27.4.08

A "crise-surpresa" há muito anunciada

Ana Fernandes, in Jornal Público

Após décadas de preços artificialmente baixos, mercados distorcidos e uma procura crescente fizeram explodir o caldeirão, só apanhando desprevenido quem não quis ver o que fervilhava


Não foi por falta de aviso. O programa das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) está a alertar desde Junho de 2006 para o que se estava a preparar. Ninguém ligou. Agora instalou-se o pânico e muitas das medidas que estão a ser tomadas - ou sugeridas - resolvem pouco. Pior: agravam os problemas, como é o caso do encerramento de fronteiras.

Boa parte da resposta está onde até agora ninguém apostou: nos pequenos agricultores dos países pobres. A crise tem apenas um lado positivo: exigir que se volte a pensar e a apostar na agricultura. Mas isto não muda o essencial: não há falta de alimentos, há um problema de acesso a estes.

As causas estão diagnosticadas: uma curva ascendente da procura devido ao aumento do nível de vida da China e da Índia, que começou a introduzir carne na sua alimentação, que não foi acompanhado pela oferta por causa de anos climatericamente adversos. A isto, acrescentou-se uma subida dos custos de produção por causa do petróleo, da muita especulação e dos biocombustíveis. "Foram os fundamentos do mercado", sublinha ao PÚBLICO Abdolreza Abbassian, economista da FAO.

Mas se foi o mercado a gerar a crise, não será ele a resolvê-la. Primeiro porque na agricultura, nada funciona do dia para a noite. No campo, as escalas temporais são anuais. Não é uma fábrica que, de um dia para o outro, consegue duplicar a produção para responder à procura. Segundo algumas projecções, para um aumento de preços de oito por cento, a oferta sobe entre um e dois por cento.

Depois porque há poucos mercados tão distorcidos como o dos produtos agrícolas. Os preços têm-se mantido artificialmente baixos: de 1974 a 2005 os preços reais caíram 75 por cento. Nos países ricos, os agricultores têm sido subsidiados para que os consumidores tenham acesso aos alimentos ao menor preço. Nos países pobres, os preços foram também controlados pelo poder político - para evitar tensões sociais -, mas os produtores não foram compensados.

Isto para além das barreiras e das tarifas que os países ricos impõem às importações, que aumentaram ainda mais a distorção.

Para este imenso caldeirão contribuíram ainda políticas seguidas nos EUA e na Europa contra os excedentes. As reservas têm vindo a cair e são a única resposta imediata aos aumentos de procura.

Agricultura abandonada

Para agravar tudo, há anos que se sente um desinvestimento na agricultura - os apoios a este sector nos países em desenvolvimento são menos de metade do que eram em 1984. Joachim Von Braun, director do Instituto Internacional de Pesquisa sobre Política Agrícola (IFPRI, na sigla inglesa) lembra que a revolução verde dos anos 60 levou a maior abundância de comida e mais barata, o que beneficiou tanto agricultores como consumidores. "Isto foi possível com grandes investimentos em pesquisa agrícola e desenvolvimento", escreveu Von Braun. "Infelizmente, a agricultura caiu na lista das prioridades a partir dos anos 90 e agora estamos a pagar por esses anos de negligência."

A produção era abundante e os problemas da fome deviam-se sobretudo a problemas de acesso aos alimentos e não à sua escassez, pelo que a agricultura deixou de ser uma prioridade. Isto ainda é verdade, pois a produção triplicou nos últimos 30 anos. Mas, se na Europa e nos EUA, os aumentos da produtividade já não são o que foram no passado e há, sobretudo entre os europeus, resistência aos transgénicos, nos países pobres há um enorme potencial para explorar, caso se desenvolvam tecnologias dirigidas às especificidades dos solos e dos climas e se aposte em infra-estruturas.
O primeiro sinal de que o mundo tinha voltado a acordar para os problemas da agricultura foi dado pelo Banco Mundial. No seu relatório de 2007, anunciou que ir dar prioridade ao sector. Só que a aposta em investigação agrária e tecnologia e em infra-estruturas de transporte e comercialização demorará pelo menos 15 anos a produzir resultados.

Oportunidade ou risco?

Sabendo-se que dos três mil milhões que vivem nas zonas rurais, três quartos estão entre os mais pobres do planeta, não seria esta a oportunidade de aumentar o rendimento destas comunidades? Seria, se os agricultores estivessem a receber pelo que os consumidores estão a pagar. Mas, com excepção dos produtores ricos, quase todos são prejudicados pelas medidas proteccionistas impostas pelos governos para fazer face à tensão social. Fora que os agricultores também são consumidores, pelo que estão também a ser afectados pela alta dos preços.

Já a fome alastra cada vez mais, expandindo-se pelas zonas urbanas - há mais 100 milhões a ser empurrados para a pobreza, alertou Robert Zoellick, presidente do Banco Mundial. Os mais pobres também sentem mais esta alta de preços: segundo Gary Becker, um economista da Universidade de Chicago, citado pela revista The Economist, o aumento de um terço do preço dos alimentos reduz em três por cento o nível de vida nos países ricos e em 20 por cento nos pobres.

O normal seria que perante o aumento da procura e dos preços, os agricultores plantassem mais. "Num mundo ideal, talvez, mas no mundo real não é assim", sublinha Stacey Rosen, economista do Departamento norte-americano de Agricultura, citado nas análises do IFPRI.

"Num mundo perfeito, onde os produtores têm acesso a sementes, fertilizantes, e outros inputs, e onde os sistemas de transporte e comercialização funcionam bem, haveria uma resposta aos altos preços com maior produção", refere Rosen. Isto apenas se aplica aos agricultores dos países ricos, que estão a reagir, ou a nações onde o Estado está a ajudar os agricultores, como é o caso da Índia.

Mas em boa parte do planeta não é o que se está a verificar. Descapitalizados, os mais pobres não só não investem como desinvestem, pois não aguentam os custos de produção. A situação complica-se ainda mais com a expansão das zonas urbanas, que roubam solo agrícola. E, em cima disto, como nota Regina Birne, do IFPRI, o aumento dos preços dos alimentos poderá levar à subida do preço do solo, que se tornará acessível apenas aos grandes proprietários e empresas, empurrando ainda mais para a pobreza os pequenos agricultores.

"Não é com donativos alimentares - com excepção daqueles para situações extremas - que vamos lá e muito menos com o levantamento de barreiras à exportação, como alguns países fizeram, o que apenas impede que os agricultores ganhem com este pico, incentivando-os a investir", diz Abdolreza Abbassian. "Tal como a FAO diz há quase dois anos, tem de haver apoios financeiros para que os consumidores possam comprar os produtos, compensando os produtores pelos seus custos, e para munir os agricultores de meios de produção [sementes e fertilizantes] para que possam aumentar a oferta."

Apoiar os pequenos agricultores parece ser a chave do sucesso: de uma penada, combatia-se a pobreza, conseguir-se-iam maiores produtividades já que se parte de uma base muito baixa e ainda se protegia o ambiente, impedindo que se devastassem mais áreas naturais, quando, por falta de métodos apropriados, os camponeses deixam para trás solos exauridos e avançam para dentro das florestas.