Ana Cristina Pereira, in Jornal Público
Janela Aberta - Resposta Integrada na Violência Doméstica despontou em 2005 em Penafiel. Modelo, criado no âmbito do Equal, está a ser adoptado por 30 municípios
O medo molda-lhe o olhar, os jeitos, os trejeitos. Tantas vezes Maria se vira para trás para se certificar de que ele não está à espreita. E, às vezes, o olhar dela encontra-o. "Ele" é o homem com quem partilhou a vida quase 30 anos. "Ele" é o homem que já ameaçou atirá-la pela janela, cortar-lhe o pescoço com uma motosserra, atar-lhe uma perna ao tractor e arrastá-la...
Não pensava fugir quando pela primeira vez entrou no Janela Aberta, projecto criado em Penafiel, em 2005, que já "exportou" o modelo para outros 30 municípios. Só que a diligência fê-la atrasar o almoço. Ele enfureceu-se: "Como é? A comida não está pronta?" E uma força enorme pulsou dentro dela: "Exaltei-me e, pela primeira vez, disse-lhe: 'Queres comida faz!' "O marido parecia enlouquecido. "Levantou a mesa, deitou os pratos para o chão." Insultou-a. Ameaçou-a de morte. E ela pensou: "Não vale a pena!" Aquele homem não mudaria. A médica de família até lhe garantira que "com a idade ficaria pior". Escreveu-lhe uma carta a dizer que "não aguentava mais". Saiu de casa, foi à GNR dizer que "vivia aterrorizada, que já nem dormia".
No gabinete no qual no ano passado se sentaram outras 109 mulheres, Maria solta um suspiro: "Tomaram conta da queixa. Disseram que não podiam fazer nada sem flagrante delito. Isso é muito mau. Está outra vez a ameaçar. Diz que se não sou para ele, não sou para ninguém. Não tenho mais ninguém!"
Alegra-a saber que a lei aprovada quinta-feira na Assembleia da República cria um regime específico para detenção fora do flagrante delito de suspeitos do crime de violência doméstica: "Já pensei em ir para fora, mas a família é toda daqui! Ter de fugir, por causa de uma pessoa... Às vezes penso: 'Não fosse pelos meus filhos, morria e acabava-se tudo!'"
Aqui, no Janela Aberta, recebeu apoio jurídico e apoio psicológico. O gabinete congrega uma resposta alargada. A Associação de Desenvolvimento de Figueira abrira uma casa-abrigo em 2004 e percebera a necessidade de intervenção múltipla - saúde, habitação, formação, emprego, consoante o caso. O projecto nasceu a pensar nas mulheres da casa-abrigo e nas mulheres da zona.
"Não conseguíamos responder a tudo", recorda a coordenadora, Manuela Santos. No âmbito do programa comunitário Equal, criaram um modelo de respostas integradas assente em parcerias locais e regionais. O centro de saúde designou um médico de referência para vítimas. Há empresas que as ajudam a entrar no mercado de trabalho. A câmara reservou algumas casas para as que fogem de casa. Criou-se "uma base de dados com pessoas disponíveis para lhes alugar casa a preços mais baixos".
Cada parceiro tem pelo menos um técnico designado para o Núcleo Operacional da Violência Doméstica, que se reúne de 15 em 15 dias para analisar casos. Não acorrem todos a estes encontros. Apenas os parceiros úteis para os casos em análise. A rede já engloba 48 instituições. Como há uma resposta a funcionar em rede, a vítima fica dispensada de recontar a história, congratula-se Manuel Santos. Tem um técnico de referência que se articula com todos os outros. As soluções pensadas "são levadas pelo técnico às reuniões do núcleo".
Na noite da fuga, Maria dormiu em casa de um familiar. O familiar tratou de adiantar os dois meses de renda. E, um dia depois, ela mudava-se com o filho com necessidades especiais. Trabalha muito. Limpa sete casas alheias. "Os filhos que vivem no estrangeiro ajudam um bocadinho." Até lhe parece mentira que aguentou tanto tempo "aquele homem". Há episódios que nem se atreve a contar. Contar aviva-lhe a memória. E avivar a memória é procurar a dor.
No namoro, não valorizou os arrufos por ir aonde ele não queria. Nos primeiros anos de casamento, encarou como "normal" ele não a deixar sair: "Não queria que falasse com familiares, amigas, vizinhas, nada. Proibiu-me de ir a casa dos meus pais!" A violência psicológica endureceu. De repente, zás. "Ele queria sair. Eu disse: 'Vou contigo!' Deu-me com a cabeça na parede." Estava aberta a frente física daquela guerra.
O medo apoderou-se dela. O medo apoderou-se dos filhos. O mais novo começou a trabalhar aos sete anos. Passava as manhãs na escola e as tardes a fazer medições. O mais novo aos dez. Só aos 17 obtiveram autorização para sair. "No Inverno, às oito ou nove, fechava a porta e já não deixava entrar ou sair. Se não tivessem chegado, ficavam lá fora!"
Se o marido fosse forçado a ficar afastado, Maria andaria menos tensa. "Ele, agora, diz que gosta de mim, que sente a minha falta. Ele já foi à bruxa e tudo! Ele quer é ter uma empregada! Ele chegava a casa e tinha tudo pronto!" Ela quer é paz para recomeçar a vida.
A Associação de Desenvolvimento de Figueira tem formação profissional. Ainda agora, diz Manuela Santos, "decorre um curso de cozinha, que dá equivalência ao 12.º ano". O cardápio inclui educação parental, técnicas de procura de emprego, alfabetização. Maria tem o 4.º ano. Sempre trabalhou em casa e na horta. Aguarda vaga no Novas Oportunidades.