por Caseiro Marques, in Notícias de Vila Real
Bem gostaria de abordar outro qualquer tema, como, por exemplo o orçamento de Estado, a recandidatura do Presidente, a situação na justiça – e tanto tenho para escrever sobre este tema - a chuva, o vento, as minhas caminhadas pelos montes vizinhos da cidade e não só. Mas o que é isto perante a situação calamitosa em…
…que nos encontramos, onde chegámos pela mãos dos nossos profissionais da política, tão pouco profissionais no seu exercício. Mas tão profissionais na arte de nos ludibriarem, de nos enganarem, de nos roubarem de todas as formas e feitios, de nos humilharem por todo o mundo com as poucas vergonhas de que não se envergonham, mas que nos deixam cada vez mais perto do abismo. Mas lá estou eu a ir para onde não queria.
Então: descia a rua dos Quinchosos, hoje D. António Valente da Fonseca, ali em frente ao prédio da tipografia do Seminário, na companhia de outra pessoa. A senhora atravessava a rua para o lado da Rua Marechal Teixeira Rebelo. Tropeçou numa traiçoeira pedra da calçada e mergulhou em direcção ao chão, quase sem ter tempo de se defender com as mãos, que ficaram esfoladas, em consequência do choque com o piso áspero. De um saquito de plástico, que transportava numa das mãos, caíram três batatas. Dirigimo-nos para ela, ajudando-a a levantar-se e apanhando duas batatas que introduzi de novo no saco, enquanto ela dizia que tinha perdido uma outra batata.
Seriam ao todo umas cinco batatas, cerca de um quilo, talvez. Um quilo de batatas. Contadas. De facto, um dos tubérculos foi parar debaixo de um automóvel ali estacionado. Embora combalida, sentiu-se com forças para seguir o seu caminho, sem precisar, disse, mais, da nossa ajuda. Reparei que vestia modestamente, a roupa com aspecto de ser muito usada, embora limpa. Tinha um ar triste, rosto algo macilento, cabelo com aspecto de ser tratado em casa, nada de pinturas no rosto ou nas unhas. Queixando-se um pouco de dores no corpo, de alguma contusão nos joelhos e mirando as feridas nas mãos, afastou-se, escadas abaixo, em direcção à Marechal Teixeira Rebelo.
Eu desci pelo túnel existente por debaixo do prédio e vi uma cebola caída na rampa. Uma cebola. Fomos à nossa vida. No dia seguinte, pela manhã, enquanto limpava a minha pequena horta das hastes dos feijões e das estacas, preparando o terreno para o Inverno que aí vem, dei comigo, de repente, a pensar naquela senhora. E lembrei-me da falta que aquela batata e a cebola estariam a fazer-lhe. Sabe-se lá com que sacrifício ela tinha comprado aquele quilito de batatas e aquela cebola, que perdeu aquando da queda. Fiquei ali a censurar-me por só agora ter pensado que podia ter ido buscar a batata debaixo do carro e levar a cebola à senhora.
Apeteceu-me ir até à Teixeira Rebelo, levar-lhe um saco de batatas e cebolas e mais alguma coisa. Mas como? Onde vive? Quem era a senhora? Ainda hoje me penitencio por aquela minha omissão. Podia ter feito mais e não fiz. E, dessa forma, não evitei que aquela senhora não sentisse tanto os efeitos da pobreza que a atinge e, por conseguinte, a injustiça de que está a sofrer. E dou comigo a pensar, neste momento, que, de facto, é mais importante eu preocupar-me, nesta altura, mais com as pessoas que sofrem deste e de outros tipos de injustiças do que com os problemas que acima enumerei.
Que interessa a estas pessoas que Cavaco se recandidate, julgando-se o messias, imprescindível ao nosso futuro, com promessas de ser mais activo – seja isso lá o que seja, na ideia dele – um homem providencial, cheio de qualidades e sem defeitos visíveis; ou que o Catroga e o Teixeira tenham chegado a acordo sobre o orçamento de Estado, arrancado a ferros, sob pressão e por mero cálculo político de ambos e segundo as ordens dos seus patrões; que o Sócrates continue ou não a querer ir-se embora para não levar com as consequências da crise em cima; que uma citação na justiça possa demorar ano e meio e que o Godinho tenha praticado dezenas de crimes de corrupção, que Penedos e Varas e Linos tenham recebido presentes para si ou dinheiro para as campanhas do PS ou que o PSD tenha feito o mesmo, antes; até que o gasóleo aumente ou baixe, se elas nem têm carro; ou ainda que esteja a ser construída uma auto-estrada até Bragança, onde nunca foram, nem irão; que as obras do túnel estejam paradas ou a andar; que um juiz diga que está a ser roubado ou que o deputado Gonçalves diga que é dos mais atingidos pelos cortes do Sócrates.
Para quem talvez viva num baixo de uma casa, húmida e fria, sem condições, que não tem dinheiro para comprar mais do que cinco batatas e uma cebola, que veste roupa à qual já perdeu a conta dos anos que leva de uso, que sofre no corpo e na alma, quantas vezes em completa solidão, as agruras da vida e o abandono de familiares e amigos, que lhes interessa tudo isto. Em que lugar estão, afinal, as pessoas concretas e de um modo especial os mais necessitados? Que lugar ocupam elas na cabeça, na mente, no coração e nas acções e atitudes dos políticos? Será que eles se preocupam, pensam ou se afligem, minimamente que seja, com as pessoas concretas deste país? Bem gostaria de acreditar nisso. Mas, sinceramente, não acredito. Já não acredito nos políticos do meu país.