Isabel Arriaga e Cunha, Bruxelas, in Jornal Público
Paul Magnette, professor de Ciências Políticas na Universidade Livre de Bruxelas, é considerado um dos maiores pensadores actuais sobre a realidade europeia
A Europa já viveu várias crises, mas a actual é "politicamente mais grave" que as anteriores porque, à falta de motivação das elites se junta um défice de legitimidade junto da população. A necessidade de digerir a enome quantidade de projectos dos últimos anos, o "falhanço político" do alargamento ao Leste e os mal-entendidos dele decorrentes, impõem um período de reflexão, de dez a quinze anos, para permitir a estabilização e reequilíbrio do projecto europeu. A Constituição Europeia deveria ser abandonada, porque não tem "quase nada" de bom, e dar lugar a uma nova ronda de negociações entre os governos com base num consenso sobre o que querem fazer juntos.
Face à actual crise da integração, pensa que estes vinte e sete líderes da União Europeia (UE) que celebram [amanhã] em Berlim os 50 anos do Tratado de Roma, poderiam conceber um salto conceptual tão drástico como o de 1957?
É uma comparação difícil, porque se o Tratado de Roma não existisse, que tipo de relações teriam os Estados? Aliás, a actual crise tem parcialmente a ver com o facto de termos atingido um grau de integração muito elevado. É mais facil partir do nada e dar um grande salto, do que partir de uma situação semi-integrada para fazer algo do mesmo tipo. Mas há já vários anos, talvez desde o Tratado de Maastricht [1991], que a Europa parece ter perdido completamente a dinâmica ...
É verdade, não há qualquer salto qualitativo em nenhum domínio. Mas desde Maastricht a Europa tem estado absorvida com o euro e com o alargamento [ao Leste], que supôs os Tratados de Amesterdão e de Nice e a tentativa de Tratado Constitucional. A energia política não é infinitamente multiplicável. Há fases históricas para realizar saltos, e há outras para consolidar e estabilizar. Que suscitam menos entusiasmo político, claro. A ordem europeia baseou-se na hipótese da Guerra Fria, de maneira que a queda do Muro de Berlim criou um contexto favorável à tomada de uma nova grande decisão, que foi Maastricht. Desde então, não temos nada disso. O que não impediu avanços espectaculares na cooperação penal, por exemplo, ou na energia. A Europa continua a funcionar.
A acual crise de desconfiança dos cidadãos não terá a ver com a forma como foi feito o alargamento ao Leste, apresentado como uma obrigação moral e sem o menor entusiasmo?
Houve um falhanço político do alargamento, é incontestável. Falhámos uma forma de apropriação politica da saída do comunismo, não conseguimos fazer perceber que era um salto histórico quase tão importante como foi a saída do fascismo e da Segunda Guerra. Devia ter sido a ocasião de refundar o projecto europeu em valores, em princípios. Daí o falhanço político.
Porquê ?
Em parte devido à ambivalência de grande parte da esquerda face ao comunismo. A queda do comunismo não foi celebrada como a exaltação da democracia, não suscitou as explosões de alegria da Europa Ocidental como as provocadas pela revolução dos cravos em Portugal ou a morte de Franco. Em simultâneo, a agenda europeia estava sobrecarregada, as opiniões públicas estavam absorvidas pelo euro, falava-se de redução de despesas, de reforma dos serviços públicos e da liberalização dos transportes aéreos e ferroviários, dos correios ou da energia. Durante esse período não se falava de alargamento que, no entanto, avançava. Mas não se deve exagerar, porque os candidatos entraram, estão no sistema. E o sistema foi adaptado. Não muito bem, mas funciona...
Mas este silêncio não resultou da recusa dos responsáveis políticos de enfrentar o debate sobre os custos do alargamento, as dificuldades, o aumento da concorrência ?
Sim, mas tivemos as mesmas dificuldades nos anos 70 com o alargamento meridional, só que foram sublimadas. Nessa altura também havia receios da concorrência do tomate, azeite ou vinho espanhóis, enquanto que o movimento de trabalhadores portugueses era muito temido. Fizeram-se cláusulas de salvaguarda e injectou-se dinheiro mas, ao mesmo tempo, fizeram-se outras coisas, como o mercado único, o pacote Delors I (financiamento da UE) ou o Airbus. Ou seja, houve uma mistura de aumento da concorrência e de políticas estruturantes. Já o alargamento de 2004 foi feito quase só com o aumento da concorrência.
As politicas estruturantes vão acabar por chegar, mas praticamente só ao fim de dez anos. O facto de este alargamento ter sido feito sem aumento do orçamento, [da UE] e de os novos estados só terem acesso pleno à livre circulação de trabalhadores em 2011, aos fundos estruturais em 2012 e às ajudas agrícolas em 2013, significa que entre a sua entrada e a adesão plena terá passado quase uma década. É um período terrivelmente longo e a única coisa que eles poderão fazer é jogar com o seu poder de atracção do investimento. Serão anos muito tensos com uma deterioração terrível das opiniões públicas.
Como é que caracteriza a actual crise europeia?
É uma crise de crescimento. A integração europeia tem evoluído de forma sinuosa entre fracassos e sucessos, mas avançou sempre. Nunca houve recuos face ao que já está integrado. Às vezes estagna, e penso que estamos numa fase dessas, o que é largamente explicado pelas mudanças estruturais, o euro, o alargamento, o programa de liberalizações. Mas mesmo assim, a Europa não parou.
