legislativas nesta área, o Governo pretende que a escola regular seja cada vez mais o destino de eleição e, só muito excepcionalmente, o ensino especial.
Mas nas escolas de ensino especial "há um ambiente controlado com atenção individualizada. Estão mais protegidos", nota Queiroz e Melo. No ensino regular, "nalguns casos estas situações [de violência] são um problema: são escolas de 500 a 600 alunos com cinco ou seis alunos deficientes".
Porque "o problema existe" a Fenacerci chegou mesmo a ter um programa especialmente criado para tentar evitar a agressividade contra miúdos que são "vítimas preferenciais", lê-se na brochura que foi distribuída. A responsável do projecto, Sandra Marques, afirma que à medida que vão sendo incluídas cada vez mais crianças portadoras de deficiências no ensino regular, como pretende o Governo, é preciso acautelar este tipo de situações e estas acções pedagógicas tornam-se ainda mais necessárias. "Era preciso uma campanha".
No programa que coordenou, que teve fundos europeus, ensinava-se os menores a identificar as situações de bullying, dizendo-lhes por exemplo que chamarem-lhes nomes também é violência. O passo seguinte era transmitir-lhes o que podiam fazer. Acima de tudo, "não serem passivos, não se calarem. Porque é que me estás a fazer mal?", deveriam perguntar. Dizer-lhes também onde se podiam dirigir.
Mas há crianças com deficiência sem capacidade sequer para se queixarem e aí cabe aos que os rodeiam saber detectar sinais, tarefa que cabe tanto a pais como a professores. Se um miúdo passa "de ser expansivo a retraído este pode ser um sinal", afirma Sandra Marques, que é técnica de educação especial.
A outra parte do programa anti-bullying foi ir às escolas com peças onde se teatralizavam situações de violência entre colegas, desta feita para sensibilizar os potenciais agressores, explica Sandra Marques. Há idades em que há mais propensão a juntarem-se para gozar contra quem é mais vulnerável, "por dinâmicas de grupo, porque têm medo que façam o mesmo com eles". "É preciso que contem aos responsáveis quando virem uma situação de violência."
Isabel Cotinelli Telmo, presidente da Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo, afirma que o problema não se coloca ao nível do ensino básico mas sim na adolescência e não nas aulas, mas nos recreios com vítimas "tão ingénuas" como podem ser os autistas, sublinha. Para detectar estas situações no ensino regular, é preciso "mais pessoal", sublinha. Em relação à nova legislação, tem esperança: "vamos ver se há apoios" e isso coloca-se tanto ao nível do desenvolvimento das capacidades académicas destes alunos no ensino regular como à forma como desenvolvem as relações interpessoais.
"Se os mais tímidos e frágeis já são vítimas, estes alunos podem ser vítimas preferidas, é o tontinho, o parvo." O bullying tem o reverso da medalha, há miúdos que integrados no ensino regular não aguentam "a sensação das suas incapacidades e tornam-se violentos", sublinha Isabel Vaz Pereira, directora de um colégio de ensino especial, o Eduardo Claparède, em Lisboa. "São precisos ambientes calmos e grupos pequenos" e que eles saibam onde bater à porta se houver problemas - de uma psicóloga, por exemplo. E muitas vezes o ensino regular não dá esse tipo de apoio. "Não é por lá estar que estão incluídas", pode haver "pseudoinclusão."
6 alunos de uma escola de Gaia terão sido maltratados por um professor que lhes punha papel na boca para que se calass em "O Estado tem obrigação de trabalhar para que o ensino inclusivo seja um sucesso", defende defende Catarina de Albuquerque, do Comité Português para a Unicef. Na sua opinião, para se evitar a violência na escola, os curricula escolares deveriam passar a incluir a temática dos direitos humanos e as questões da tolerância. "Nós achamos que basta uma lei e uma constituição bonita e aquilo faz efeito. Há que torcer o pepino de pequenino." A responsável sublinha que já há países onde se investe na educação de pais, professores e colegas para "a cultura do respeito pela diferença". Um relatório mundial da Unicef sobre violência escolar sobre crianças decidiu evidenciar o que de bom se faz, em vez do negativo. Na Suécia, por exemplo, todos os pais, nas aulas de preparação para o parto, são obrigados a receber formação sobre violência escolar.
Catarina de Albuquerque lembra que a 3 de Maio será adoptada a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, que consagra o direito à educação inclusiva e a obrigatoriedade de o Estado apoiar as famílias de pessoas com deficiência. O documento dá a possibilidade de os menores e dos seus cuidadores apresentarem queixa na ONU contra a violação dos seus direitos pelo seu próprio Estado. Portugal ainda não assinou o documento.