por João Carlos Malta, in RR
O economista Ricardo Cabral defende que decisões que envolvem mais de 500 milhões de euros não podem ser decididas entre quatro paredes por três ou quatro pessoas. Há que passá-las para a Assembleia da República, para poderem ser mais escrutinadas, defende.
Ricardo Cabral é economista e um profundo crítico do modelo encontrado pela troika para reerguer a economia portuguesa. Nesta entrevista à Renascença, diz que o caso BES revela falhas na regulação e na sociedade.
"Temos uma cultura de o chefe sabe tudo, o chefe é que manda, ele é que decide tudo muito enraizada, é muito portuguesa", diz o economista, um dos 19 a quem o novo líder do PS António Costa pediu que traçassem cenários económicos para a próxima legislatura.
Prevê que a economia pode crescer mais se o preço do barril de petróleo continuar a descer, mas avisa: as "políticas económicas suicidas" dos anos da "troika" terão consequências durante décadas.
Escreveu num dos seus artigos de opinião no "Público", a propósito do Novo Banco, que deveríamos limitar o poder de decisão do Governo e do Ministério das Finanças a montantes relativamente "pequenos" (menos de 500 milhões de euros). Isso não seria abrir uma caixa de Pandora?
Não. Isso é fundamental. Nas instituições é tudo na base de processos para que haja uma boa tomada de decisão pública. Temos uma data de organismos, como o Tribunal de Contas, o Ministério Público, o Ministério da Justiça, os processos orçamentais, tudo para garantir que quando o Governo toma decisões, estas sejam as melhores possíveis. Temos um sistema político em que elegemos partidos que escolhem pessoas para altas posições no Estado. Pessoas que sagraram na política e que estão a fazer uma carreira que é legítima como qualquer outra, mas que, muitas vezes, não têm as competências que são necessárias. Estes cargos são importantes porque são maiores do que qualquer empresa portuguesa. Às vezes enfrentam conflitos de interesse e o que estou a sugerir é que haja maior escrutínio nas decisões mais importantes.
Um país deve alocar mais recursos a decisões mais importantes (com maior peso económico) e menos recursos a decisões menos importantes. Significa que essas decisões devem ser escrutinadas e devem ser retiradas da esfera de influência de ministros, secretários de Estado ou mesmo Conselhos de Ministros. Não acredito que a Assembleia da República (AR) consiga escrutinar tudo. O objectivo é ter mais discussão pública. Há decisões sobre numerosos temas que são tomadas em gabinetes onde estão três ou quatro pessoas. E tomam-se decisões de 500 milhões ou de montantes desses. E não podem ser boas decisões dada a pressão, porque não é humanamente possível.
Mas essa responsabilidade passaria para a AR?
Seria o poder executivo a propor e apresentar os seus argumentos a favor. A AR deveria fazer uma consulta pública ou contratar a opinião de peritos de áreas. E depois tomaria a sua decisão. Não significa que as decisões seriam sempre certas. Muitas vezes serão erradas. Mas um desvio de 10% numa decisão de mil milhões são 100 milhões de euros.
O que noto da minha vivência na vida pública é que andamos a gastar recursos e tempo. Perdemos tempo e fazemos muita discussão pública sobre o ordenado mínimo, em que estamos a falar de uma subida de 487 euros para 500 euros, quando há decisões de quatro mil milhões que são tomadas num fim-de-semana não se sabe como. Isso não pode ser um bom processo de tomada de decisão. Quando o valor económico da decisão é muito importante convém parar e analisar, ver alternativas, e tomar a decisão.
Falou da responsabilidade que os governantes têm, muitas vezes superiores à dos gestores de grandes empresas. A remuneração que auferem é proporcional?
Todos deviam ser mais bem remunerados. Mas no contexto actual acho que dificilmente uma proposta dessas seria viável. Veja-se o caso da PT: melhor remuneração não é garantia de resultados. O que acho é que os processos têm de ser tais que impeçam más decisões de maus gestores ou maus responsáveis. Temos de ter processos robustos à prova de maus decisores que, inevitavelmente, em qualquer governo irão aparecer. É a lei das coisas, é um processo aleatório.
Como é que na sua opinião todo este caso da família Espirito Santo e um certo julgamento que está a acontecer via TV na comissão parlamentar vai afectar a relação dos portugueses com as suas elites?
Acho que não alterará grande coisa porque a percepção que têm já é muito negativa.
O problema foi da regulação ou vai muito além disso?
Foi de regulação, mas também da nossa sociedade e da forma como gerimos a nossa relação com grupos de interesse com muito poder. Esta deferência em relação à hierarquia e em relação ao poder que faz com que só no final a família Espírito Santo tenha sido questionada. Os processos judiciais só começaram depois da queda da família. É triste que não haja coragem para afrontar aos problemas antes. Acho que a regulação falhou muito e em relação ao banco havia sinais óbvios de que as coisas não estavam bem há muito tempo.
Mas por que é que isso acontece? Agora aparecem relatórios de auditoras que dizem que era tudo mais do que expectável há 12 anos. Porquê?
As pessoas que estão de fora não se arriscam a dizer com medo de processos em tribunal e queixas de difamação, mas nas instituições isso é mais grave. No Banco de Portugal havia técnicos que sabiam, mas não tinham os incentivos certos para apresentar as queixas. Acho que temos uma cultura de o chefe sabe tudo, o chefe é que manda, ele é que decide tudo muito enraizada, é muito portuguesa. Era bom mudá-la de um dia para o outro, mas não é possível tal como não é possível mudarmos para uma economia excedentária de um dia para o outro.
Por que é que foi o governador do BdP, Carlos Costa, a ter uma intervenção tão directa e não foram os técnicos a propor o mecanismo de resolução? Por que é que a solução foi definida pelas cúpulas e não pelos técnicos? Para mim não faz sentido que tenha sido a ministra das Finanças, o governador do Banco de Portugal e o primeiro-ministro a definir os moldes da resolução bancária. Eles deviam ter solicitado aos técnicos para prepararem duas ou três alternativas e depois decidirem.