Então não considera esta crise mais grave que as anteriores ?
É uma crise politicamente mais grave porque é simultaneamente uma crise de motivação das elites e de legitimidade na população. Tivemos os dois tipos de crises no passado, mas nunca ao mesmo tempo, como acontece hoje. Temos uma geração que não acredita na Europa, sobretudo à direita. Na Europa dos Seis havia uma direita democrata-cristã interclassista, centrista e muito pró-europeia. Hoje temos uma direita muito nacionalista e muito menos favorável à integração : Aznar, Berlusconi, os irmãos Kaczynski na Polónia, Vaclav Klaus na República Checa. Na esquerda começamos a ter uma cisão entre a esquerda aberta, modernista e reformista, como Zapatero, Prodi, e a esquerda mais proteccionista que defende interesses sectoriais e cuja encarnação foi o "não" socialista em França. Ou seja: o espaço eleitoral de apoio à integração europeia passou de dois terços para uma pequena metade. E isso é muito pouco, não é suficiente para construir grandes compromissos.
Qual é então a saída para a actual crise ?
Creio que teremos vários anos, até 2020-2025, calmos, sem grandes choques previsíveis. As negociações com a Turquia continuam mas não estarão concluídas antes dessa data. Os Balcãs terão um calendário do mesmo tipo. Por isso, não haverá nenhum grande ajustamento a fazer. Terá de ser um período de racionalização, de afinação do sistema, de reequilíbrio do conjunto, o que deverá permitir ganhar progressivamente o apoio eleitoral. Se se acrescentar um pouco de política industrial e de proteccionismo e se forem feitos esforços em política externa, será possível reconquistar a esquerda social-democrata e uma parte da direita. Ao mesmo tempo, os países da Europa Ocidental vão perceber que o alargamento não é a catástrofe anunciada, que não haverá hordas de canalizadores polacos nem dumping fiscal e social massivo, tanto mais que estamos num bom ciclo económico, que ajuda a melhorar o estado de espírito colectivo. Na Europa Oriental as coisas começarão igualmente a mudar: não é imaginável que as coisas permaneçam como estão na Polónia durante mais dez anos, terá de haver a dado momento alternância e estabilização política. O mesmo nos outros países. Serão quinze anos de digestão de tudo o que acabámos de absorver e de reflexão para permitir que dentro de quinze anos, o sistema esteja bem restabelecido.
Durante essa reflexão pensa que a Europa deverá clarificar questões como as da sua finalidade, fronteiras e papel no Mundo, como por exemplo se quer ser ou não uma potência e que tipo de relação deverá ter com os Estados Unidos ?
Penso que sim. Em política externa, o consenso é muito maior do que se imagina sobre a noção de que a Europa é uma potência que age com meios económicos, mas que tem também vocação para intervir com meios militares no quadro das Nações Unidas. O que significa não intervir no Iraque. Mas intervir na Macedónia, com forças de interposição para suceder à NATO; intervir na República Democrática do Congo ou no Darfur; ou colocar uma força de interposição no Líbano, são posições que estão totalmente na vocação europeia e que beneficiam de um apoio popular e político extremamente grande. Não temos problemas com a utilização das armas, temos problemas com o intervencionismo: mesmo no Kosovo ou no Afeganistão, foi quase uma situação-limite. Já com a guerra do Iraque era absolutamente evidente que aí, iríamos longe demais. A grande força da Europa é ter um enorme consenso sobre isto.
Mas com a guerra do Iraque a Europa partiu-se ao meio.
O problema é que o consenso europeu está escondido, porque há um epifenómeno que é uma forma de hiper-polarização sobre os Estados Unidos ligada, por um lado, à radicalização da administração Bush, que nos complicou o problema; por outro, à falta de compreensão mútua entre a Europa Ocidental e Oriental sobre o que foi o comunismo e a imagem dos Estados Unidos. Cada vez que somos obrigados a definir-nos face aos Estados Unidos, abrimos uma brecha no consenso europeu. Creio que os mal-entendidos se dissiparão com o tempo, porque o consenso sobre os valores é fundamental. O erro mais catastrófico do mandato de Tony Blair foi ter-se posto ao lado de George W. Bush na guerra do Iraque: se ele tivesse recusado intervir, teria mudado completamente a situação para a Europa. Nenhum dos outros teria ousado intervir.
Isso teria significado abrir um conflito com os Estados Unidos...
Sim, mas não seria um conflito aberto. Diríamos: vocês querem ir, nós não estamos de acordo e utilizaremos todos os instrumentos do multilateralismo, e em particular as Nações Unidas, para o dizer. Desta forma, a Europa teria desempenhado o que é uma das suas vocações, o papel de potência negativa. Não devemos ser apenas uma potência negativa, devemos ser também a potência que pelo seu peso económico e comercial e pela sua influência intelectual, tem a vocação e o direito de dizer que não está de acordo com um certo número de orientações aventureiras. Devemos ser uma potência negativa, mas devemos ser também uma potência civil convincente.
Paul Magnette, de 35 anos, é professor de Ciências Políticas na Universidade Livre de Bruxelas - de cujo Instituto de Estudos Europeus é director - e no Instituto de Estudos Políticos de Paris. É autor de um grande número de livros, incluindo "Au nom des peuples: le mal-entendu constitutionnel européen", "Le regime politique de l"Union Européenne" e "Le souverain apprivoisé: l"Europe, l"État et la démocratie".