Se em Lisboa e no Porto há falta de médicos, noutras zonas do país os serviços do SNS estão ainda mais desfalcados. Bragança vai inaugurar uma unidade de cardiologia sem um médico da especialidade nos quadros, estando à mercê de tarefeiros. Devido à falta de camas e anestesistas, há cirurgias no Algarve que são adiadas. Em Aveiro, o setor privado capta médicos especialistas mais procurados. Em abril, o SNS abriu concurso para 1.564 vagas para especialistas, mas, nos últimos anos,mais de 50% ficaram por preencher, diz o Sindicato Independente dos Médicos.
O verão está quase aí, e o diagnóstico sobre o estado do Serviço Nacional de Saúde (SNS) mantém-se: faltam médicos.
O problema é conhecido, de difícil resolução e transversal a todo o território nacional. Manifesta-se, contudo, de forma mais aguda fora das zonas metropolitanas de Lisboa e do Porto, conforme indica o testemunho de três diretores clínicos ouvidos pela Renascença.
O Centro Hospitalar do Algarve (CHUA), por exemplo, conta apenas com um terço dos anestesistas devia ter, o que leva a que “algumas cirurgias mais demoradas” sejam “proteladas”. O Centro Hospitalar do Nordeste (CHN) – que cobre todo o distrito de Bragança - tem apenas três médicos obstetras nos quadros. O Centro Hospitalar do Baixo Vouga (CHBV) tem falta de profissionais nas especialidades de ginecologia, gastroenterologia e dermatologia.
Para fazer face à escassez médicos, a Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde (SNS) antecipou em três meses o processo de recrutamento, que habitualmente arranca apenas a 1 de julho. Desde o passado dia 25 de abril, os hospitais estão autorizados a contratar 1.564 médicos especialistas. E já em 2021 e 2022, foram abertas 1.532 e 1.639 vagas, respetivamente.
Acontece que, “nos últimos três, quatro anos, cerca de 50% das vagas ficaram por ocupar”, diz Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), em declarações à Renascença.
Os médicos prestadores de serviços “garantem as escalas de urgências um pouco por todo o país. E mais no interior”, nota. Um tratamento paliativo e dispendioso: só em 2021, o SNS gastou 530 milhões de euros em honorários para médicos tarefeiros e horas extra.
Em Portalegre, as escalas dos serviços de urgência “são feitas muitas vezes com médicos prestadores de serviços”, conta o responsável do SIM.
Na Guarda, o serviço de urologia funciona apenas com médicos prestadores de serviços. “São uns médicos que Coimbra que vão lá, ao fim de semana, fazer cirurgias.” E há apenas um médico obstetra – que já tem mais de 55 anos – nos quadros.
Concretamente, quantas das vagas abertas nos últimos anos foram preenchidas? Não se sabe.
A Renascença questionou a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) quanto ao número de vagas preenchidas nos últimos concursos para médicos especialistas, assim como os centros hospitalares associados, mas, até à hora de publicação desta reportagem, não obteve resposta.
Problemas a sul
Em janeiro, 174 jovens médicos – a maioria dos quais provenientes do “norte do país”, - escolheram o Centro Hospitalar do Algarve (CHUA) para fazer o internato. Destes profissionais, a maior fatia mudou-se para o distrito mais a sul do país com o propósito de completar a sua formação académica - ou seja, cumprir o conhecido ano comum. Apenas 45 migraram para fazer a especialidade.
Terminado o período de formação, “apenas 40%” destes jovens profissionais ficarão no CHUA, estima o diretor clínico. Uma taxa de retenção que, à primeira vista, pode parecer elevada, mas que, ainda assim, é insuficiente para suprir as necessidades.
“O que acontece é que estes profissionais nem sempre continuam nas especialidades que nós mais necessitamos. Por exemplo: uma das especialidades que nós formamos mais são internistas [profissionais de clínica geral], cerca de 50% ficam aqui. Mas nalgumas especialidades, como urologia, em que formamos um médico a cada ano, acabam quase sempre por voltar ao local de origem”, explica Horácio Luís Guerreiro à Renascença.
