Patrícia Carvalho, in Jornal Público
Família tomou conta de idosa na expectativa de que teria direitos sucessórios, mas a câmara diz que o rendimento do agregado é elevado
M. mora no Bairro do Aleixo desde 1980. Começou por instalar-se, com o futuro marido, na casa dos pais deste e aí teve dois filhos. Como a casa começava a ser pequena para a família que ia crescendo, M. aceitou uma situação que, na década de 90, se tornou comum no bairro, como forma de resolver o problema da sobreocupação - a coabitação. Mudou-se, com o marido e os filhos, para casa de uma idosa de quem tomaria conta durante 19 anos. Agora, a idosa morreu e a autarquia ameaça despejar a família por considerar que o processo de coabitação não previa direitos sucessórios.
Por três vezes, M. mudou de casa com a família. Primeiro, deixou o T3 dos sogros, em 1989, para coabitar com uma idosa que morava sozinha num T2 do bairro. O processo foi acompanhado pelo município e autorizado pela então vereadora da Habitação, Maria José Azevedo. Na casa da idosa - que era, agora, também, a casa de M., do marido e dos filhos - chegaram mais crianças. De dois filhos, a família cresceu para quatro.
A câmara reconheceu que se vivia um novo caso de sobreocupação e tratou de mudar a família de M. para outra casa. Desta vez, acompanhada pela idosa de quem tratava e mantendo o alvará da nova casa, um T4, no nome desta. A mudança deu-se em 1995 e até Março deste ano nunca passou pela cabeça da família que um dia poderia ser despejada.
Por isso, quando a idosa por quem M. se responsabilizara morreu, não teve dúvidas em dirigir-se à empresa municipal de Habitação, a DomusSocial, e actualizar a situação do agregado familiar. A idosa morrera, era preciso alterar o nome no alvará. Aos seus quatro filhos, dois dos quais ainda menores, juntavam-se dois netos. A resposta, numa carta datada de 2 de Março, deixou a família com os nervos em franja.
O documento, assinado pelo director de Gestão do Parque Habitacional, Mário Jorge Rebelo, informa M. que, face à morte da titular do alvará, "e tendo a coabitação [...] sido autorizada sem direitos sucessórios", o agregado familiar deverá, "no prazo de quinze dias, proceder à entrega voluntária do fogo em causa". A não devolução das chaves, acrescenta o documento, "implica a imediata instrução do respectivo processo de despejo".
M. pediu ao município que revisse o seu caso. Garante que sempre lhe foi assegurado, ao longo de todo o processo de coabitação, que ficaria com a casa na sequência da morte da idosa. Cita outros casos idênticos ao seu, em que os direitos sucessórios foram garantidos.
A Associação de Promoção Social da População do Bairro do Aleixo (APSPBA) também intercedeu por M. Numa carta enviada a Mário Jorge Rebelo, e a que o PÚBLICO teve acesso, a direcção da APSPBA garante estar-se perante "uma enorme injustiça", frisando: "A autorização desta coabitação, como a de muitas outras neste bairro, foi realizada com direitos sucessórios. Afirmamo-lo peremptoriamente porque acompanhamos este caso, decidido em 1989, pela Câmara do Porto".
A APSPBA, de quem é presidente Rosa Teixeira, garante que, à moradora, "foram dadas todas as garantias, pela autarquia, que à morte da concessionária o contrato de arrendamento passaria para o seu nome". Caso contrário, acrescenta-se, "esta, com toda a certeza, jamais teria aceitado a coabitação e permaneceria na casa dos sogros, esperando uma solução como mais tarde veio a acontecer com casos idênticos ao seu".
A carta da associação parece não ter surtido qualquer efeito, porque, dias depois, M. recebia outra missiva da DomusSocial, com um dado novo. O município continua a defender que M. não tem direitos sucessórios e acrescenta que o rendimento do agregado familiar é muito elevado. "Da análise dos rendimentos declarados resulta que o seu agregado dispõe de condições económicas para prover a habitação no mercado tradicional de arrendamento. Nos termos dos procedimentos em vigor, é requisito de atribuição de habitação social que os agregados disponham de um rendimento mensal inferior a três remunerações mínimas nacionais anuais", diz o documento.
M. diz que não entende. Que é verdade que o marido ganha muito bem, mas que são sete pessoas em casa, e que os outros rendimentos que chegam são muito baixos. Que a câmara sempre conheceu os rendimentos familiares, porque sempre enviaram os dados anuais, e que esta questão nunca foi levantada. Que não se importa de pagar mais renda, mas que não quer sair dali.
O PÚBLICO tentou saber junto da câmara se a avaliação dos rendimentos dos inquilinos municipais poderia resultar em situações de despejo, mas não obteve resposta. Na casa de M. continua-se à espera. A última carta da DomusSocial, de 26 de Março, ameaçava, de novo, com a instrução de um processo de despejo, caso não fosse entregue a chave da casa em quinze dias. M. não entregou.
A Associação de Promoção Social do Aleixo, dirigida por Rosa Teixeira, diz que este caso é uma "enorme injustiça" .