Por Natália Faria, in Jornal Público
Os especialistas são unânimes: os cortes no abono de família que hoje entram em vigor reduzem a quase nada as políticas de apoio à natalidade
Sofia Oliveira não só gostava de dar um irmão à sua filha Matilde, de 16 meses, como sonha com isso. O marido até já decidiu que, se nascesse rapaz, seria Rodrigo. E a mobília de quarto que ambos compraram para a Matilde até já veio "com duas caminhas". O pior é o dinheiro: Sofia, 28 anos e a ganhar 700 euros líquidos numa fábrica de cortiça, em Santa Maria da Feira, já viu o abono de família descer de 89,90 para 22,59 euros. "Passaram-me do terceiro escalão para o quarto e, quando a Matilde fez um ano, cortaram o subsídio de aleitamento", descreve.
O marido, trabalhador na construção civil, teve um acidente de trabalho que lhe inutilizou o braço direito e vai continuar de baixa não remunerada até que se desate o litígio judicial com a seguradora. A perda do seu salário, que era de 500 euros, ajudou a que a prestação da creche baixasse para 55 euros. Mas nem assim - nem com os 45 euros que Sofia vai buscar todos os sábados ao salão de cabeleireiro onde é ajudante - as contas ficam equilibradas. "Ter um filho agora é impensável: caíamos todos no abismo."
Sofia nem sabe que faz parte dos 34 por cento de mulheres portuguesas entre os 25 e os 29 anos que gostavam de ter, pelo menos, dois filhos. A percentagem foi apurada num inquérito que a Associação Portuguesa de Famílias Numerosas (APFN) promoveu no início deste ano e que conclui o óbvio: não fossem as condicionantes financeiras e as dificuldades de conciliação família-trabalho, haveria mais crianças a nascer em Portugal e o índice sintético de fecundidade não estaria tão abaixo dos 2,1 filhos por mulher necessários para garantir a substituição de gerações.
Com Portugal transformado no 8.º país mais velho do mundo (contas da ONU), os cortes no abono de família que hoje entram em vigor e nas deduções à colecta das despesas com saúde e educação surgem como "uma confissão de falência do Estado", segundo o demógrafo Mário Leston Bandeira, para quem "ter um filho transformou-se num luxo, assim como comprar uma segunda casa". O mais grave é, para a secretária-geral da APFN, Ana Cid, "a cegueira" dos novos tectos para a dedução em sede de IRS das despesas com saúde, educação, encargos com crédito à habitação ou com lares de idosos, "fixados independentemente do número de pessoas que compõem o agregado familiar" mas que já não atingirão tantas famílias depois do acordo entre PS e PSD para a viabilização do Orçamento do Estado.
Cheque-bebé na gaveta
Os incentivos à natalidade foram uma das bandeiras do primeiro-ministro. Durante a campanha para as legislativas de 2009, José Sócrates propôs-se investir mais de 20 milhões de euros por ano no famigerado cheque-bebé. A ideia era atribuir 200 euros por cada bebé nascido numa Conta Poupança-Futuro, com benefícios fiscais. Duplo objectivo: incentivar a natalidade e estimular hábitos de poupança. O cheque, porém, nunca chegou a sair do papel. A majoração do abono de família sim, mas por pouco tempo. E as políticas de apoio à maternidade voltaram assim a ficar reduzidas ao subsídio pré-natal que, desde 2007, é atribuído a partir do quarto mês de gravidez, mas apenas aos agregados com rendimentos mensais brutos inferiores a 1989 euros.
Para lá dos incentivos financeiros, a presidente da Sociedade Portuguesa de Demografia, Maria Filomena Mendes, reclama políticas voltadas para a igualdade de género. "Os estudos mostram que as questões da igualdade de género, dentro do agregado familiar e no contexto laboral, são determinantes no aumento da fecundidade", diz.
O novo regime de protecção da parentalidade, em vigor desde Maio de 2009, dava um passo em frente no sentido da igualdade, ao admitir os seis meses de licença remunerados a 80 por cento, desde que um deles seja gozado em exclusivo pelo pai. O problema é que, 14 meses depois, apenas 25 por cento dos pais tinham gozado aquele mês de licença.
"Enquanto não houver medidas que ajudem as mulheres a conciliar o facto de serem mães com a carreira profissional, o cenário não vai mudar", acrescenta Leston Bandeira. Soluções? "Temos que ter empresas mais amigas das famílias com filhos pequenos", sugere Filomena Mendes. "Isenções fiscais para as empresas que abram uma creche para os filhos dos funcionários ou que promovam o trabalho em part-time para os funcionários com filhos pequenos", concretiza Leston Bandeira, para quem o país não vai conseguir pôr as mulheres a ter mais filhos se não garantir "mais creches, mais baratas e com horários mais flexíveis".