Em especialidades como ginecologia ou pediatria, a “taxa de fixação do CHUA é inferior a 50%”; faltam recorrentemente profissionais, o que condiciona a preparação das escalas dos serviços de urgência. Não por acaso, o bloco de partos de Portimão foi um dos que a direção executiva do Serviço Nacional de Saúde (SNS) determinou que, ainda no arranque deste ano, devia encerrar quinzenalmente aos fins de semana.
Em muitos casos, os jovens médicos escolhem voltar aos seus distritos de origem, onde têm família ou até já habitação. Outros são recrutados pelo setor privado. “A concorrência é forte. As pessoas optam por sair dos hospitais públicos e encontrar colocação no privado, onde têm uma pressão [de trabalho] inferior e são mais bem remunerados”, diz o especialista.
Horácio Luís Guerreiro entende o porquê da fuga de profissionais. Em “hospitais carenciados”, “as exigências a nível de trabalho são maiores”, dado que a carga é “repartida por menos pessoas”. Ao mesmo tempo, os hospitais “carenciados” são também pouco eficientes. O CHUA, por exemplo, tem cerca de um terço dos anestesistas que deveria ter – 14 em detrimento de 43 -, “o que condiciona outras especialidades cirúrgicas e não só”.
Para gerir as escalas dos hospitais de Portimão e Faro, o diretor clínico do CHUA é, pois, obrigado a gerir recursos. “Há uma assimetria entre os nossos recursos de anestesia e os recursos da anestesia, por exemplo, do Porto. Só o Porto, digamos cidade e mais Gaia, deve ter 200 anestesistas. Tenho 14 anestesistas para todo o CHUA e mais alguns prestadores de serviços”, queixa-se.
Os anestesistas do CHUA estão, por isso, quase reservados em exclusivo para serviços de urgência e doenças oncológicas.
“As listas de espera cirúrgica crescem, algumas cirurgias mais demoradas acabam por ser proteladas. Essas mais demoradas são mais complexas e, de certa forma, mais aliciantes [para os jovens profissionais]. Portanto, há aqui um círculo vicioso de baixa produção, menos prática, menos atratividade para os profissionais”, afirma.
A urgência de pediatria é também um dos serviços mais asfixiados do CHUA. E para os quais é difícil encontrar alternativas:
“Não posso mandar uma criança de Faro para Lisboa, nem deveria mandar uma criança de Faro para Portimão ou vice-versa. São 70 quilómetros. Uma pessoa que tenha de vir de Vila do Bispo a Faro são 120 quilómetros.”
Em maio, recorde-se, um bebé de 11 meses morreu no hospital de Portimão enquanto aguardava transferência para Faro. E, já na semana passada, os serviços de maternidade, urgência e internamento pediátrico do Hospital de Portimão foram encerrados devido à falta de médicos. (A entrevista da Renascença com o responsável do CHUA ocorreu antes destes acontecimentos.)
Ao mesmo tempo, existem ainda carências estruturais. O CHUA tem “menos de uma cama por cada mil habitantes” e a “resposta social [no distrito] é insuficiente”. A média de tempo de internamento no CHUA “é elevada muito por conta dos casos sociais e também das cirurgias”.
“Não conseguimos dar resposta atempada e libertar camas. Os doentes têm muitas vezes que esperar vários dias para ser operados”, assume Horácio Luís Guerreiro.
Escassez a Norte
No norte do país, mais precisamente em Bragança, o cenário não é muito diferente.
No ano passado, 62 médicos (47 para o ano comum e 17 especialidade) escolheram o Centro Hospitalar do Nordeste (CHN) – abarca 3 hospitais, 14 centros de saúde - para fazer o internato. Concluído o período de formação, 9 recém-especialistas optaram por ficar. “Temos carências em quase todas as especialidades, mas mais numas que outras”, conta Eugénia Madureira, diretora clínica do CHN, à Renascença.
A responsável destaca quatro especialidades, com uma à cabeça: obstetrícia-ginecologia. “É uma carência quase transversal ao país inteiro.”
O CHN tem apenas três médicos obstetras no quadro. “Todos já têm mais de 55 anos, o que quer dizer que estão dispensados, por lei, de fazer serviço de urgência, tanto diurna como noturna.” Todos os anos o CHN abre concurso para contratar obstetras, mas sem sucesso.
