29.4.08

Na Mauritânia cada refeição é um sacrifício

Anthony Faiola, Nouakchott, in Jornal Público

É a venda do último gado que deixa os peritos mais preocupados. Temem que acelere uma crise que poderia aproximar-se às fomes em grande escala


Mesmo antes de se lançar com a faca à garganta da cabra, Likbir Ould Mohamed Mahmoud sabia que só estava a piorar as coisas. Nesta cidade sedenta no extremo do Sara, a cabra dava-lhe o leite com que enchia os estômagos da família ao pequeno-almoço. Mas à medida que o disparo dos preços em todo o mundo ataca forte nas nações mais pobres de África, ele viu-se obrigado a imitar muitos vizinhos que matam ou vendem as suas únicas fontes de riqueza - os animais.

Ao sacrificar a sua cabra, no mês passado, o pastor e trabalhador à jorna de 39 anos trocou o leite matinal da família pelo jantar. Durou alguns dias. Com a família incapaz de pagar os galopantes preços dos alimentos básicos, diz Mahmoud, os dois filhos mais pequenos choram agora todas as manhãs com fome. Um dia, ele não aguentou mais. Levou a cabra bebé - um dos dois últimos animais do seu rebanho - ao esquálido mercado de gado na esperança de a vender para comprar comida. "Tudo - o arroz, o trigo, o açúcar e as rações - está mais caro que nunca", diz. "O que é que vamos fazer? Em breve não teremos nada para vender."

Como quase todos os outros países muito pobres do mundo, a Mauritânia foi apanhada na armadilha da alimentação global. Produz apenas 30 por cento do que a sua população come e importa o resto. E, com os preços em escalada, os que têm menos são os mais afectados, enquanto o mundo confronta a pior ofensiva de inflação de comida desde a crise soviética dos cereais dos anos 1970.

Uma procura global forte e fornecimentos limitados são os factores-chave na subida dos preços, mas talvez seja igualmente importante a interrupção nos fluxos livres do comércio global. Nos últimos meses, os países produtores de alimentos, da Argentina ao Cazaquistão, começam a fechar as portas para proteger o acesso doméstico aos alimentos que produzem.

Mahmoud, cuja família mora atrás das dunas numa cidade-fantasma de barracas em pleno deserto, ganha perto de 1,5 dólares por dia para manter quatro pessoas. O seu salário não subiu. Mas nos últimos seis meses, o trigo importado que a sua mulher usa para fazer o pão tradicional aumentou 67 por cento, o óleo de cozinha 117 por cento e o arroz 25. Apesar de estes serem os alimentos básicos da vida aqui, onde só 0,2 por cento da terra é agrícola, a escassez cresce. Em parte isso acontece porque há cada vez menos agricultores. A vida na cidade era melhor, mas nos últimos meses, com a subida dos preços, os que já viviam nas pequenas margens desesperaram. "Não sei como é que vou alimentar a minha família", diz Mahmoud. "Não temos como."

O melhor peixe foge

A competição global pela comida está a atingir a Mauritânia de outras formas. Nas costas atlânticas de Nouakchott isso é bem visível. A pesca aqui desceu a pique: 30 por cento do orçamento nacional vêm da venda de licenças de pesca, a maioria a barcos europeus. Isso deu ao Governo uma fonte desesperadamente necessária de dinheiro vivo, mas significou menos peixe nas redes dos pescadores locais. O peixe sai daqui para Paris, Nova Iorque ou Tóquio.

"Vemos o nosso melhor peixe sair do país todos os dias", conta Mame Diop, de 36 anos, enquanto espera, com outros pescadores, que os exportadores terminem os negócios. Vão comprar as sobras para revender na cidade. "Deixam--nos as sardinhas enquanto comem peixe sumarento. Não temos hipótese contra a fome dos países ricos."
Garoupa, diz Diop, fazia parte dos cozinhados tradicionais, mas desapareceu das mesas. Mesmo o mau peixe disponível subiu de preço. Cerca de 40 por cento nos últimos anos.

