Por Marta F. Reis, in iOnline
Psiquiatra que nos últimos anos dirigiu a Unidade de Alcoologia de Lisboa diz que ficou surpreendido com a resiliência social no país
Alfredo Frade dedicou a carreira à toxicodependência e nos últimos anos dirigiu a Unidade de Alcoologia de Lisboa. O psiquiatra reformou-se em Novembro, depois de 38 anos de serviço público. Lamenta o “ziguezague” do governo nesta área, que desmotiva os profissionais. E diz que o SNS nos últimos anos não retrocedeu, mas avançou na direcção errada.
Porque decidiu reformar-se?
Tenho 63 anos. Saí com antecipação embora não me faltasse muito. Pensei que a reforma ainda vai subir para os 67 anos e quis dedicar-me a outras coisas.
É uma decisão difícil?
Sim. São 38 anos de serviço público. Apesar de tudo é uma vida.
Por onde começou?
Formei-me na Faculdade de Medicina de Lisboa, em Santa Maria. Na altura ainda havia o serviço médico à periferia: tínhamos de nos deslocar antes de fazer a especialidade. Estive um ano em Mourão, em 1978.
Como foi essa experiência?
Havia colegas que iam um bocado contrariados. Do ponto de vista deles, aquilo atrasava o acesso à especialidade. Eu e o meu grupo fizemo-lo com grande satisfação porque era um período em que as pessoas estavam bastante envolvidas socialmente e era disso que se tratava, levar saúde para outros locais do país.
Surpreendeu-o esse contacto com o Interior alentejano?
Senti esse choque, mas isso tornava o trabalho mais gratificante. Havia pobreza mas não havia tanta desigualdade.
Nessa altura já sabia que queria ser psiquiatra?
Sim. Tive essa percepção a partir do terceiro ano de Medicina, quando começamos a contactar com doentes. Até aí queria apenas ser médico.
Que vocação é essa?
Uma apetência por cuidar dos outros. Hoje a triagem é demasiado feita pelas notas.
Nota diferenças nos jovens?
Os jovens com quem lido já são internos de psiquiatria, têm uma sensibilidade diferente. Mas o que observo mesmo em consulta é que algumas dessas pessoas que entram pela nota acabam por abandonar.
É muito comum?
Não sei, mas as notas serem tão altas e ser uma profissão sem desemprego faz com que a vocação possa não ser o único motivo. Mesmo que hoje haja outros problemas, como não haver evolução profissional e progressão de carreira. Isso tem feito muita gente sair para outros sítios e emigrar, mesmo chefes de serviço.
Mesmo assim, os médicos mantêm salários superiores à média da população. O dinheiro não se tornou demasiado preponderante?
Acho que nunca é só pelo dinheiro. Se uma pessoa vê que pode ganhar mais e que tem outras oportunidades profissionais, legitimamente sai. Se anda nos serviços a marcar passo, se não há estímulos, se não pode progredir para chefe de serviço e monetariamente é pior, é natural que se façam contas. A crise e os cortes no serviço público acentuaram isto, até porque há outra questão. Os serviços começam a desintegrar-se. E se a pessoa vê sair os colegas e o chefe, pensa porque não criar uma equipa noutro lado. Isso não seria mau se toda a gente tivesse acesso ao privado, mas o problema é que para ter acesso aos mesmos serviços, com a qualidade que dantes havia no público, será preciso pagar.
Depois de fazer a especialidade de psiquiatria começa logo a trabalhar na área das dependências?
Sim, abriu um concurso e fui admitido no Centro de Estudos de Profilaxia da Droga, numa altura em que esta área ainda estava sob a tutela do Ministério da Justiça. A droga era um problema criminal.
Essa cisão era só no papel ou havia estigma também entre profissionais?
Havia um estigma social mas na Medicina não creio que se fizesse distinção. Nisso os profissionais e técnicos da minha geração foram fundamentais e foi o nosso trabalho que culminou mais tarde na lei da descriminalização da droga. Foi um grande avanço civilizacional.
Hoje que balanço faz da estrutura de resposta às dependências?
