Ana Mafalda Inácio, in DN
Liderou a pasta da Saúde quase há 30 anos. Na altura, foi buscar um dos quadros da Organização Mundial da Saúde para a ajudar a traçar a reforma no SNS em Portugal, Constantino Sakellarides, que elogia e a quem deu o cargo de diretor-geral. Desse tempo, diz que foi feito um caminho importante, que perdeu dimensão. E receia que agora "possa ser a última oportunidade para pôr as coisas a mexer". Critica a forma de recrutar diretores-gerais e defende que a DGS tem de ser tratada ao nível das suas responsabilidades.
Ministério da Saúde (MS) levou seis meses a lançar o concurso para o cargo de diretor-geral, depois de a atual diretora ter terminado o mandato e anunciar que se queria reformar. O que pode significar esta situação?
Não sei se foi o Ministério da Saúde que demorou os seis meses ou se foi a CReSAP (Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública) que levou esse tempo a preparar um concurso solicitado atempadamente pelo ministério. Isso é que é preciso saber. A dr.ª Graça Freitas foi para a DGS no meu tempo, como responsável do Plano Nacional de Vacinação, quase há 30 anos, e já tinha uma carreira anterior. Portanto, é natural que queira reformar-se, até pelo desgaste que o combate à pandemia provocou, em que uma pessoa no cargo dela tinha de estar 24 sobre 24 horas operacional, em que os três anos correspondem a uns nove anos de trabalho.
A morosidade no concurso não pode indicar dificuldade em haver candidatos de qualidade ou mesmo uma desvalorização da DGS enquanto organismo?
Só sei se há candidatos para o cargo depois de o concurso lançado. O que acho é que pode não haver a noção da importância que tem a DGS para o país e acredito que, a haver falhas no lançamento do concurso, estas não devem ter partido do MS. Mas devo dizer que sempre manifestei a minha discordância em relação a estes concursos para cargos de diretores-gerais, porque acho que um ministro deve ser responsável por escolher a pessoa para assumir este tipo de responsabilidade, respondendo depois politicamente sobre se a escolha foi boa ou má. Neste caso, aliás, parece-me absolutamente estranho que tenha sido o ministério a pedir à CReSAP o lançamento do concurso, quando este organismo tem a responsabilidade de abrir concursos para toda a Administração Pública, mas a minha opinião, de um ponto de vista abstrato e sobre a forma de seleção dos diretores-gerais, é a de que este mecanismo é pouco eficaz, sobretudo porque não conduz àquilo que se pretendia com a sua criação, que era o garantir a nomeação das pessoas por mérito e não por escolha política. Há muitas formas de induzir candidaturas.
Isso quer dizer que a nomeação para o cargo de diretor-geral da Saúde deveria ser política?
Deveria ser assim para a Saúde e para as outras áreas. Um diretor-geral é um alto funcionário da Administração Pública que tem de ser competente, isento e independente do governo que lá está. Eu trabalhei sempre com as pessoas que estavam nos organismos. Substituí muito poucas, apenas aquelas que considerei não terem as características nem o perfil para estarem num cargo com determinado tipo de responsabilidades, mas reconheço que, hoje, ainda há o espírito do alto funcionário público leal, competente e dedicado. E entenda-se que por lealdade não é dizer que sim a tudo o que os ministros querem, pensam ou entendem. Lealdade é saber dizer, com competência, experiência e capacidade de avaliação, que o impacto de uma alteração ou orientação não se ajusta ao objetivo pretendido. Por isso, tentei sempre trabalhar com aqueles que, no meu juízo, eram os melhores para uma função.
"Sempre manifestei a minha discordância em relação a estes concursos para cargos de diretores-gerais, porque acho que um ministro deve ser responsável por escolher a pessoa para assumir este tipo de responsabilidade."
Há pouco referiu que talvez não haja a noção da importância da DGS, mas, hoje, qual é verdadeiramente essa importância?
É uma importância enorme. A DGS é o organismo responsável por assegurar todo um conjunto de atividades que devem garantir a Saúde de uma população, o seu controlo e se esta evolui na boa direção. Isto implica propor medidas nesse sentido, fazer vigilância e saber qual é o quadro epidemiológico do país, porque as medidas que vão ser tomadas dependem da análise da situação de doença que existe no país. Portanto, a DGS tem um papel fundamental. É a autoridade máxima de saúde a nível nacional do ponto de vista técnico e científico. Tem de gerir todas as situações de doenças transmissíveis, elaborar programas de Saúde e de acompanhamento para as doenças não transmissíveis, que continuam a ser a marca desta época, e gerir todas as emergências de Saúde Pública, como vimos agora com a pandemia. Além de que tem a competência de assegurar as relações internacionais europeias, vivemos na União Europeia, onde tem de representar o país neste contexto.
Esta situação, há seis meses à espera para substituir a diretora-geral, com subdiretores a demitirem-se e sobre a qual se diz que o organismo está sem controlo, deixa mal o país na UE?
