Sara Dias Oliveira, in Jornal Público
Desempregados da Feira mostram em palco competências adquiridas e obrigam plateia a encarnar personagens
No palco, a doutora Mafalda é directora de recursos humanos de uma empresa conceituada e tem a tarefa de entrevistar candidatos ao lugar de administrativo. Três pessoas, vários entraves. Idade, apresentação, nacionalidade, legalização, filhos, disponibilidade, erros ortográficos no currículo. Tudo é avaliado no processo de selecção. Na vida real, Mafalda é Fátima Teixeira, tem 46 anos e faz alguns trabalhos pontuais numa firma que organiza eventos. Começou a trabalhar aos 13 anos como empregada doméstica, passou pelo comércio, por um cabeleireiro, uma empresa de ar condicionado. Tem o 9.º ano de escolaridade.
Fora do palco, Fátima Teixeira já esteve do outro lado. "Já me deparei com situações parecidas com aquelas que representámos, principalmente com o factor idade. Dizem que não pareço ter esta idade, mas que ela está no bilhete de identidade", conta. Inscreveu-se em várias "disciplinas" dos clubes da Agência Local em Prol do Emprego (ALPE), um projecto promovido pela Câmara de Santa Maria da Feira. O resultado foi apresentado em Fevereiro e volta a ser mostrado a 10 deste mês no Europarque, pelas 20h00, no âmbito da iniciativa Feira das Profissões. A peça é repetida no dia 15 de Maio no Imaginarius - Festival Internacional de Teatro de Rua de Santa Maria da Feira, às 19h00, em frente ao edifício da câmara mu-
nicipal.
Vítor Silva é João Silva na peça de teatro. Tem o 9.º ano, mas garante que tem competências para assumir o cargo. A doutora Mafalda ressalta a idade e ter estado dois anos parado a recuperar de um acidente de viação. Vítor Silva tem, de facto, 46 anos e está desempregado há ano e meio. A empresa onde trabalhava extinguiu o seu posto numa reestruturação. Passou por vários empregos ligados à mecânica industrial. Tem o 9.º ano, quer ter o 12.º e tem ido a muitas entrevistas. E fica frustrado. "A idade chama sempre a atenção, mas já cheguei a dizer que tenho experiência suficiente para ensinar os mais novos", revela. No entanto, as portas têm-se fechado. "Somos encostados para o lado como uma peça velha", desabafa. Nos tempos livres, ocupa--se com a electrónica, montagem de robôs e, nos últimos quatro meses, a rever a matéria nos clubes ALPE. "Estes cursos abriram-nos os olhos para muita coisa, como responder a um "ataque", serviu para aperfeiçoar o inglês. Com as formações, fui ao baú e fiz uma reciclagem". E não perdeu a vontade de continuar a responder a anúncios que lê nos jornais.
Helena Machado, de 35 anos, acredita que o futuro poderá ser diferente. Veio de Paris para a Feira e há cinco anos que não consegue arranjar trabalho. "Não conseguem traduzir as minhas habilitações", revela. Em Paris, trabalhava num cabeleireiro, mas a carteira profissional desta arte de nada lhe tem valido. "Quando cheguei a Portugal, saí a chorar da Segurança Social. A senhora só dizia que não devia ter vindo, que não iria arranjar emprego", recorda.
Rebater a história
Rosângela Fontão é brasileira, tem 49 anos e uma licenciatura em Gestão. No palco, manteve o nome, mudou as competências. Chegou a Portugal há seis anos, já foi gerente de uma agência de telemóveis. Na peça, foi confrontada com a legalização e de ter dois filhos. No mundo real, tem tudo em ordem e está à procura de emprego há cerca de um ano. "Tenho tido alguma dificuldade porque o país está a viver uma situação difícil e o que aparece está muito aquém das minhas habilitações", adianta. "Em duas entrevistas, nunca me exigiram o certificado, mas colocam dificuldades quanto à idade".
Sessenta e três desempregados frequentaram cursos de matemática, inglês, linguagem e comunicação, informática, emprego, estética, costura e pintura nos clubes ALPE. Uma forma de ocupar o tempo enquanto não encontram uma formação ou uma ocupação. O palco do auditório da Biblioteca da Feira serviu para mostrar o trabalho feito. O Clube do
Emprego apresentou uma curta simulação de uma entrevista, usando a técnica do teatro-fórum. Ou seja, a plateia assiste à representação e tem a oportunidade de mudar o rumo da história, encarnando o lugar do outro. Pergunta-se ao público quais os problemas detectados, convida-se a entrar no papel.
O presidente da Câmara da Feira, Alfredo Henriques, foi um dos actores. Na primeira fila da sala, realçou que a idade devia ser valorizada na entrevista e acabou por sentar-se na cadeira e sujeitar-se às questões da exigente doutora Mafalda. "Porque se candidata a este lugar de administrativo?". "Entendo que a experiência que tenho em vários aspectos profissionais pode ser muito útil a esta empresa. Cheguei a lugares de topo na administração e, desculpe a imodéstia, dificilmente encontrará candidatos com a minha experiência e capacidade", argumentou o autarca no papel de um desempregado de 46 anos. A plateia ficou convencida e a doutora Mafalda também.
Promover a autonomia, estimular a auto-estima, aumentar os níveis de literacia. Os Clubes da ALPE surgiram em Outubro de 2007 com estes objectivos. "Para desocultar coisas que as pessoas já sabiam", explica Hugo Cruz, coordenador do Direitos & Desafios, projecto promovido pela Câmara da Feira, onde se incluem os clubes. "São uma resposta mais imediata e flexível. Achámos que o tempo em que se espera por uma formação ou por um emprego podia ser aproveitado dessa forma". E assim foi. Várias disciplinas foram colocadas à disposição dos desempregados da Feira. Sessenta e três agarraram a oportunidade. "O bem-estar emocional é importante para quem está à procura de trabalho e é necessário contrariar a ideia de que a pessoa é mais um número", salienta o responsável.
A ideia de apresentar à comunidade o produto final de quatro meses de formação surgiu para "mostrar com toda a dignidade o que são capazes de fazer". "É preciso contrariar estereótipos e preconceitos em relação aos desempregados, sobretudo aos de longa duração, de que se trata de preguiçosos", realça Hugo Cruz.
A ALPE, que surgiu há dois anos, tem cerca de 1500 desempregados inscritos, dos quais 450 são desempregados de longa duração e 350 estão sem emprego há menos de um ano. A estrutura já realizou cerca de 2100 sessões individuais de acompanhamento e apoiou a criação de cinco negócios. S.D.O.
63
desempregados frequentaram cursos de matemática, inglês, informática, emprego
e estética