Acaba por ser mais insuficiente no alcoolismo. Houve um grande investimento político na toxicodependência clássica, em particular com a criação do Instituto da Droga e Toxicodependência. Independentemente disso ter tido bons resultados, acabou por ser um investimento na droga desproporcionado e desfasado em relação ao álcool. A toxicodependência clássica atingiria 1% da população e o alcoolismo atinge 10%. Aí as estruturas não foram suficientemente apoiadas e hoje acabam por ainda não ser suficientes.
Como o explica?
Ao haver a mudança de paradigma a nível social, houve a percepção de que a droga dava votos e isso gerou motivação política muito forte para serem feitas coisas. O álcool, até por culturalmente continuar a ser tolerado ainda de mais, nunca foi atacado da mesma forma. Ainda há a fazer um grande caminho, que é precisamente o inverso: Temos de partir de uma tolerância social tremenda para uma maior educação da população e controlo.
Em que áreas?
Em particular junto dos jovens e na prevenção rodoviária. Parece-me também que a recente distinção que foi feita de se poder beber vinho e cerveja aos 16 e bebidas destiladas aos 18 também foi má.
Era intenção dos serviços e do ministério impor os 18 anos para todas as bebidas, o que foi travado na coligação.
Houve um condicionamento por parte do nosso actual ministro da Economia. O lobby das cervejas foi muito forte e Pires de Lima, como é público, estava muito ligado a esse sector.
Acha que esse lobby explica também o ignorar do alcoolismo não só em Portugal mas na Europa?
Sim. Os governos têm cedido sistematicamente a isso sem qualquer justificação do ponto de vista da saúde pública, com efeitos muito negativos. É preciso não esquecer que além do problema de saúde, temos a violência doméstica, que deriva muito disso também. É nesse sentido que os profissionais que trabalham nesta área se têm tentado chegar à frente com projectos. Temos agora o projecto Corda Bamba entre o Instituto Português da Juventude, a Unidade de Alcoologia de Lisboa e o centro de desabituação das Taipas que vai arrancar em Janeiro e pretende chegar aos jovens que não vão aos serviços de saúde. Apesar de me ter reformado, vou continuar a colaborar pro bono com este projecto porque quero mesmo que aconteça.
Como correu a integração dos serviços da droga e do álcool nas Administrações Regionais de Saúde, uma das mudanças introduzidas por este governo com a extinção do IDT e criação do SICAD?
Eu era um optimista em relação a isso. Nunca fui muito favorável a termos um instituto só para tratar toxicodependentes e alcoólicos. De certa forma é estigmatizante e afasta estas pessoas do restante apoio médico. Com a integração, ficámos mais perto dos centros de saúde e houve maior formação junto dos médicos de família que estavam habituados a enviar estes problemas directamente para nós. Mas continuamos sem poder referenciar os doentes directamente para consultas de outras especialidades sem ser na base do telefonema. Portanto, apesar de ganhos, não foi tudo bem conseguido e há problemas novos.
Por exemplo?
Tornou-se tudo muito mais burocrático. O que dificulta ainda mais tudo isto é que os governos, nomeadamente este, têm uma atitude de ziguezague em relação às políticas nesta área. Extinguiu-se o IDT quando não se sabia muito bem o que se ia fazer. Depois nas ARS continuou-se sem uma boa articulação. E, mais recentemente, houve um despacho que determinou que parte da resposta, nomeadamente na área da álcool, será integrada nas estruturas de Saúde Mental e não nos cuidados primários, o que aponta para uma nova separação. Esse despacho ainda não teve grande concretização, não se sabe bem o que vai acontecer.
É angustiante essa sucessão de despachos?
Para quem está no terreno é desastroso. As pessoas acabam naturalmente por perder a motivação. Tive a sorte de trabalhar sempre com pessoas muito motivadas, que faziam o seu trabalho sabendo que havia decisões políticas superiores a nós mas conseguindo ter como preocupação central cuidar dos doentes e fazer o melhor possível, pensar coisas novas.
O que é que o chocou mais no SNS nos últimos anos?
As dificuldades na prescrição e passarem a haver objectivos e plafonds a cumprir que acabam por limitar a prática médica. A saúde não pode ser gerida desta maneira e para mim é o pior momento que estamos a viver. Passou a haver uma visão demasiado financeira num serviço que tem de atender pessoas independentemente de dar lucro ou não.
