Estudo científico traça a exploração e evolução da espécie e suporta o Plano de Ação pedido pelo Governo. Negócio está na mão de redes, atestam autoridades
Já tinham passado cinco anos desde que a exploração da amêijoa japonesa no estuário do Tejo fora objeto de um levantamento científico. Mas mesmo antes dos investigadores da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FC-UL) porem um pé novamente no terreno, era já certo que a apanha desta espécie invasora se mantinha, e fulgurante, numa área onde é maioritariamente proibida ou com classificação C, devido aos níveis elevados de contaminação que a tornam imprópria para consumo sem tratamento.
Basta esperar a maré baixa, seja de dia ou de noite, ir até à área norte do Parque das Nações, em Lisboa, e olhar o rio, ou atravessá-lo pela Ponte Vasco da Gama até às salinas do Samouco ou Alcochete, na margem sul, para detetar os mariscadores. São às centenas os vultos, a fazer as duas marés de um dia, meio corpo dentro de água ou plantados nos bancos de areia, curvados sobre si, a esgravatar o leito arenoso deixado a descoberto. Outros há que, aos comandos de barquinhos — diminuídos pela distância —, arrastam ganchorras de metal com que aram o chão do Tejo e de lá tiram tudo o que vier.
Serão 1128 os apanhadores que ali se dedicam anualmente a esta atividade, 579 todos os dias, a maioria apeados (678), e os restantes no arrasto (279), com berbigoeiro (153) ou a mergulhar com escafandro (18), contabilizou o projeto Nipoges, desenvolvido entre 2019 e 2022, sob coordenação da investigadora Paula Chainho, do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (MARE) da FC-UL, e cujos resultados foram agora revelados ao Expresso.
O rendimento anual estimado de €17,7 milhões por cerca de 5600 toneladas de amêijoa capturada ajuda a explicar a atração da apanha. E a quase total ausência de regras — e de impostos — também. Em 2019 apenas havia ali 190 mariscadores licenciados e a venda não era declarada em lota — menos de 4 toneladas anuais —, mas feita diretamente em mercados, restaurantes, cafés ou canalizada para intermediários primários e secundários que exportam os bivalves para toda a Europa, sem controlo sanitário.
Em relação ao último estudo, de 2014, o Nipoges já detetou alterações. A amêijoa japónica tem alargado a sua área de distribuição no estuário do Tejo, tendo sido encontrada em 73% da área analisada, mas existe com menos abundância e menor tamanho, duas consequências da sobre-exploração.
Em 2019, ano em que foi feito o levantamento, foi constatada também uma redução dos apanhadores no estuário do Tejo — menos 500 a 600 —, mas um aumento exponencial da utilização de ganchorra, uma arte ilegal que faz sozinha o trabalho de muitos homens, e que foi utilizada em 80% das capturas. Em breve haverá novos números. Os investigadores do MARE voltaram esta semana ao Tejo para mais uma campanha de amostragem. O objetivo é manter o projeto sempre atualizado.
“Tudo o que acontece ali é ilegal a inúmeros níveis. A pesca é a única forma de controlar a expansão desta espécie invasora, mas não assim, de forma desregulada. Com uma apanha sustentável e controlada pode minimizar-se os impactos e aproveitar a importância socioeconómica da amêijoa japonesa”, explica Paula Chainho, que contou com o apoio dos mariscadores nas campanhas e nas estimativas do fenómeno.
Na proposta de modelo de gestão resultante do estudo sugere-se a criação de áreas de exploração e de regime livre, o aumento da fiscalização e vigilância, a criação de unidades de transformação industrial e áreas de transposição (tratamento), a atribuição de licenças em coletes com QR code, lotas ambulatórias, identificação e punição dos poluidores, certificação de origem, entre outras medidas.
É com base nos resultados do Nipoges — que analisou também a lagoa de Óbidos, a ria de Aveiro e estuário do Sado — que a investigadora do Universidade de Lisboa está agora a desenvolver o Plano de Ação Nacional para a Amêijoa Japonesa, a pedido do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). Será entregue em novembro deste ano, para posterior aprovação em Conselho de Ministros.
O OUTRO LADO DO RIO
Mas falta a esta história outro lado, que não cabe num estudo científico, que se afasta da amêijoa e se centra em quem a apanha e quem lucra com ela. Nunca são a mesma pessoa. Falta a parte do crime. Há cerca de uma década que o negócio milionário da amêijoa japonesa do Tejo é explorado por redes organizadas, com portugueses à cabeça, que levam ilegalmente os bivalves para Espanha, França, Itália, Bélgica e Holanda, graças a guias com origem falsificada no Sado, e vendem-nos pelo dobro. Há quem tenha trocado o tráfico de droga por isto.
No fundo da cadeia estão milhares de apanhadores, muitos migrantes, que são explorados e coagidos. Fazem duas marés, vivem em condições indignas, ganham o mínimo. É como olhar para as estufas de Odemira, só que lá ajoelham-se na terra e aqui é no lodo do Tejo.
E há mais parecenças. “Os portugueses e os europeus, de leste, romenos e moldavos, foram desaparecendo e a maioria dos apanhadores agora é de origem asiática. Primeiro vieram os tailandeses, mas já há nepaleses e malaios. Foram explorados na agricultura e agora vêm para aqui, onde conseguem ganhar um pouco mais”, explica uma fonte policial. “Mas não me parece que haja menos pessoas no rio. Aliás, acho que isto está cada vez pior”, assegura.
Só no ano passado, GNR e Polícia Marítima capturam 33.505 toneladas de amêijoa japonesa, a maioria durante o transporte a partir do Samouco e Alcochete. Este ano somam quase 5 mil toneladas.
“Isto começou há 15 anos e por incompetência das mais diversas entidades ganhou esta dimensão. Agora envolve uma série de crimes, de saúde pública, económicos, ambientais, de segurança”, critica o presidente da Câmara de Alcochete, Fernando Pinto, que recentemente voltou a denunciar a situação ao Conselho da Área Metropolitana de Lisboa.
O último alerta juntou-se às duas moções aprovadas pela autarquia a exigir o combate da apanha ilegal, enviadas ao Governo, Presidência da República e Parlamento; os e-mails quase diários que mandava com fotografias a Eduardo Cabrita, quando este era ministro da Administração Interna; a reunião com a secretária de Estado Patrícia Gaspar na anterior legislatura “cheia de promessas”; ou a conversa informal que teve com José Luís Carneiro, o atual MAI, no passado mês de março, após o Conselho de Ministros descentralizado em Setúbal.
“É preciso uma task force, como a da vacinação, que ponha as entidades a trabalhar todas juntas, articuladas. Isto não vai lá atacando um a um, os tentáculos do polvo”, critica o autarca. “É preciso ir à cabeça.”