por António Costa Santos, in Diário de Notícias
Um jovem finalista de engenharia, camisola de gola alta, calças à boca de sino, mocassins e um blaser de bombazina, apresenta-se à porta do segundo andar de um prédio da avenida. A dona da casa pergunta que deseja o moço e ele propõe-se tomar-lhe meia hora para lhe mostrar uma magnífica enciclopédia de lombada vermelho e ouro, cujos trinta volumes lhe serão entregues no dia seguinte, caso se assine já o contrato. Pode pagar a prestações suaves.
Estamos nos anos 70 do século passado e há legiões de estudantes universitários a fazer o porta-a-porta, nas cidades, vendendo coleções de livros para alegrar as estantes da pequena burguesia, maravilhas do reino animal, dicionários, imagens da arte nos séculos. Não é esse o seu primeiro emprego. Quando saírem das faculdades, os de Direito serão juristas, os de Engenharia, engenheiros, os de Letras, letrados, ou professores. Trata-se apenas de ter dinheiro para comprar o último disco dos Beatles, juntar para um carro, ou acrescentar umas notas de cem à mesada e poder ir à Feira Popular mais vezes.
Os jovens licenciados da geração de 70-80 foram os últimos portugueses com emprego garantido nas suas áreas de estudo. Se a sua primeira ocupação foi vender enciclopédias ou realizar "inquéritos", os antepassados dos estudos de mercado, o caso não se compara com os trabalhos a que os doutores do século XXI se sujeitam para arranjar trabalho.
Daniel Mirrado, 28 anos, acabou em 2010 o curso de zootecnia, é engenheiro em produção animal e, à falta de emprego no ramo, acabou por iniciar outra licenciatura em agronomia, mesmo não tendo garantias de isso lhe servir para trabalhar naquilo de que gosta e para o que estudou.
"Ao fim de quatro anos, verifico que só trabalhei seis meses na minha área, num estágio profissional", lamenta. "De resto, o mais próximo que estive da zootecnia foi quando trabalhei um ano no Continente, pensando que podia subir na empresa, na área da produção animal", acrescenta. Não subiu.
Tentou também a emigração, mas teve azar. "Tinha um contrato firme para trabalhar em produção animal, comprei o voo, tratei da papelada, meti-me no avião e fui barrado à entrada porque me faltava um exame da tuberculose. Nem cheguei a entrar no país." Recambiado, foi viver para Santarém com a namorada, para uma casa emprestada pela família, e é de novo estagiário profissional numa pequena empresa. Ganha pouco, muito menos do que "os 900-1000 euros que se ganhavam quando entrei para a licenciatura". Não está propriamente arrependido de ter estudado, mas acha "indecente" ter 28 anos e ainda não ter começado uma carreira profissional. Quer acreditar que "daqui por 10 anos já possa ter uma vida minimamente estável", mas é só uma esperança, nada de garantido.
Garantias tinha a geração de Luís Pinheiro de Almeida, jornalista, que, ainda a estudar em Direito, onde se licenciou, deu a volta a Portugal, em 1968-69, graças ao biscate que arranjou numa agência de publicidade, a fazer estudos de mercado para várias marcas de detergentes, caldos de galinha e lâminas de barbear.
"Tínhamos emprego certo, mas, enquanto estudávamos, podíamos vender enciclopédias ou, no meu caso, fazer inquéritos sobre produtos para as marcas", conta o jornalista. "Aos 18, 19 anos ganhava dinheiro para os livros, os discos, os cigarros e para o cinema. E o mesmo se passava com a minha namorada da altura e vários amigos e colegas. Calhou-me trabalhar para a (agência de publicidade) Latina, no edifício Franjinhas, em Lisboa, onde conheci o Ary dos Santos. Com o primeiro dinheiro que me pagaram fui aos Grandes Armazéns do Chiado e comprei uma rocket chair, que ainda tenho". Depois, foi trabalhar "a sério" para os jornais e fez carreira. Não havia licenciaturas em jornalismo, mas se as houvesse, haveria trabalho para os licenciados.
Passadas umas décadas, Isabel Condeça, 27 anos, queria ser jornalista, acabou o curso, fez mais um (profissional) no Observatório de Imprensa e, através de um protocolo, foi em estágio de um mês para a Rádio Pax, de Beja. No final do tempo, ficou por lá, a recibos. "Colaborava com o departamento de publicidade, fazia recados. Estive assim um ano, sempre a recibos", conta. Depois, houve que reduzir o quadro de colaboradores e foi despedida.
Ainda em Beja, trabalhou seis meses numa "estação" de televisão digital, três dos quais sem receber. Saiu e não teve direito a subsídio de desemprego. Esteve 14 meses sem ganhar um cêntimo, tirando um trabalho pontual para uma revista de publicidade ", que precisava de uns textos" para embrulhar os anúncios, e teve de ir trabalhar para um call center igual aos muitos que são hoje a fonte de emprego mais fácil dos jovens (e menos jovens desempregados) licenciados.
Ao mesmo tempo fez um casting para a Vodafone FM e ficou em Beja como correspondente da Rádio Renascença. Ao fim de dois anos, a receber à peça, fazendo 200 euros, no máximo, por mês, "começou a desvanecer-me a esperança de viver do jornalismo e voltei para Lisboa".
Hoje, já nem procura trabalho na sua área. "Os call centers é o que dá mais probabilidade de arranjar qualquer coisa". E evita pensar em jornalismo, naquilo que estudou, naquilo que sempre pensou fazer "para não sentir a frustração".