Alexandra Campos, in Jornal Público
Medida controversa entra em vigor dois dias após publicação. Associações de utentes contra o que chamam "novo imposto"
Para garantir que as novas taxas não vão cercear o acesso ao serviço público das pessoas mais carenciadas, o Ministério da Saúde lembra que mais de metade dos utilizadores (55 por cento) está isenta de qualquer pagamento. É o caso das grávidas, das crianças até 12 anos, dos desempregados, dos pensionistas e dos trabalhadores com rendimento não superior ao salário mínimo nacional. Estão ainda isentos os bombeiros, os dadores de sangue e pessoas com uma série de doenças, nomeadamente os insuficientes renais, diabéticos, hemofílicos, tuberculosos, doentes com sida e com cancro, doentes mentais crónicos e toxicodependentes.
O Governo chama-lhes "taxas moderadoras", mas, para a associação de defesa de consumidores Deco e para três movimentos de utentes do Serviço Nacional de Saúde (SNS), a cobrança de cinco euros diários por internamentos hospitalares e de 10 euros por cada cirurgia de ambulatório não passa de "um novo imposto". Seja qual for a designação, o certo é que os doentes que, a partir de amanhã, se submeterem a uma operação e ficarem internados até um limite de dez dias num hospital passam a ter de suportar estes novos custos.
A polémica medida de alargamento das taxas de utilização ao internamento (até dez dias) e de cirurgia ambulatória (sem internamento) entra em vigor no domingo, apenas dois dias após a nova tabela ter sido publicada e meio ano depois de a medida ter sido anunciada pelo ministro Correia de Campos, desencadeando grande contestação.
Uma contestação que, todavia, acabou por não ter efeitos práticos. Diversos movimentos de utentes, os partidos da oposição e mesmo alguns responsáveis do PS chegaram a pôr em causa a constitucionalidade da medida. Mas, apesar de o ministro da Saúde ter anunciado que iria pedir formalmente a avaliação pelo Tribunal Constitucional, isso não chegou a acontecer. "Os deputados consideraram que não havia razão para suscitar a inconstitucionalidade. Esta questão está ultrapassada", explicou Maria de Belém, presidente da comissão parlamentar de saúde. O ministro da Saúde recusou-se ontem a fazer comentários, mas o seu gabinete lembrou que as cirurgias e os internamentos eram as únicas áreas em que não havia taxas moderadoras, uma vez que isso já acontece há anos com as urgências, as consultas e os exames de diagnóstico - que, através da portaria de ontem, sofreram uma actualização da ordem da inflação de 2006 (2,3 por cento), mais 25 cêntimos nas urgências hospitalares e 10 cêntimos nas consultas.
Para o médico João Semedo, do BE, que interpelou Correia de Campos no Parlamento a este propósito, mais do que os efeitos práticos deste alargamento das taxas - que apenas penalizarão "a faixa de cidadãos não isentos que vivem com dificuldades" -, o problema reside no seu objectivo oculto: o de se "ir insinuando na consciência social a noção dos co-pagamentos".
Em Setembro do ano passado, o Governo estimava que esta novas taxas iriam gerar uma receita adicional para o Estado de cerca de nove milhões de euros por ano. Uma gota no oceano do orçamento do Ministério da Saúde (8,5 mil milhões de euros), mas ainda assim justificada pelo ministro com objectivos estruturais. "A taxa de cinco euros por dia não paga três quartos de uma só refeição no hospital. A receita esperada vai permitir tratar dois mil novos casos de doentes de cancro", argumentou então o ministro, notando que a diária de internamento num hospital nacional custa 480 euros e, num distrital, 320.
Ontem, três movimentos de utentes não tardaram a reagir ao anúncio da entrada em vigor da medida. Vitorino Brandão, do Movimento pelo Doente, considerou que "a mais penalizada será a classe média, que é a que mais tem sofrido com os impostos". E o Movimento de Utentes de Saúde, através de Santos Cardoso, defendeu que se está a "abrir a porta para o princípio do utilizador-pagador", enquanto Castro Henriques, do Movimento dos Utentes dos Serviços de Saúde, notava que as taxas são "mais um passo para acabar com o SNS e entregá-lo aos privados". Para o secretário-geral da associação de defesa de consumidores Deco, Jorge Morgado, trata-se de "um novo imposto", uma "nova forma de financiamento" do SNS, tendencialmente gratuito e que agora passa a ser "tendencialmente pago".
Outra questão prende-se com a cobrança das novas taxas, quando se sabe que, em muitos casos, as actuais já não são pagas pelos doentes. A portaria estabelece que as unidades de saúde devem providenciar meios para a cobrança (terminais de pagamento automático).
Ontem, os hospitais parecem ter sido apanhados de surpresa com a pressa na entrada em vigor da medida. José Miguel Boquinhas, do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, fez sair uma circular para avisar os encarregados das novas cobranças e disse que a forma de assegurar o pagamento (eventualmente através de uma caução) será discutida na próxima semana.