Ana Gerschenfeld, in Jornal Público
Os peritos enfrentam um dilema. Têm de decidir se avançam ou não para o fabrico em massa de uma vacina - e faltam-lhes elementos críticos de decisão
Todos gostaríamos de saber o que o novo vírus da gripe - chame-se-lhe gripe suína, mexicana, norte-americana ou outra coisa qualquer - vai fazer a seguir. Já mostrou que é capaz de se espalhar pelo mundo em poucos dias e já mostrou que pode ser mortal. E agora? Quem gostaria imenso de ter uma resposta a esta pergunta são os peritos que se encontram no centro da investigação epidemiológica da nova doença.
Um dos elementos cruciais dessa resposta é saber, disse ao New York Times Martin Cetron, alto-responsável dos CDC - os Centros de Controlo e Prevenção das Doenças de Atlanta, nos EUA -, quantos casos ligeiros desta nova gripe já houve no México. A pergunta pode parecer estranha, mas condiciona o futuro da epidemia - ou pandemia, ainda não se sabe.
Não terá escapado a ninguém o facto - por enquanto inexplicável - de a doença se ter mostrado, até agora, muito mais virulenta a sul do que a norte da fronteira com os EUA. Várias teorias e especulações têm sido publicadas na imprensa: há quem invoque a má qualidade dos cuidados médicos no México, há quem fale numa eventual menor resistência à doença das populações afectadas devido à pobreza; e há ainda quem diga que uma misteriosa infecção bacteriana poderá estar a infectar as vítimas ao mesmo tempo que o novo vírus, agudizando os seus problemas respiratórios.
Mas, no fundo, será a doença no México realmente diferente da doença nos outros países - ou será isso apenas uma miragem, devida ao facto de o verdadeiro número de pessoas afectadas naquele país, que não é conhecido, ser muito maior? "Talvez estejamos a ver apenas a ponta do iceberg", salienta Cetron na mesma entrevista, "o que nos daria uma estimativa inicial enviesada da mortalidade da doença". Imagine-se: pode haver no México toda uma franja de doentes que não se deslocaram ao hospital justamente porque os seus sintomas eram ligeiros e não o justificavam. Nesse caso, a "variante" mexicana da nova gripe seria na realidade muito menos perigosa do que se pensa actualmente.
O "doente zero"
Uma outra coisa que é preciso saber é onde e quando o surto começou - identificar o "doente zero", a primeira pessoa a ser atingida pelo novo vírus. Isto também contribuiria para avaliar de forma mais exacta em que fase da epidemia nos encontramos. Terá ela começado há meses, nos EUA ou no México, segundo as versões evocadas na imprensa? Ou, pelo contrário, surgiu há apenas umas semanas? Terá a doença vindo de outro país, por exemplo a sul do México, cujos sistemas de vigilância epidemiológica ou são deficientes ou não a detectaram?
Ontem de manhã, a questão da origem da doença parecia prestes a ser resolvida, com o anúncio de que, em inícios de Abril, em La Gloria, uma aldeia do estado mexicano de Veracruz, 60 por cento dos habitantes tinham sofrido um surto de gripe atípica, tendo 400 dessas pessoas requerido assistência médica. O primeiro doente dessa população terá sido um rapazinho de quatro anos, que, segundo explicava ontem o Guardian, foi tratado no hospital e sobreviveu. Entretanto, dois bebés da mesma localidade sucumbiram à doença, em tudo parecida com uma forte gripe.
E mais: a identificação de La Gloria como possível local do surto inicial não é descabida, uma vez que, a uns 20 quilómetros dali está instalada uma unidade industrial de suinicultura. Ora, sabe-se que a convivência de seres humanos e porcos é uma situação propícia para a passagem de vírus destes animais para os homens. Os porcos são considerados pelos especialistas como o caldeirão biológico onde os vírus da gripe humanos e os suínos podem trocar genes entre si, para a seguir "saltar" para a espécie humana. A responsável pela estação de suinicultura, a empresa norte-americana Smithfield, considerou, por seu lado, que tais suspeitas não têm razão de ser, argumentando que todas as devidas precauções para evitar contágios foram tomadas. Mas a história ainda não acabou.
É importante saber quando tudo começou porque, conforme explicava ontem John Barry, especialista de gripe da Universidade de Tulane, também no New York Times, este tipo de pandemias costuma acontecer por vagas: em quatro pandemias anteriores, escreve, "o intervalo entre o momento em que o vírus foi inicialmente detectado e uma segunda vaga, mais perigosa, foi de cerca de seis meses".
Esta questão prende-se directamente com a de saber se deve ou não desenvolver uma vacina contra o novo vírus e avançar para o seu fabrico em massa. Segundo Barry, "o que vem a seguir depende do vírus. Mas fabricar rapidamente uma vacina depende de nós". O desenvolvimento de uma vacina demoraria quatro a seis meses.
Mas, para outros, a decisão é muito mais delicada. Segundo o diário nova-iorquino, os CDC estão neste momento a fazer reagir amostras de sangue provenientes de pessoas vacinadas contra a gripe sazonal para determinar se por acaso o facto de estar vacinado contra a gripe normal confere alguma imunidade contra o novo vírus. Ninguém acredita muito nesta hipótese, mas ela tem de ser testada.
Para mais, normalmente, os vírus da gripe costumam atenuar-se à medida que se espalham nas populações - e isto também pode vir a acontecer. Só que este novo vírus espalha-se aparentemente com uma tal facilidade que, mesmo que tenha letalidade reduzida, se afectar grandes números de pessoas irá vitimar grandes números de pessoas (a título comparativo, a pandemia de 1918, que matou 50 milhões de pessoas no mundo, tinha uma taxa de mortalidade de 2,5 por cento).
No mais recente briefing de imprensa publicado no site dos CDC, Richard Besser, um outro responsável daquele organismo, argumenta que se trata de uma decisão "que não é fácil", porque afectaria os planos de fabrico da vacina contra a gripe sazonal - a gripe normal - do próximo Inverno. Como faz notar por seu lado o Guardian, os laboratórios farmacêuticos não dispõem de recursos suficientes para fabricar duas vacinas ao mesmo tempo.