A DGS não está sem controlo. A Dr.ª Graça Freitas está em funções, manter-se-á enquanto não for substituída e é uma pessoa competentíssima. Nem se pense uma coisa dessas. A questão não é essa, embora quando um processo de substituição anunciado se torna muito moroso possa dar origem a incertezas, mas é um problema interno, que precisa de ser resolvido. A UE nada tem a ver.
Destacou o papel da DGS no combate à pandemia, mas o governo foi buscar uma outra equipa de peritos para delinear esse combate e as propostas de desconfinamento. Isto não acabou por desvalorizar e desrespeitar o papel da DGS?
A DGS trabalha com peritos que não integram os seus quadros, sempre assim foi. Sempre teve comissões específicas para matérias que são da sua competência, convocando personalidades respeitáveis e conhecedoras dos assuntos para as debater e com quem trabalhar. Recordo a Comissão de Saúde Materno-Infantil, as várias comissões de acompanhamento de doenças específicas, como para a Diabetes. O problema não é esse. O problema é se depois há articulação entre as comissões criadas e a DGS ou se os gabinetes do governo subtraem à DGS a responsabilidade pela condução desses projetos.
No caso específico do combate à pandemia, não houve uma subtração das responsabilidades?
Não posso responder em consciência, porque não sei. Vou acompanhando a área da Saúde como cidadã interessada, como antiga ministra e até como elemento que teve a responsabilidade de liderar uma equipa que elaborou uma nova Lei de Bases da Saúde, porque o prof. Adalberto Campos Fernandes me convidou para tal, e onde eu e todo o grupo de pessoas que me acompanhou tentámos incorporar tudo aquilo que considerávamos adequado em termos de política de Saúde para o país. A única coisa que lhe posso dizer em relação a isso é que se fosse eu a ter a responsabilidade nessa altura nunca faria nada que desrespeitasse o comando da DGS do ponto de vista técnico e científico.
"A única coisa que lhe posso dizer em relação a isso é que se fosse eu a ter a responsabilidade nessa altura nunca faria nada que desrespeitasse o comando da DGS do ponto de vista técnico e científico."
No seu tempo, a DGS, assumida pelo Prof. Constantino Sakellarides, desenvolvia um papel próximo da tutela, digamos do poder político. Deveria ser assim?
A Saúde é a área mais complexa que existe. É já reconhecida dessa forma, e quando temos uma questão muito complexa para gerir temos de ter pensamento estratégico e nunca tinha havido pensamento estratégico no país. Foi o que se fez no meu tempo. Elaborámos uma estratégia de Saúde, mas só depois de termos feito os estudos que nos permitiam identificar o ponto de partida, como estudos sobre a situação da Saúde em Portugal, quais os dados epidemiológicos, as doenças preponderantes e o que se previa que viesse a acontecer dali a uns anos. Foi um exercício muito exigente para todos a nível da participação, porque não gosto de iluminados nos lugares. Podemos ter as nossas ideias, mas temos de as confrontar com as dos outros, que podem ser diferentes, mas que podem ser as da razão. Portanto, todo este processo encaixava coerentemente na estratégia que se pretendia, que era de grande aposta na intersetorialidade das políticas, de articulação com as áreas mais importantes que tratavam das debilidades socioeconómicas da população, como a Segurança Social, a Educação, a Agricultura e o Ambiente. Aliás, pela primeira vez foram introduzidas na Estratégia de Saúde medidas ambientais. Na altura, já abordávamos as questões que hoje são reais ameaças à Saúde Pública numa perspetiva de intersetorialidade. Foi um caminho importante que se fez, e a atuação entre ministério e DGS tinha de estar convergente. Tínhamos uma política para a Saúde, para os recursos humanos, de formação a 10 ou 15 anos, que deixámos para os meus sucessores, e foi de tal forma que a nível do Quadro Comunitário de Apoio era a estratégia para a Saúde que era a matriz sob a qual incidia a forma de alocação dos fundos comunitários. Na altura, conseguimos criar uma dinâmica que era como um puzzle em que cada peça encaixava no sítio certo.
Olhando hoje para o papel da DGS e para o do MS não acha que essa dinâmica se perdeu?
Perdeu-se seguramente com a dimensão que tinha no meu tempo, perdeu-se a dimensão da coerência e da vocação para a construção de um futuro. Começou-se a atuar através de Planos de Saúde e não através de planos com uma estratégia precedente.
Isso significa que o lado técnico não deve estar afastado da coordenação política?
Significa que temos de ter ministros que tenham uma ideia sobre o que deve ser a condução de política em cada uma das áreas de governação e com capacidade de fazer acontecer, de acordo com a auscultação de cada uma das máquinas, porque cada uma das máquinas administrativas no terreno conhece a realidade e apresenta propostas. O que é preciso é ter à cabeça de cada ministério alguém não só com visão como com capacidade para depois conduzir de forma coerente aquilo que propõe para a sua política e que é aprovado pelo governo.