O debate da sustentabilidade financeira que se acentuou nos últimos anos não é exclusivo de Portugal. Que outra resposta gostaria de ver?
Percebo que existissem gastos desnecessários e que tem de haver uma optimização de recursos. E percebo a necessidade de uma gestão criteriosa, mas não este exagero. Quando se chega ao ponto das decisões políticas retirarem autonomia aos serviços e aos médicos e de se avançar com a definição do número de minutos que os enfermeiros podem demorar a vacinar, entra-se numa esfera em que as decisões são políticas e não técnicas. A saúde passa a ter mais uma gestão financeira do que médica, o que é inconcebível e não garante os melhores cuidados.
Tendo assistido à evolução do SNS, é caso para dizer que se recuou?
Podendo ter havido recuos em algumas áreas, o que eu vejo é mais um avanço na direcção errada.
Mas os doentes ainda podem confiar no SNS?
Acho que o serviço de saúde público ainda funciona. Se tivesse um problema de saúde grave, continuaria a ir para o serviço público. Mas até pela saída de profissionais e se algo não mudar, pode não ser verdade daqui a algum tempo.
Sente o impacto da crise nas consultas?
Certamente que sim, apesar de eu acreditar que parte do impacto ver-se-á mais à frente. Nos últimos tempos o que temos visto mais são pessoas a desistirem de consultas por dificuldades de acesso. Na unidade de alcoologia tínhamos doentes que vinham das ilhas ou do Alentejo e que, com as mudanças na comparticipação dos transportes, deixaram de vir. Se calhar aparecerão mais tarde, em pior estado. Em termos de saúde mental, não vejo que tenham aumentado muito os casos novos. Houve foi uma maior descompensação nas pessoas que tinham uma fragilidade prévia, mais recaídas, o que comprova que a crise afecta os mais frágeis. Por outro lado, há indícios de um aumento da violência e agressividade, temos mais casos remetidos pelos tribunais. Mas, por exemplo, na taxa de suicídio tivemos um aumento ligeiro, não subiu dramaticamente.
Estava à espera de algo diferente?
Surpreendeu-me sinceramente que apesar de tudo não tenha havido mais problemas, o que mostra talvez que apesar de tudo somos um país com muita solidariedade e com estruturas de apoio que funcionam, muitas delas instituições particulares de solidariedade. Houve uma resiliência social muito grande. Por outro lado, surpreende-me que não tenha havido uma maior explosão social. Tivemos grandes manifestações mas agora assiste-se a um certo apaziguamento.
Encontra alguma explicação?
Não sei. Talvez se reservem para ajustes de contas políticos, seja na abstenção ou no apoio a alguns movimentos que começam a surgir. Tenho dúvidas que o apaziguamento seja eterno.
Dá para traçar algum perfil psicológico dos portugueses?
É sempre muito difícil fazer um diagnóstico colectivo. Dito isto, o que sinto é muito um carácter bipolar, períodos muito depressivos e depois de maior euforia.
O que pode ser enganador para quem nos governa?
De facto. Mas o diagnóstico dos governantes também daria pano para mangas. Há traços de personalidade muito vincados, para o bem e para o mal. Não fazendo análises individuais, temos muita sociopatia na política portuguesa, pessoas muito senhoras do seu nariz mas que conseguem lideranças fortes.
Como havemos de saber em quem confiar?
Pois, essa é a dificuldade.
Que conselho daria o psiquiatra?
Não votar sempre no mesmo, construir alternativas. Já ajudei a construir três partidos, entre eles o Bloco de Esquerda. Agora não estou politicamente activo mas acredito que temos de conseguir construir colectivamente alternativas suficientemente boas. E acho que a alternativa não pode ser voltar ao passado mas mostrar novos caminhos. É nisso que a oposição tem sido fraca e só por isso que o governo se mantém.
Desejos para 2015?
Que se consiga dar a volta a isto, individualmente e socialmente. Sou um optimista e nas equipas onde trabalhei sinto que isso facilita muito a vida das pessoas. É ao perceberem que não é solução estar numa lamentação permanente que se mobilizam para fazer coisas novas.