2.11.10

Famílias à beira de um ataque de nervos

Por Gabriela Costa, in VER

Em 2009 existiam cerca de dois milhões de portugueses a viver no limiar da pobreza, número que cresceu significativamente, para 2,5 milhões, em Julho deste ano. Portugal é o nono país mais pobre dos 27 da UE, mas esta é uma realidade cada vez mais global, cujo risco afecta 84 milhões de pessoas. Por cá, e enquanto se espera pela aprovação do Orçamento de Estado, a actual conjuntura que prevê cortes salariais e no abono de família, aumento de IRS e aumento do IVA, entre outras medidas de austeridade, deverá afectar ainda mais muitas famílias portuguesas.

A taxa de risco de pobreza monetária caiu de 20,4 para 17,9 por cento, entre 2003 e 2008, revela o Inquérito às Condições de Vida e Rendimento em Portugal, divulgado a 20 de Outubro pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). O risco de pobreza entre a população idosa foi um dos indicadores que mais diminuiu (8,9 pontos percentuais). Esta redução é muito significativa, quando comparada com o decréscimo do risco de pobreza entre a população adulta em idade activa, que não atingiu mais do que 1,2 pontos percentuais, bem como entre as crianças e jovens (1,7 por cento).

Os resultados apurados apontam para a redução progressiva da desigualdade na distribuição dos rendimentos. Ainda assim, em 2008 o risco de pobreza nas famílias com crianças dependentes era de 20,6 por cento, enquanto o das famílias sem crianças dependentes se situou nos 14,9 por cento, registando uma diminuição face aos vinte por cento verificados em 2003. Já a taxa de risco de pobreza para os agregados com crianças dependentes não evidenciou uma redução sustentada. Finalmente, neste período, os idosos que viviam sós, as famílias constituídas por um adulto com crianças dependentes e as famílias com dois adultos e três ou mais crianças dependentes apresentavam, em 2008, os riscos de pobreza mais elevados: respectivamente, 32,7 por cento, 38,8por cento e 42,8 por cento.

Segundo o documento, registou-se uma quebra de cerca de dez por cento no fosso entre os rendimentos auferidos pelos vinte por cento da população com maiores rendimentos e os vinte por cento da população com menores rendimentos. O indicador de privação material atingiu, em 2009 (segundo dados provisórios), 21,4 por cento, face aos 22,2 por cento em 2004. A privação material para a população idosa decresceu 6,6 pontos percentuais, no mesmo período.

Os principais indicadores sobre a pobreza, as desigualdades e a privação material em Portugal revelam que, entre 2003 e 2008, o rendimento monetário disponível médio por adulto equivalente (RAE) cresceu, em média, 3,2 por cento ao ano. Esta taxa de crescimento diminuiu proporcionalmente às classes de maiores rendimentos: para os dez por cento de indivíduos com rendimentos mais baixos situou-se em 6,1 por cento (o que representa um crescimento próximo do dobro da taxa de crescimento médio global), enquanto para os dez por cento de indivíduos com rendimentos mais elevados não ultrapassou os 2,3 por cento.

21,4 por cento em privação material
A taxa de intensidade da pobreza, que avalia a distância entre o rendimento monetário mediano dos indivíduos em risco de pobreza e o valor do limiar de pobreza, diminuiu 1,1 por cento entre 2003 e 2008, passando de 24,7 por cento para 23,6 por cento. Esta realidade “representou um desagravamento na insuficiência de rendimento dos indivíduos que se encontravam numa situação de pobreza relativa, adianta o INE.

Em 2009, a proporção da população residente que vivia em privação material era de 21,4por cento, face aos 22,2 por cento registados em 2004. Neste indicador, destaca-se a redução da taxa de privação material da população idosa em 6,6 pontos percentuais, passando de 31,3por cento em 2004 para 24,7 por cento, em 2009. A taxa de privação material dos agregados sem crianças dependentes correspondia, em 2009, a 19,8 por cento, enquanto para as famílias com crianças dependentes o mesmo risco era de 23 por cento. Por outro lado, entre 2004 e 2009, a taxa de privação material para os agregados sem crianças dependentes diminuiu de 25 por cento para 19,8 por cento, ao passo que a proporção de agregados com crianças dependentes cresceu, na segunda metade do referido período.

As famílias constituídas por um adulto e uma ou mais crianças dependentes e as famílias com dois adultos e, pelo menos, três crianças dependentes registavam, em 2009, as taxas de privação material mais elevadas (respectivamente, 46,8 por cento e 47,5 por cento), mais do que duplicando a taxa de privação material observada para o total da população. A intensidade da privação material (ou seja, o numero médio de itens em falta para a população em privação material) correspondia, em 2009, a 3,7. Este valor equivale ao globalmente observado no período 2004-2008.


Entre 2003 e 2008, os idosos que viviam sós, as famílias constituídas por um adulto com crianças dependentes e as famílias com dois adultos e três ou mais crianças dependentes apresentavam, em 2008, os riscos de pobreza mais elevados: respectivamente, 32,7 por cento, 38,8por cento e 42,8 por cento

Quanto a despesas em habitação, em 2009 apresentaram uma carga mediana de 11,4 por cento. Entre 2004 e 2008, a taxa de sobrelotação da habitação atingiu os 15,9 por cento, estimando-se para 2009 que 14,1 por cento dos indivíduos viviam em alojamentos sobrelotados. No ano passado, 4,7 por cento da população residente vivia em condições severas de privação habitacional, valor que “reflecte uma melhoria das condições habitacionais face aos anos anteriores: entre 2004 e 2008 a média das taxas de privação severa das condições de habitação foi de 7,4 por cento.

