Por Cristina Ferreira, in Jornal Público
O antecessor de Teixeira dos Santos diz que Sócrates é o verdadeiro ministro das Finanças e defende que a proposta de OE é uma proposta "desesperada"
Passados mais de quatro anos após a sua experiência como ministro das Finanças, Luís Campos e Cunha mantém as suas críticas à forma como tem vindo a ser conduzida a política económica e financeira do país. No dia em que publica um livro - Publicamente - em que reúne as crónicas escritas semanalmente no PÚBLICO, fala do OE 2011, da política de austeridade, da hipótese FMI e do seu apoio a Cavaco Silva.
Num dos momentos mais complexos da vida do país, encontra explicação, enquanto ex-ministro das Finanças, para o que se passou nestes últimos dias entre Teixeira dos Santos e Eduardo Catroga?
É difícil para mim fazer psicanálise, mas tenho dificuldade em racionalizar o que se passou. Em parte, penso que tem a ver com a crise do sistema político, a qualidade dos seus actores e a capacidade do sistema político gerar este tipo de actores. E falo em geral. Mas não percebi a lógica do PSD com todo este protelar. Se o OE fosse chumbado, o Governo caía, mas mantinha-se como Governo de gestão. Não há maneira de nos vermos livres deste Governo chumbando o OE. Primeiro temos de ter eleições presidenciais e só depois poderá haver eleições antecipadas, como julgo que vai haver. Mas o que me interessa mais é saber o que se passou nos últimos dois anos.
Porquê?
Ao olhar para o que se passou nos últimos dois anos, não tenho dificuldades em dizer que o principal responsável foi José Sócrates, o verdadeiro ministro das Finanças. Se olharmos para o que se passou nos dois últimos meses, já posso dizer que as culpas se dividem em partes iguais entre o PS e o PSD. A verdadeira questão é que, no início de 2008, saiu Correia de Campos, baixou-se o IVA, alterou-se drasticamente tudo o que tinha sido feito na área da Educação e começaram a preparar-se as eleições. Mas tudo correu mal. E quando em 2008 baixaram o IVA para 20 por cento, mesmo antes da falência do Lehman Brothers, eu disse que a situação bancária dos vários países aconselhava a que os Governos guardassem alguma capacidade de intervenção. Na altura fui bastante atacado. Mas o maior impacto da crise internacional foi na reacção do Governo à crise.
De que forma?
Porque a crise deu a justificação ideológica para que o Estado português gastasse sem controlo e isso aconteceu em 2009 e também em 2010 e, neste caso, ainda não recebemos justificação sólida por parte do Governo relativa ao descontrolo das Finanças Públicas. Tem sido justificado pela necessidade do Estado fazer intervenções na economia, mas não é tudo. Repare que o Governo jurava antes das eleições [de 27 de Setembro de 2009] que o défice estava controlado e ia ficar em 5,9 por cento, e nessa altura o ministro das Finanças já sabia certamente que esse não era o valor [ficou em 9,3 por cento].
Acha que Teixeira dos Santos sabia?
Claro que sabia. Não era possível não saber, a não ser que houvesse incompetência total. A partir de Julho e Agosto já há no Ministério das Finanças uma ideia muito precisa de qual vai ser o andamento orçamental, pois parte dos impostos directos já foi cobrada e já se sabe como correu a primeira metade do ano no que respeita aos impostos indirectos. E sabe-se como está a correr a despesa pública, pois parte já foi contratualizada no primeiro semestre. Em Setembro, é obvio que o ministro das Finanças tinha uma consciência muito clara de que o défice não podia ser 5,9 por cento.
Mas está a acusar o ministro de ser mentiroso? Isso é grave.
Para mim, o ministro das Finanças é Sócrates. Eu não quero falar do ministro das Finanças [que sucedeu a Campos e Cunha nas funções]. Mas dias depois das eleições a Comissão Europeia fazia uma previsão do défice orçamental acima dos 8 por cento e ela já nem foi desmentida.
Como avalia a proposta de OE para 2011?
