Ana Fonseca Pereira, in Jornal Público
Presidente iraniano disse que Israel é o "mais cruel regime racista", desencadeando um protesto diplomático pouco habitual
Mahmoud Ahmadinejad usou ontem a tribuna das Nações Unidas, em Genebra, para acusar Israel de ser "o mais cruel regime racista", criado com o apoio ocidental a "pretexto do sofrimento judeu" durante a II Guerra Mundial. O discurso levou os diplomatas europeus a abandonarem a sala onde decorre a conferência sobre o racismo, reforçando os receios de que a iniciativa da ONU esteja condenada ao fracasso.
O encontro estava já ameaçado pelo boicote de nove países, encabeçados pelos Estados Unidos, que temiam que o encontro se transformasse numa plataforma de ataque a Israel, a exemplo da primeira conferência sobre o racismo, há oito anos em Durban, na África do Sul. Na altura, americanos e israelitas abandonaram os trabalhos, face a propostas dos países árabes para definir como racista o sionismo (movimento político nascido no século XIX, centrado no regresso dos judeus à Palestina e na criação de um Estado próprio).
Os trabalhos preparatórios da nova conferência - que a ONU queria focar no combate às tensões raciais associadas à imigração e à protecção das minorias étnicas - voltaram a ser dominados pela política de Israel em relação aos palestinianos. A anunciada presença de Ahmadinejad, firme opositor da existência do Estado judaico, criou um embaraço que a ONU não conseguiu desmontar.
Único Presidente a aceitar o convite para a conferência, Ahmadinejad sabia que as atenções estavam centradas no seu discurso e nem um apelo do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, o impediu de pôr novamente em causa a existência de Israel. "A pretexto do sofrimento judeu" na II Guerra Mundial, acusou, os europeus e americanos "recorreram à agressão militar para deixar sem terra uma nação inteira" e os emigrantes por eles enviados "criaram um governo totalmente racista na Palestina ocupada". No dia em que Israel assinala o Dia da Memória do Holocausto, Ahmadinejad acusou o Ocidente de ter apoiado a criação do "mais cruel e repressivo regime racista" da actualidade "como compensação pelas consequências extremas do racismo na Europa".
Repúdio diplomático
Mal se ouviram os primeiros ataques, dezenas de diplomatas, entre eles os dos 23 países da União Europeia presentes no encontro, saíram da sala, num gesto que a Reuters comparou às acesas discussões tidas no mesmo edifício na década de 1930 e que antecederam o colapso da Liga das Nações. Pouco antes, manifestantes pertencentes à União de Estudantes Judeus de França, com narizes e perucas de palhaços, tinham conseguido interromper a sessão, alguns com perucas de palhaço, chamando "racista" ao Presidente iraniano.
Em declarações ao El País, o embaixador espanhol na ONU em Genebra contou que a posição fora acordada com a presidência checa da UE, quando foram discutidas as condições da participação europeia. "No momento em que escutássemos comentários inaceitáveis abandonaríamos a sala", declarou Javier Garrigues.
Mas a falta de consenso europeu - patente no boicote de Holanda, Itália, Alemanha e Polónia à conferência - voltou a manifestar-se quando Praga anunciou o abandono definitivo da conferência, que se prolonga até sexta-feira, num gesto que não teve seguidores. Londres optou por "condenar sem reservas as declarações insultuosas e incendiárias de Ahmadinejad" e o chefe da diplomacia francesa, Bernard Kouchner, que avisara que os europeus não iriam tolerar "derrapagens" anti-semitas, apelou a um consenso contra todas as formas de racismo.
Também a administração americana repudiou o discurso "vergonhoso" e "vil" do líder iraniano, mas disse continuar apostada na melhoria das relações com Teerão desde que o país "abandone esta terrível retórica".
De Israel chegou o aviso de que o país responderá a quem ponha em causa a sua existência e o Presidente Shimon Peres comparou Ahmadinejad a Hitler e a Estaline, "déspotas que escolheram os judeus como alvo do seu ódio". Israel decidiu também chamar o seu embaixador em Berna, em protesto pela recepção dada pelo Presidente suíço, Hans-Rudolf Merz, ao seu homólogo iraniano.
Contudo, a diatribe de Ahmadinejad acabou por ser uma derrota maior para Ban Ki-moon, evidenciando as dificuldades de actuação da ONU, quando é ainda incerto se a conferência conseguirá aprovar uma declaração final. O secretário-geral, que horas antes tinha criticado o boicote internacional, lamentou que o líder iraniano tenha usado a conferência "para acusar, dividir e provocar", quando se pedia o contrário.