Por último, em 2009, a carga mediana das despesas em habitação foi de 11,4 por cento para o total da população residente, próxima da média dos valores apurados para os anos anteriores (10,8 por cento) em análise. A proporção de indivíduos que viviam em agregados familiares com sobrecarga de despesas em habitação era, em 2009, de 6,3 por cento.

Finalmente, e quanto aos níveis de pobreza consistente - que associa o risco de pobreza e a privação material, de modo a concluir sobre a proporção de indivíduos que se encontravam simultaneamente em risco de pobreza e em privação material -, em 2009, 8,1 por cento dos residentes encontrava-se nestas circunstâncias. Ao longo do período em análise, a proporção de indivíduos em pobreza consistente não revelou um padrão de evolução regular, já que registou variações entre os 9,4 por cento, em 2004, e os 8,1 por cento, em 2009. O seu nível médio foi de 8,6 por cento. Também entre 2004 e 2009, a correlação entre a taxa de risco de pobreza e a taxa de privação material era relativamente baixa, variando entre 26,7 por cento em 2008 e 33,5 por cento, em 2007.

Desenvolvida no quadro do Programa Comunitário para as Estatísticas do Rendimento e das Condições de vida (EU-SILC), a publicação do INE associa-se às iniciativas “2010 - Ano Europeu do Combate a Pobreza e a Exclusão Social” e Dia Mundial da Estatística. Este Inquérito realiza-se a nível europeu desde 2004.

Maiores assimetrias da UE são em Portugal
A realidade nacional parece, assim, ter melhorado nesta matéria mas, quando comparada com o conjunto dos países da União Europeia, a distribuição do rendimento monetário disponível médio no nosso país apresenta, neste mesmo período, uma das mais elevadas assimetrias, adianta a publicação do INE. O coeficiente de Gini (que corresponde à média normalizada das diferenças absolutas entre o rendimento de qualquer par de indivíduos de uma população, sintetizando num único valor a assimetria da distribuição dos rendimentos desses indivíduos) situava-se em 35,4 por cento em 2008, tendo diminuído progressivamente desde 2004, quando atingiu 38,1 por cento. A evolução do indicador de desigualdade S80/S20 (indicador de desigualdade na distribuição do rendimento definido como o rácio entre a proporção do rendimento total recebido pelos 20 por cento da população com maiores rendimentos e a parte do rendimento auferido pelos vinte por cento de menores rendimentos) apresentou a mesma tendência, decrescendo um ponto percentual entre 2004 (sete por cento) e 2008 (seis por cento), conclui também o Inquérito às Condições de Vida e Rendimento.

De acordo com os mais recentes dados do Eurostat, em 2010, Portugal é o nono país mais pobre dos 27 países da União Europeia. O gabinete de estatísticas da União Europeia avança que o país é um dos 27 Estados-membros com maiores dificuldades. A região Norte está entre as trinta mais pobres das 254 da Europa, enquanto as sub-regiões mais pobres do nosso país são Trás-os-Montes e Alto Douro (esta última já assim considerada em 2009) e o Vale do Tâmega.

Segundo o INE, e não obstante os dados anteriormente apresentados, enquanto em 2009 existiam cerca de dois milhões de portugueses a viver no limiar da pobreza, em Julho deste ano o número aumentou significativamente, para 2,5 milhões. Esta é uma realidade cada vez mais global, cujo risco afecta 84 milhões de pessoas, avisa a Comissão Europeia. Por cá, e em vésperas de aprovação do Orçamento de Estado, a actual conjuntura que prevê cortes salariais, aumento de IRS, aumento do IVA e cortes no abono de família, entre outras medidas de austeridade, deverá afectar ainda mais muitas famílias portuguesas.

Investigadores contextualizam pobreza
A publicação do INE que analisa o rendimento e condições de Vida dos portugueses no período 2004-2009 (sendo os dados relativos a 2009 provisórios) integra os contributos de vários investigadores sobre as problemáticas da pobreza e condições de vida. O documento contextualiza a pertinência deste tema na sociedade actual, através de uma reflexão teórica, “Rendimento, pobreza e condições de vida – Os diferentes olhares das estatísticas”, desenvolvida pela professora Manuela Silva e integra também os contributos da professora Amélia Bastos sobre o padrão evolutivo do risco de pobreza nas crianças, no capítulo “Matriz de análise da pobreza infantil: potencialidades e limitações”, e da investigadora Carla Machado, que compara os riscos de pobreza monetária e a privação material na perspectiva do género, em “Algumas notas sobre a pobreza no feminino”.

Em “Outros olhares sobre os indicadores de pobreza”, o professor Carlos Farinha Rodrigues introduz uma reflexão sobre os indicadores de pobreza, apresentando uma análise de sensibilidade desses indicadores na forma como é definida a linha de pobreza e considerado o rendimento não monetário. “O risco de pobreza e a privação material das pessoas idosas”, uma abordagem especifica sobre a população idosa, e a “Transmissão intergeracional da pobreza”, dedicado a algumas relações entre a alteração de classe social e nível de escolaridade e a alteração do risco de pobreza, entre pais e filhos, são temas desenvolvidos pela equipa responsável pelo Inquérito às Condições de Vida e Rendimento do INE.

Fonte: Inquérito às Condições de Vida e Rendimento/INE