É uma proposta desesperada de quem não preparou o trabalho de casa a tempo e horas. É evidente que em Dezembro de 2009, se tivessem tomado as medidas necessárias, certamente não teria havido o descontrolo da despesa e certamente que a nossa situação para 2011 seria bastante mais fácil. Basta olhar para o caso espanhol, onde a despesa este ano já baixou. Em Portugal, a despesa com pessoal continua a crescer para níveis impensáveis e José Sócrates ou o ministro das Finanças continuam a recusar-se a dar uma explicação para que se possa perceber o que se passou com rigor. Não é só uma questão de números, pois os que aparecem não são os números em contabilidade nacional. Percebo o argumento do PSD que diz que estamos a construir uma casa para 2011, sem saber o que se passou em 2010. E tem toda a razão.
Portanto, a situação é de ruptura iminente?
Estamos à beira da ruptura do ponto de vista financeiro e, de um momento para o outro, podemos ter problemas de crédito seriíssimos. Mas ainda não é forçoso que tal aconteça. Os bancos portugueses estão sem acesso ao financiamento da banca internacional, praticamente desde Abril. Nessa altura respondi o seguinte a um jornalista do PÚBLICO que me perguntou sobre o que se iria passar: "A única coisa a fazer é rezar." Até o Frankfurter Allgemeine achou graça. E desde aí é o que temos vindo a fazer.
Vão ser necessárias mais medidas do que aquelas que estão a anunciar?
Este pacote é um pacote brutal. Se a este pacote se somarem medidas a sério de redução da despesa, e essas têm que ser feitas processo a processo, repartição a repartição, instituto a instituto, e demoram tempo, então aproveitar-se-ia a crise para reformular o Estado. E sairíamos melhor da nossa crise, poupando muito dinheiro e com um Estado mais eficiente. Cortes da despesa horizontais penalizam aquelas instituições do Estado que são bem geridas e beneficiam os infractores.
Há margem para um novo aumento da carga fiscal?
Possível é, mas não é desejável.
Está ao lado dos que defendem, ao mais alto nível, que teria sido preferível a vinda do FMI, em vez do acordo para viabilizar o OE de 2011?
Não sou dos que defendem essa solução: não espero, não desejo e teria muita vergonha que fosse necessária a vinda do FMI.
Acha o FMI uma instituição pouco recomendável?
O FMI não é uma instituição em que acredite, embora a OCDE ainda seja pior. E não tenho grande respeito pelo trabalho que o FMI fez por esses países fora; vejam-se os casos da Argentina, da Rússia, da Turquia, da Coreia do Sul, onde o FMI esteve e as coisas correram mal. E o FMI não é o nosso Governo e pelo voto nós não o podemos responsabilizar. E se o FMI for chamado - e ele está mortinho por isso, basta ver as declarações que os dirigentes do FMI fazem cada vez que vêm a Portugal - o Governo e o Parlamento serão chamados a aplicar as medidas. E as medidas não serão muito diferentes das que estão na proposta de OE.
As Finanças Públicas têm sempre solução, mas promover o crescimento económico é diferente...
Há maneiras de cortar na despesa brutalmente e que prejudicam o funcionamento do Estado e há maneiras de cortar brutalmente e que não prejudicam. Entendo que a forma de aproveitar a crise é sair dela em melhores condições, é fazer o que já disse atrás - uma espécie de PRACE II -, pois cortes cegos não resolvem nada. É óbvio quando estamos a 15 dias de aprovar o OE para 2011 que há uma grande urgência em fazer cortes. Mas isso devia ter sido preparado com pelo menos seis meses de antecedência.
As exportações e poupança interna não são suficientes para pagar as importações e os juros da divida. Como se regressa ao crescimento económico?
Se tudo correr bem, o crescimento vai ser anémico nos próximos três anos. A alternativa é termos uma recessão brutal em 2011. Não se fez o trabalho de casa, nem se deixou a casa arrumada. Note-se que, em 2008, o défice orçamental, sem receitas extraordinárias, já foi de mais de quatro por cento. O Estado devia, desde já, começar a fazer a reestruturação dos serviços de alto a baixo e reduzir a despesa racionalmente. Devia acabar com todos os grandes projectos, inclusivamente dando, nalguns casos, indemnizações compensatórias. Seria um sinal importante para os mercados de compromisso contra o despesismo. E era importante porque libertaria crédito para as famílias e para a economia.
Deve abandonar todas as grandes obras?
