5.6.23

“Assim, dá mais vontade de vir”: a estes alunos falta comida na mesa e uma casa em condições. Pintar o recreio trouxe-os de volta à escola

Joana Pereira Bastos e  Nuno Botelho, in Expresso

Projeto “Recreios Coloridos” ajuda a combater o abandono e o insucesso na escola do 1.º ciclo do Fogueteiro (Seixal), que serve o Bairro da Jamaica, um dos mais pobres do país. Iniciativa dos professores foi premiada pela EPIS


Um dia, ao navegar no Facebook num intervalo das aulas, a professora Sandra Gonçalves deparou-se com fotografias de uma escola primária do norte da Europa, pintada de cores alegres, num ‘brinquinho’, com crianças sorridentes entretidas a brincar. Pousou o telemóvel e olhou à volta. A imagem que vira não podia ser mais distante da que tinha à sua frente, como a realidade dos alunos de lá não podia ser mais díspar da dos seus meninos, muitos deles oriundos do Bairro da Jamaica (concelho do Seixal), um dos mais pobres do país. O choque entre as duas imagens impeliu-a a agir. Nessa mesma tarde, sentou-se ao computador e concebeu um projeto. Chamou-lhe “Recreios Coloridos”. Estava determinada em dar cor ao enorme pátio de betão que enegrecia a EB1 do Fogueteiro, convicta de que a luz ajudaria a tornar menos escuro o futuro dos mais pequenos.


O projeto foi prontamente acolhido pela direção da escola, construída há quase meio século e que há seis anos aguarda por uma prometida, mas sempre adiada, requalificação, ainda sem data para avançar. Os professores uniram-se para comprar as primeiras tintas e, em conjunto com as crianças, meteram mãos à obra. Pincelada a pincelada, taparam com desenhos as paredes descoloradas e cobriram de um branco luminoso os velhos muros de cimento. Traço a traço, pintaram no chão um alfabeto colorido e delinearam os contornos da macaca e de outros jogos.

“Os meninos ficaram extasiados quando viram que o campo de futebol finalmente tinha linhas”, recorda a professora. Não é para menos. Ser futebolista é o sonho da maioria e todos querem ser como Rafael Leão, o internacional português que cresceu no Bairro da Jamaica, como eles, andou naquela mesma escola e é hoje um dos melhores do mundo, agora ao serviço do AC Milan.

A cada nova pintura, a escola foi-se tornando menos cinzenta. “Está a ficar mais bonita. Assim, dá mais vontade de vir”, admite Lamine, de 10 anos, que chegou há dois da Guiné, onde nunca tinha ido às aulas. Num tom envergonhado e em poucas palavras, o menino resume o principal objetivo do projeto: aumentar a motivação das mais de 200 crianças e combater o abandono escolar, que há dois anos letivos, quando arrancou a iniciativa, era naquela escola quatro vezes superior à média nacional.

É muito difícil estudar quando em casa falta quase tudo. “Às segundas-feiras, no lanche da manhã, vários meninos pedem para comer três e quatro carcaças. Vêm famintos do fim de semana”, conta Sandra Gonçalves. Falta-lhes comida na mesa, uma casa em condições e, em muitos casos, uma família que os incentive a ir à escola. Por vezes, são os próprios professores que têm de ir ao bairro buscá-los para assegurar que continuam a frequentar as aulas. Em média, os pais dos alunos do agrupamento não completaram sequer o 9º ano e muitos têm baixas expectativas em relação ao ensino, optando por se manter à distância.

Por isso, aproximá-los da escola foi o passo seguinte do projeto “Recreios Coloridos”, que acabou por ser distinguido pela Associação de Empresários pela Inclusão Social (EPIS) com a atribuição de uma bolsa destinada a promover boas práticas no ensino e que permitiu reforçar o stock de tintas e dar redobrada ambição à iniciativa. Para visível felicidade das crianças, os pais foram chamados a ajudar na tarefa. De rolo e pincéis na mão, famílias de diferentes comunidades, de bairros muitas vezes em conflito, uniram-se na pintura do espaço. “É muito bom para criar um sentido de comunidade e faz com que as crianças fiquem mais contentes e ganhem mais gosto por vir à escola”, reconhece Lorena Pires, mãe de um menino de 5 anos.

APRENDER A BRINCAR

Diogo Simões Pereira, diretor-geral da EPIS, corrobora: “O envolvimento dos pais na requalificação do espaço compromete-os com a obra. Sentem-se mais próximos da escola e mais motivados para acompanhar os filhos. No seu todo, este projeto abre uma nova porta de combate ao abandono, estabelecendo pontes entre pais e filhos, pais e professores e pais de diferentes comunidades, num esforço conjunto de criação de um espaço de brincadeira e aprendizagem.” E a brincar, muito se aprende.

Foi precisamente essa uma das premissas do projeto. Com o alfabeto colorido pintado no chão, com uma letra em cada círculo, fazem-se jogos de palavras que estimulam a aprendizagem da leitura; outros jogos tradicionais desenhados nas paredes promovem o raciocínio e facilitam o estudo da Matemática, por exemplo. E as balizas de futebol ou as tabelas de basquete, conseguidas graças à bolsa da EPIS, fazem da escola um espaço onde cada vez mais querem estar.


Como a cor nas paredes, também os resultados começam a aparecer, promovidos por este e outros projetos, como o clube de robótica, a horta pedagógica e a aposta no desporto. “A participação nas atividades da escola aumentou bastante e, neste momento, não temos casos de abandono escolar”, garante a professora Sandra Gonçalves. “Vestimos a camisola. Tornámo-nos uma família e isso sente-se”, diz. A escola tornou-se mais colorida e o percurso destas crianças um bocadinho mais luminoso.