Ana Cristina Pereira, in Jornal Público
Abaixamento da idade obriga a repensar sistema. Cada criança vítima conta, em média, oito vezes os factos em investigação
O impacte do processo Casa Pia tornou "a prostituição infantil mais discreta". "A existência de redes de transporte acessíveis e de abusadores com capacidade económica potenciam o resguardo desta actividade para residências particulares ou estabelecimentos de hotelaria mais discretos", dispersando-a por Lisboa, observa o subintendente Dário Prates. No Parque Eduardo VII, há prostitutos maiores de 18. "Se houver um cliente que procure um menor para fins de exploração sexual, facilmente um "prostituto" se transforma num "angariador" e promove o contacto com o menor, em data e local a combinar".
a A idade das vítimas de crimes sexuais é cada vez mais baixa. Desde 2003, a Polícia Judiciária abriu 676 inquéritos a envolver crianças até cinco anos. Treze ainda nem sequer tinham celebrado o primeiro aniversário, 22 contavam entre 12 e 24 meses, 48 iam a caminho dos três anos, 154 a caminho dos quatro, 187 a caminho dos cinco, 256 a caminho dos seis.
Os números constam do relatório exploratório do Grupo de Prevenção do Abuso e do Comércio Sexual de Crianças Institucionalizadas, constituído pelo procurador-geral da República, Pinto Monteiro - após a suspensão de um educador de juventude da Casa Pia de Lisboa por indícios de "violação grave" do dever de protecção das crianças -, com a missão de fazer "um levantamento, junto das instituições do Estado, na área da comarca de Lisboa", da situação dos menores internados e de o acompanhar com "um estudo da criminalidade participada e conhecida".
"A recente mediatização mórbida da matéria pedofilia-abuso sexual de crianças tem contribuído para uma visão mais emotiva do que crítica deste fenómeno", salienta Maria José Morgado, coordenadora da equipa, no relatório exploratório ontem divulgado. De repente, a sociedade passou da "indiferença" e da "ignorância dos direitos da criança para uma atitude por vezes doentia."
O relatório oferece uma visão multifacetada. Com base nos estudos da Unidade Nacional de Informação, o coordenador de investigação criminal Carlos Farinha apresenta aquilo que Morgado encara como "uma verdadeira teoria geral das infracções sexuais contra crianças e jovens".
O número de denúncias subiu em flecha em Portugal com o eclodir do escândalo Casa Pia, mas parece estar a estabilizar: "Este aumento, traduzido na triplicação da casuística de 2002 a 2007, atinge patamares que se cifram em cerca de 1400 casos por ano". Apesar do achaque nacional, só cerca de 3,62 dos inquéritos envolvem "crianças institucionalizadas num contexto de assistência". Ao mesmo tempo, "referencia-se 1,25 de situações de exploração sexual de crianças e jovens".
Acolhimento prolongado
Maria José Morgado não quer menorizar aqueles 3,62 por cento - que correspondem a crimes ocorridos no interior das instituições vocacionadas para proteger menores. "É nas instituições de acolhimento que vêm a concentrar-se factores de risco", afirma a procuradora-geral adjunta. Como a história de vida, "a massificação do tratamento", o carácter "excessivamente abstracto da tutela legal".
A permanência é longa (no final de 2006, metade dos acolhidos em lar já lá estava há mais de quatro anos), a mobilidade baixa, a história familiar/social das crianças internadas "de acentuada desestruturação familiar, alcoolismo, prostituição, toxicodependência, abandono, negligência, maus tratos físicos e psíquicos, abusos sexuais". A história de risco prolonga-se, o que pode explicar a razão pela qual "a maior parte dos crimes sexuais contra crianças/jovens acolhidas acontece no exterior das instituições".
Uma tendência qualificada por Morgado como "muito preocupante" concerne à "acentuada diminuição da idade das vítimas". Desde 2003, em média, a um nível nacional, o número de inquéritos investigados pela PJ a envolver crianças até cinco anos ultrapassa uma centena. Na generalidade dos crimes, as vítimas não têm idades tão baixas. E isto obriga a repensar o sistema. A ajustá-lo para melhor atender quem não chega pelo seu pé, não se senta na sala de espera preparado para ali ficar horas. Se a criança aguarda horas, "já não quer colaborar, já só quer é ir embora, para ela aquilo é uma seca", tem defendido Farinha.
O programa de acção (ver texto ao lado) tenta evitar que o processo penal se converta numa segunda forma de vitimização. A tese de mestrado de Catarina Ribeiro - A Criança na Justiça: Trajectórias, significados e sentidos do processo judicial em crianças vítimas de abuso intrafamiliar - mostra que cada menor conta, em média, oito vezes, "os factos em investigação". E este dado está subestimado: não contempla "o número de vezes que a criança é interrogada pelos familiares, pelos adultos com quem convive, pelos colegas, pelos professores."