Se os grandes projectos forem para a frente, como o TGV e as auto-estradas, isso significa que as empresas e as famílias vão continuar a ter dificuldade em obter crédito com juros baixos e em quantidade. Em terceiro lugar, o Estado devia procurar deixar de ter todo o activismo, ou que finge ter, de intervenção na economia para além daquilo que é estritamente necessário, que é a provisão de bens públicos e a redistribuição do rendimento. Por último, é preciso que a retoma se faça primeiro exclusivamente com as exportações e depois com o investimento. É preciso que os portugueses saibam que é preciso poupar. E andar a dizer que está tudo bem, como se fez até meados de Setembro, é dizer às pessoas que não é preciso pouparem. A situação agora é muito grave.
"Os rendimentos do trabalho é que estão a pagar a crise"
Nas primeiras páginas do seu livro assume-se como um liberal...
... Liberal mas non troppo... Gosto de responsabilizar as pessoas pelos seus actos e não acho que todas as desgraças individuais sejam responsabilidades colectivas. Sou um liberal nos costumes e na abertura ao mundo, estudei fora, tenho filhos a estudar e a trabalhar fora. E defendo ainda que há que separar as águas do Estado das do sector privado. A mancebia entre o Estado e os negócios conduz a que o Estado fique ao serviço de interesses económicos. Enquanto liberal, defendo um Estado forte, financeiramente sólido, independente dos interesses económicos e capaz de ter decisões que possam ir contra os interesses económicos, se isso for do interesse nacional. E isto não é o Estado que nós temos.
Qual a diferença entre um liberal e um não-liberal?
Está nas prioridades do Estado. Para mim, o Estado deve preocupar-se com a provisão de bens e serviços públicos e, além disso, com a redistribuição de rendimentos. Diferencio-me da direita política porque penso que a redistribuição de rendimento é fundamental para a coesão social e é uma questão ética fundamental para a sociedade. Sou contra o Estado dar subsídios às empresas, porque isso é dar subsídios aos donos das empresas. Não se tira às pessoas rendimentos do trabalho para depois ir dar aos donos das empresas quando eles já por si pagam pouco IRS. E neste tsunami de 29 de Setembro não se aumentou a taxa liberatória do IRC. Neste momento os rendimentos do trabalho, em particular os dos funcionários públicos, é que estão a pagar a crise.
Acha que a CGD deve ser privatizada?
A minha primeira opção é que a CGD esteja nas mãos do Estado, gerida de forma independente dos interesses políticos do partido que estiver no Governo. Mas se a CGD se tornar num instrumento do primeiro-ministro para interferir em negócios privados, então é melhor ser privatizada.
"Em quem mais podemos confiar?"
O que o levou a aceitar ser o mandatário de Cavaco Silva em Lisboa?
Conheço Cavaco Silva há mais de 30 anos, foi meu professor em várias cadeiras na Católica, num curso de uns trinta alunos. Deixei de o ver pessoalmente quando foi primeiro-ministro. Agora convidou-me para seu mandatário por Lisboa e achei que não devia recusar. O balanço geral que faço do primeiro mandato é muito positivo e, neste momento, quando ninguém confia em nenhum político, eu confio em Cavaco Silva. Tem consciência dos problemas nacionais e foi sempre parte da solução e não parte do problema.
Não ficou desiludido com o discurso de Cavaco Silva?
Não o ouvi, apenas vi os ecos na imprensa e esses foram pouco favoráveis. Mas não fico impressionado com isso.
Se os seus alunos lhe perguntarem por que é que devem votar em Cavaco Silva, o que lhes diz?
Na aula, recusar-me-ia a falar disso, mas no corredor poderia referir o que disse acima. Mais uma vez, é um político que não rouba o Estado nem me rouba a mim; em quem mais podemos confiar?
Se Cavaco for eleito, quais as suas expectativas do novo mandato? Acha que vai ser mais interventivo?
Possivelmente será forçado a ser mais interventivo. Com a situação económica e financeira de verdadeiro descalabro, com um Governo descredibilizado e minoritário, a vida não vai ser fácil.
Acredita que o Governo vai cumprir o mandato até ao fim?
Duvido. Quem vai aprovar o Orçamento para 2012?