No Sudeste distante e rural das vilas de casas de lama e demasiado calor, o Programa Alimentar da ONU declarou uma emergência alimentar. Nos mercados, o preço do sorgo - cereal muitas vezes usado para fazer cuscuz, e aqui a base do prato mais tradicional - aumentou mais de 20 por cento. E isso aconteceu ao mesmo tempo que o vizinho Mali, abençoado com uma precipitação ligeiramente superior e temendo a sua própria crise alimentar, parou as exportações de cereais para a Mauritânia.

O trigo, que costuma ser acumulado nas cidades, desapareceu da maioria dos mercados desta região. Comerciantes do Senegal e do Mali passaram a fronteira para comprar o que sobrasse, dizendo que aqui é menos caro do que nos seus países.

Migração adiantada

Apesar dos agricultores de subsistência nesta zona cultivarem há muito o sorgo da terra árida, nunca foi suficiente. Para ganhar dinheiro e comprar mais os homens destas paragens viajam anualmente à procura de trabalho sazonal antes das chuvas. A migração anual está este ano a acontecer com meses de antecedência por causa dos preços. Em Bouta, uma aldeia pobre de 70 famílias, perto da fronteira com o Mali, os homens partiram há meses.

Como a maioria em Bouta, Metouna Mint Mohmaud, de 29 anos, não sabe onde é que o marido está. Partiu com outros à procura de trabalho braçal em cidades a muitos dias a pé daqui. Não há telefones - não há electricidade - para manter o contacto. Mas ela sabe, e os responsáveis do PAM confirmaram, que as suas gémeas de onze meses estão gravemente malnutridas. Comida, diz ela, tem sido sempre uma batalha, mas os olhos piscam de ansiedade quando fala dos problemas recentes.

A falta de sorgo, do Mali ou importado de outros países, duplicou os preços nos quatro meses desde que os homens partiram. As mulheres não sabem como o comprar, mesmo com as somas que os maridos possam trazer. "Como vamos comer este ano?", pergunta Mahmaud, com as gémeas lânguidas ao colo. "Não temos dinheiro para as sementes."

Os três dólares por semana que ganhava a cozer as lapelas douradas das roupas tradicionais diminuíram. "Não podemos vender - toda a gente está a gastar o dinheiro na comida", diz. "Não temos planos, não sei o que fazer."

Os preços estão a afectar mesmo os que têm a sorte de receber ajuda. Em Maghleg, uma aldeia a leste, a loja do PAM que vende cereais a preços mais baixos está meio vazia. Com os preços a duplicar, o dinheiro das vendas não permite repor o stock. E mais pessoas ficaram dependentes do mercado, a um dia de caminho.

Até agora, é a erosão do gado que deixa os peritos mais preocupados por aqui. Temem que acelere uma crise mais alargada que poderia aproximar-se às fomes em grande escala de África nos anos 1980.

"Para muitas pessoas, as fontes de rendimento estão a diminuir no mesmo momento em que os preços dos alimentos estão a aumentar", diz Gian Carlo Cirri, director do PAM para a Mauritânia.


Ver a comida a passar

"Quem vai comprar a minha cabra", gritou Likbir Ould Mohamed Mahmoud no mercado de gado, levando-a nos braços.

Um potencial comprador mostra interesse. "Deixe-me ver. O melhor preço que pode fazer?" Mahmoud respondeu que "25 dólares" e ouviu que a cabra "é muito pequena".
Não houve venda. O comprador não quis pagar o que seria normal há meses, não com tantas outras cabras à venda. "Eu não posso vendê-la demasiado barata. Não seria certo para a minha família."

A família já está em dívida. Não faz ideia como vai pagar. Reza, diz, para que o dono da loja local continue a vender-lhe fiado. "Senão, como vamos comer?"
Apesar da vida aqui ser dura, ele recusa deixar o bairro de barracas de lama. "Não quero voltar para a aldeia. Lá podemos morrer de fome sem nos apercebermos. Nem vemos comida. Aqui pelo menos posso vê-la a passar num carro. Dá-me esperança. Deixa-me feliz."