Agora temos um médico no MS...
O dr. Manuel Pizarro não é só um médico, é também uma pessoa que exerceu funções como governante, enquanto secretário de Estado, foi deputado à Assembleia da República e Parlamento Europeu. Portanto, tem todas as condições para ter essa capacidade. Devo dizer que também conheço muito bem o dr. Fernando Araújo, à frente da Direção Executiva (DE) do SNS, e a única coisa de que tenho pena é que ele não tenha instrumentos para o exercício das funções de grande responsabilidade que ficaram no convencimento da opinião pública quando foi indicado. Em meu entender, o estatuto da DE não contempla o conjunto de competências que são absolutamente indispensáveis para que ele consiga cumprir a sua função adequadamente.
"Faltam-lhe (ao diretor executivo do SNS) competências de planeamento, gestão, recursos humanos e gestão financeira, como pacote financeiro global, para ele poder gerir no sentido de fazer as coisas acontecerem."
O que falta?
Faltam-lhe as competências de planeamento, gestão, recursos humanos e gestão financeira, como pacote financeiro global, para poder gerir no sentido de fazer as coisas acontecerem. Por exemplo, no meu tempo criei a contratualização para termos os orçamentos associados à produtividade e à qualidade em vez dos orçamentos históricos. Foi uma mudança radical. Colocámos no terreno várias experiências inovadoras para que se avaliasse a sua adequação, como as Unidades Locais de Saúde, os Sistemas Locais de Saúde, que tinham uma filosofia diferente da que têm agora no Estatuto do SNS, na medida em que não eram apenas serviços públicos mas incluíam todas as atividades de uma determinada comunidade - porque só se consegue fazer promoção e a prevenção da Saúde se se envolver todos os agentes. Não avançámos com mudanças radicais sem a sua experimentação no terreno. Agora, vão-se buscar novas formas organizativas mas para as pôr a funcionar tem de haver instrumentos, e considero que são esses que faltam à DE. É claro que o prof. Fernando Araújo é uma pessoa com provas dadas e com características humanas adequadas para, sem ofender ninguém, tentar encaminhar as coisas. Por isso é que digo, ou pomos o SNS a mexer agora ou depois poderá ser difícil. A Saúde e o SNS têm de ser olhados como a joia da coroa, porque ninguém neste país pode dispensar um SNS capaz, moderno e evoluído. Um SNS que trata bem os seus profissionais e que é capaz de oferecer às pessoas as melhores condições de tratamento possíveis.
O que deve ser feito para manter o papel e prestígio da DGS?
Acho que é preciso escolher um (ou uma) diretor-geral de competência reconhecida. Por outro lado, acho que é preciso avaliar, a nível da Administração Pública, como é que se vão criando cada vez mais organismos com estatutos remuneratórios superiores, às vezes até ao do primeiro-ministro, e depois se tratam direções-gerais com as responsabilidades e a magnitude que tem uma DGS como se fosse uma direção-geral com responsabilidades infinitamente inferiores. É claro que o estatuto remuneratório não é o mais importante, mas marca a importância que se reconhece a uma estrutura. Portanto, se começo a ter organismos de administração pública diretos ou indiretos com esquemas remuneratórios e autonomia de gestão diferentes e mantenho uma DGS como organização tradicional, isso é tratá-la como um parente pobre e a DGS não pode ser o parente pobre da Saúde.
E tem sido?
Acho que tem. Repare, tem muito menos recursos humanos, se formos comparar com o período em que eu estava no governo, mas continua a ter a asfixia que tinha há 30 anos. Não evoluiu e se tivesse evoluído, eventualmente, isso poderia ter-lhe permitido acompanhar a pandemia de outra maneira. Quando apresentei a proposta para a nova Lei de Bases da Saúde, uma das coisas que estava prevista era um fundo de emergência para a Saúde Pública, que permitisse atacar certo tipo de situações com toda a celeridade, porque se temos uma estrutura asfixiada que tem de propor tudo com informações e mais informações, que tem de esperar por despachos para agir, não é possível gerir uma pandemia nem tomar a decisão que é precisa num minuto, sob pena de se tornar absolutamente irrelevante.
O que diria a quem governa hoje para a situação não se agravar?
Que tenho esperança que vai ser escolhida uma pessoa capaz, com conhecimento e o prestígio necessários para estar à frente da DGS, uma pessoa que tenha uma visão global e cosmopolita da Saúde e do que se está a passar no mundo, mas também com capacidade e força para exigir que lhe sejam dados os instrumentos adequados para exercer a sua função da forma como os portugueses necessitam. Mas também gostaria de pedir alguma calma e que se esperasse pelo resultado do concurso, embora já tenha dito que não considero a forma adequada para preencher este tipo de lugares.