“O último colega [de obstetrícia] que entrou foi já no início dos anos 2000. Os concursos ficam desertos.”
Para manter o serviço de urgências de obstetrícia/ginecologia a funcionar, o hospital de Bragança conta com sete médicos que exercem funções em regime de prestação de serviços. “Quantos médicos é eu precisava no quadro? Sete ou oito, para conseguir fazer as equipas. E nem é pedir muito”, diz a diretora clínica.
As outras três especialidades com mais falta de profissionais no CHN são nefrologia (um médico nos quadros, três tarefeiros), cardiologia (um médico nos quadros, dois tarefeiros,) e gastroenterologia (nenhum médico nos quadros, três tarefeiros).
Em situações em que é necessário algum tipo de intervenção no campo da cardiologia, todos os doentes que vão parar ao CHN acabam por ser transferidos – por via aérea ou terrestre – para o Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, em Vila Real.
Ou seja, têm de fazer uma viagem de 120 quilómetros.
“Os doentes são avaliados imediatamente. Temos uma articulação com Vila Real: enviamos os exames, discutimos os exames. Nós conseguimos que um doente, que entra aqui em Bragança com um enfarte do miocárdio - se for preciso enviá-lo logo para hemodinâmica -, nós conseguimos com muita rapidez, examinar o doente e transferi-lo”, diz Eugénia Madureira.
Muito em breve, a CHN vai inaugurar uma nova unidade de gastroenterologia, apesar de não ter médicos nos quadros ou conseguir manter um serviço de urgência, assumiu Eugénia Madureira.
“Damos consultas às 2.ª, 4.ª e 6.ª. Numa situação de urgência, o doente tem de ser transferido, isso não há dúvida. Precisávamos de uma equipa mínima de dois. E já estou a pedir pouquinho.”
Segundo a diretora clínica do CHN, em muitos casos, são os médicos prestadores de serviços que mantém o serviço “de pé”. E, por isso mesmo, defende-os.
“Às vezes, quando estamos a ouvir notícias, passa a ideia de que os médicos prestadores de serviços só andam à procura de dinheiro. Não posso ser considerada uma mercenária da medicina por fazer este tipo de serviços. As minhas competências são iguais. Os médicos acabam por ter dificuldades em pagar as contas no final do mês e querer viver o melhor possível”, diz.
Falta de especialistas em Aveiro
Em 2023, 72 jovens médicos escolheram o Centro Hospitalar do Baixo Vouga (CHBV) – que abarca os hospitais de Aveiro, Águeda e Estarreja - para fazer o internato. De acordo com José Luís Brandão, diretor clínico do CHBV, o número de profissionais que permanece, terminado o período obrigatório de formação, “é muito variável” de ano para ano, mas ainda assim diz que, em regra, “mais de metade escolhe ficar”.
As contratações, porém, não chegam para suprir as necessidades - em particular nas especialidades de ginecologia-obstetrícia, gastroenterologia e dermatologia.
“Tem a ver com as características das próprias especialidades. A relação oferta-procura da atividade privada nestas áreas sente-se muito mais”, diz.
Assim como em Bragança, uma grande parte do corpo clínico de ginecologia-obstetrícia do CHBV está numa faixa etária “em que já está dispensado do serviço de urgência”. Por outras palavras: já tem mais de 55 anos. É necessário, então, recorrer aos médicos prestadores de serviços.
“No último ano tem vindo a diminuir o número de prestadores. Agora há áreas em que não há volta a dar que não seja o recurso a prestação de serviços.”
José Luís Brandão não avança números de médicos nos quadros e prestadores de serviços, mas revela ter “expectativas positivas em relação ao preenchimento de vagas” no concurso a decorrer atualmente. No dia em que conversa com Renascença são apenas 10h30 da manhã e diz: “Ainda hoje já fiz duas contrações. Portanto, é muito dinâmico.”
Quanto ao concurso, nota: “Este ano, a distribuição de vagas pelo país, feita de uma forma um pouco mais homogénea, foi francamente mais positiva para os hospitais periféricos. Houve uma preocupação na distribuição. É um sinal positivo.”