Hugo Franco e Raquel Moleiro, in Expresso
Todas as madrugadas, no Campo Grande, trabalhadores, legais e ilegais, são escolhidos para irem para as obras.
Às sete da manhã, Dimitri (à esquerda) espera em frente ao estádio do Sporting por um lugar numa das muitas carrinhas que ali estacionam em segunda fila. Não terá sorte
Dimitri enrola o cigarro em movimentos lentos e fuma-o como se aqueles minutos de vício fossem o seu único prazer na vida. Da boca, as baforadas saem-lhe como as palavras: murchas. Há oito anos que o moldavo vem, todos os dias, à 'feira de homens', em frente ao estádio do Sporting, no Campo Grande. "É a única maneira de conseguir dinheiro", justifica.
Desde as cinco e meia da manhã que Dimitri e centenas de imigrantes, legais e ilegais, esperam por um lugar numa das dezenas de carrinhas que estacionam em segunda fila. "Nos últimos dois meses tem sido mais difícil. Não me dão trabalho", queixa-se. O imigrante moldavo, que nunca conseguiu obter um contrato de trabalho, não sabe explicar se a culpa é da idade, 50 anos, ou da crise que também bateu à porta do sector da construção civil. "A minha mulher vem visitar-me daqui a uns dias. Não sei o que lhe vou dizer...". Dimitri ficará por ali até às onze horas, ao lado de um grupo de ucranianos e africanos, que lêem os jornais gratuitos para matar o tempo. Nenhum deles irá trabalhar naquele dia. "Somos os excluídos", vaticina.
Wagner tem mais sorte. Às sete em ponto, o jovem brasileiro entra, cheio de pica, numa Ford Transit cinzenta que o levará para uma obra em Cascais. Traz consigo um saco com o almoço: umas sandes e coca-colas. Foi escolhido há quinze dias para pintar as paredes de uma fábrica, por menos de ¤5 à hora, durante mais uma semana. "É melhor do que nada", diz com um sorriso afável da Baía. O valor não é muito diferente daquele que o indiano Abhay ou o maliano Mohamed vão ganhar. "Há cinco anos pagavam-nos o mesmo. O que vamos fazer? Não temos outro remédio senão aceitar", confessa o trabalhador oriundo do Punjab.
Sentado ao volante de uma das carrinhas, José, um angariador português que transporta um grupo de trabalhadores africanos, garante não lhe faltar mão-de-obra barata, disposta a trabalhar na construção de uma rotunda, em Sintra. "Falam em desemprego mas não vejo portugueses por aqui", ironiza. A nova lei, que penaliza as empresas pela contratação de imigrantes ilegais (e não os imigrantes, como acontecia no passado), obrigou à mudança de mentalidade em alguns patrões da construção civil. "Os meus trabalhadores têm os papéis em ordem", assegura Pedro, sem nunca mostrar qualquer documento.
Na roleta-russa do Campo Grande, pelo menos um quarto dos imigrantes encontra-se em situação ilegal, a acreditar na palavra de angariadores e trabalhadores do local: "São contratados para trabalhar em pequenas obras, como vivendas e jardins, onde é mais difícil a fiscalização das autoridades. E chegam a ganhar apenas entre ¤3 e ¤6 por hora", revelam.
A nova praça da jorna
Este mercado de homens, em tudo semelhante às praças da jorna dos anos 60, surgiu há cerca de dez anos, no boom da construção civil. A crise económica não fez desaparecer os grupos de imigrantes, que se juntam entre as seis e as onze da manhã em frente ao antigo bingo do Sporting. "Há para aí muito trabalho", conta Pedro, um dos poucos portugueses que o Expresso encontrou no Campo Grande. O jovem oriundo de Chelas, de calças de ganga carregadas de tinta e t-shirt esburacada, diz-se satisfeito com o salário, mesmo que o receba em dinheiro vivo, ao fim de cada dia. Contrato? Não existe. "Tenho tudo controlado. Comigo não fazem farinha", garante.
Pedro sabe, no entanto, de muitos trabalhadores recrutados para um duro dia de trabalho e que depois "ficam pendurados". sem receberem qualquer dinheiro. "Há quem se aproveite dos ilegais para os 'chular'", declara, antes de partir em direcção a uma obra em Loures, sentado, ombro-a-ombro com trabalhadores de várias nacionalidades. Às 18h, irão voltar na mesma carrinha, que os deixará debaixo do viaduto da 2ª Circular.
Pedro é um dos últimos a partir. Pouco antes das dez da manhã, só os mais velhos e os menos corpulentos se encontram no Campo Grande. No grupo de Dimitri, moldavos e malianos já se conformaram com a falta de sorte. "Vou voltar para a minha pensão e dormir um pouco", diz Dimitri, mandando o cigarro carcomido para o chão.
Agentes à paisana no Campo Grande
SEF e Autoridade para as Condições do Trabalho têm actuado mais nas empresas de construção civil do que sobre os angariadores de ilegais.
Nos últimos meses, tem havido menos denúncias de angariação de mão-de-obra ilegal no Campo Grande. As autoridades garantem, no entanto, continuar atentas às movimentações na 'feira de homens', até porque "em mais nenhum local do país se regista este fenómeno". salienta Paulo Morgado de Carvalho, presidente da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT). Sobre o seu grau de gravidade, o responsável prefere "não comentar."
Paulo Morgado de Carvalho lembra que os inspectores actuam sobretudo nos locais de trabalho e não nas zonas públicas de recrutamento. "Punimos as empresas e não os angariadores", enfatiza. O presidente da ACT recusa-se, no entanto, a revelar os nomes das construtoras que recrutam habitualmente mão-de-obra no Campo Grande. "Quando detectamos uma situação irregular, comunicamos ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) pois não temos competências criminais", diz.
O SEF segue a mesma filosofia: o alvo dos inspectores não é o imigrante em si, legal ou ilegal, que quer trabalho, ou o 'motorista' que o vai angariar a mando de um superior. Os alvos são os patrões e as estruturas que suportam a imigração ilegal e que a exploram. Por isso, o 'mercado' do Campo Grande "não é preocupante do ponto de vista criminal", sendo aí raras as operações policiais, explica o director nacional adjunto do SEF, Joaquim Pedro Oliveira, "Isso não significa que não haja investigação no local, através de inspectores e veículos descaracterizados, para detectar vários tipos de crime e chegar até ao verdadeiro angariador".
Na última grande operação realizada pelo SEF no Campo Grande, em Setembro de 2008, foram fiscalizadas 38 carrinhas de transporte de trabalhadores de construção civil e instaurados processos de contra-ordenação a sete empresas. Por cada imigrante ilegal ou trabalhador irregular, o empregador paga uma multa superior a ¤2100.
"Estamos a afectar estas empresas que angariam e contratam mão-de-obra ilegal onde mais lhes dói: nos rendimentos. E já se começa a denotar uma diminuição de casos", acrescenta o director. Em 2008, os processos de contra-ordenação (1113) subiram 67,9%, sendo que a esmagadora maioria das entidades patronais eram portuguesas. As receitas próprias do SEF ultrapassaram os ¤56 milhões.
O Expresso tentou obter declarações do ministro do Trabalho e da Solidariedade Social, Vieira da Silva, sobre a 'feira dos homens', mas sem sucesso.