6.6.23

Em 20 anos, salários de mil euros perderam 42% de poder de compra

Sónia Santos Pereira, in DN

Crise após crise, as remunerações dos portugueses perdem valor. Jovens qualificados são empurrados para fora, porque tecido empresarial não acompanhou a sua evolução.

75% do emprego em Portugal está em setores com baixa produtividade e isso reflete-se nos níveis remuneratórios.

Foi há quase vinte anos que surgiu o termo mileuristas para designar os jovens altamente qualificados que entravam no mercado de trabalho com um salário de 1000 euros. O conceito surgiu em Espanha, mas atravessou fronteiras. O problema estava longe de se circunscrever ao país vizinho. Em Portugal, as remunerações de entrada dos recém-licenciados eram até mais baixas. Passaram duas décadas e o problema mantém-se no essencial. E ao longo deste período houve uma real perda de poder de compra. Como aponta o economista João Cerejeira, "para comprar o mesmo que se comprava em 2002 com um salário de mil euros, seria necessário hoje um salário de 1422 euros", ou seja, mais 42%. Nestes vinte anos, os salários pouco subiram e muitos congelaram, principalmente no período da troika. A grande exceção foi o salário mínimo nacional, que duplicou. No ano passado, 56% dos trabalhadores recebiam um salário inferior a 1000 euros. Nos mais jovens, a percentagem era de 65%.

Para João Cerejeira, há três dimensões que explicam a existência destes mileuristas. O professor da Universidade do Minho lembra que o número de alunos do ensino superior registou um crescimento exponencial (desde a entrada na União Europeia, o número de universitários multiplicou por quatro) e o efeito foi o aumento da oferta no mercado de trabalho dos mais qualificados. Em simultâneo, as universidades diversificaram as propostas educativas e surgiram mais graus académicos. Estes movimentos criaram "uma maior heterogeneidade nos retornos económicos dessas formações. O que notamos nos estudos mais recentes é que a dispersão dos salários de quem acaba o curso é maior do que era há uns anos". No cerne, temos "o fraco crescimento da economia portuguesa que vai desde 2000 até à pandemia", diz. São 20 anos "de crescimento muito lento", em que "o emprego aumenta, mas o valor gerado por trabalhador sobe muito pouco. E isso está associado a um crescimento muito lento dos salários".

O crescimento quase anémico da economia portuguesa deve-se ao seu padrão de especialização, que se caracteriza pela "presença muito forte no conjunto da atividade económica de ramos com baixa produtividade", aponta o economista José Reis. A realidade é que "75% do emprego em Portugal está em ramos com produtividade igual ou inferior a 90% da produtividade média, alguns até bastante inferior". E desse volume de emprego, 22% concentra-se no comércio, alojamento e restauração; 17% em atividades administrativas e de apoio (serviços); 8,4% nos ramos industriais menos produtivos; e 5% na agricultura. José Reis lembra que a economia do país bateu no fundo em 2013, mas conseguiu recuperar o emprego. Embora de níveis salariais baixos. Até 2019, foram "criados 520 mil postos de trabalho, mas 314 mil foram nestes ramos de baixa produtividade", sublinha. Na sua opinião, o país "desindustrializou-se mal e terciarizou-se através de ramos de baixa produtividade". Exemplo disso é o setor do alojamento, restauração e similares, onde o salário médio corresponde a 69% do salário médio nacional.

A consequência mais evidente destes níveis salariais é a emigração. José Reis lembra que, desde 2011 para cá, a média anual de emigrantes aproxima-se das 100 mil pessoas. "Este valor é da emigração permanente e temporária [menos de um ano]. Há gente que vai lá para fora mesmo que vá voltar no próprio ano". Para o professor da Universidade de Coimbra o sistema de emprego português "não é inclusivo" e os jovens portugueses, hoje mais qualificados, cosmopolitas, têm apetência pelo estrangeiro. A estrutura da economia não mudou o suficiente nestes vinte anos para que um jovem tenha uma oferta salarial muito melhor, diz. "Podem estar a beneficiar do salário médio valorizado, mas temos o algodão da emigração que não engana". Para José Reis, as empresas "acantonam-se no lado fácil da economia. Os grandes protetores da classe empresarial portuguesa são os trabalhadores que são incorporados nessas empresas através de níveis salariais muito baixos", critica. E defende a necessidade "de olhar para as baixas qualificações das lideranças empresariais e do tipo de organização que criam".

O sociólogo Elísio Estanque também reconhece a existência de "um défice de visão estratégica e de formação de liderança" na classe empresarial, admitindo que possa ter havido falhas na criação de "programas de formação profissional para quem dirige as empresas, nomeadamente as indústrias, que continuarão a ser vitais na oferta de emprego e para alavancar a economia". Até porque o crescimento da economia nacional não acompanhou a elevação das qualificações das gerações mais novas, gorando as expectativas criadas com a integração na União Europeia de mobilidade social ascendente, melhoria das condições de vida e dos padrões de consumo. "O tecido económico, nomeadamente do setor privado, não teve capacidade de acolher essas competências técnicas, tecnológicas e formativas das novas gerações", frisa. Segundo Elísio Estanque, "Portugal em certa medida estagnou, porque é muito difícil compreender que 20 anos depois o poder de compra real não tenha evoluído significativamente". "O salário mínimo aumentou, mas os salários médios mantêm-se praticamente idênticos", diz. O contexto junto de "uma juventude que começou a pensar numa escala transnacional" conduziu à emigração. "Estou convencido que essa camada de jovens que emigraram, bem qualificados, são bem-sucedidos no estrangeiro, onde os salários são maiores e as condições laborais e de carreira melhores".

Como alterar este panorama? José Reis defende "a óbvia necessidade de industrialização em setores de criação de valor e de uma terciarização qualificada, porque isto está ligado aos salários". Para Elísio Estanque, as micro e pequenas empresas de base tecnológica que têm surgido, algumas com grande capacidade competitiva à escala internacional, dão algumas notas de esperança, embora não tenham um impacto no mercado de emprego como os setores mais tradicionais e público. João Cerejeira aponta o dedo à carga fiscal sobre o trabalho e as empresas, que na sua opinião precisa de uma remodelação profunda. E considera que o relevante não é proteger as PME, mas assegurar o seu crescimento.