Paulo Pedroso, professor e ex-ministro do Trabalho e da Solidariedade de António Guterres, faz um retrato sobre os grandes desafios do futuro do mercado de trabalho. Para o sociólogo, as gerações mais novas estão a ser “vítimas da armadilha ideológica do individualismo e da meritocracia” e a “votar com os pés” saindo do país para melhores condições. O político considera que, face ao quadro europeu, e com esta ‘fuga de cérebros’, Portugal está a sofrer uma ‘transmontanização’ e corre o risco de viver o que os países de leste passaram há mais de 50 anos, com população “sobrequalificada e frustrada”
De férias no Algarve, o antigo ministro de Guterres resume um dos principais problemas que está a atrasar a economia do país: os salários pouco competitivos para o mercado europeu estão a levar a que os jovens mais qualificados continuem a sair do país, levando a inovação consigo. Para este político, é preciso voltar a apostar na Indústria e não apenas no turismo ou senão Portugal torna-se “a Tailândia da Europa”
Como se sabe os jovens em Portugal são dos mais precários, dos mais mal pagos, e dos que mais tarde se conseguem emancipar. Caminhamos para onde?
Sobre a situação atual dos jovens, para mim há uma questão de fundo que é o facto de todo o nosso sistema e políticas de mercado de trabalho ter sido concebido para uma realidade educativa completamente diferente. Antigamente 80% dos jovens não chegavam ao ensino superior, hoje 80% dos jovens tem essa formação.
De facto, é o que um estudo recente da Gulbenkian indica, após uma análise sobre a equidade entre gerações, ao dar conta que para os mais jovens no mercado de trabalho os seus níveis de escolaridade valem cada vez menos prémios e bons salários.
Quando os dados dão conta que diminuiu o prémio para quem chegou ao ensino superior, tem de se ter consciência que antigamente esse tal prémio era para pouca gente. E quando a entrada no ensino superior se tornar a regra do mercado de trabalho, quase que temos de deixar de falar de prémio, mas sim da sanção de quem não chegou ao ensino superior. Noutros países o prémio para um jovem que tem ensino superior já é mais baixo há muito tempo. Nós só estamos a fazer esta transição agora.
Recordamos que o ordenado médio de um jovem até aos 30 anos em Portugal anda pelos €1.054 brutos. Atrás de nós só a Grécia. Ou seja, os ordenados da maior parte dos jovens dos outros países da UE são bem mais altos, mesmo para quem não tem ensino superior.
Essa questão que levantam é outra, que é saber se o nível salarial português é adequado. E esses dados que referem dos salários com paridade de poder de compra liga-se com o facto de Portugal ter um peso dos salários baixo no rendimento do país, tão baixo que no início desta legislatura o governo se comprometeu a repô-lo na média europeia. Tudo converge para uma questão: O problema essencial dos jovens portugueses não é quando comparado com o passado, mas é quando comparado com as expectativas…
Esta é uma geração que viu as expectativas goradas. Que realidade antecipa?
Penso que há aqui um efeito inevitável. À medida que as qualificações destes jovens sobem, por causa da livre circulação de pessoas, há uma espécie de criação de um mercado de trabalho europeu. Portanto, os jovens já não funcionam necessariamente [apenas] no mercado de trabalho nacional. E isso faz parte do projeto europeu. O nosso país é que tem um problema: o facto dos jovens que funcionam nesta lógica de mercado europeu irem procurar salários mais altos, como há 50 anos os de Bragança procuraram ir para Lisboa.
Os países europeus que oferecem melhores condições competem pelos nossos jovens mais qualificados…
Temos trabalhadores qualificados a competir no mercado de trabalho aberto europeu e o nosso país não é competitivo. Esse é o problema, que não é só nosso. Se repararem, a subida do PIB per capita na Roménia acontece em parte pelo crescimento económico, mas também porque 20% da população saiu. A perspetiva que tenho é que se nada for feito, devemos preparar-nos para uma situação em que o nosso atraso económico e salarial implique a saída de força de trabalho qualificada e a entrada de força de trabalho pouco qualificada, agravando o atraso na economia.
O nosso país tem um problema: o facto dos jovens que funcionam nesta lógica de mercado europeu irem procurar salários mais altos, como há 50 anos os de Bragança procuraram ir para Lisboa.
Por onde se deve começar a resolver este problema?
Por todos os lados. Chamo a atenção para o facto de os nossos salários serem mais baixos do que a nossa situação económica permite. O facto de o peso dos salários no total de rendimento em Portugal ser de cerca de 40% do PIB, e a média da UE andar nos 45% ou 46%, aponta para que há uma margem de progressão dos salários que não tem sequer a ver com o governo. Tem a ver com as dinâmicas de empregadores e trabalhadores.
O que quer dizer com isso?
É muito simples. Ou os trabalhadores individuais conseguem melhores condições no seu contrato individual de trabalho, exigindo um salário mais alto, ou a chamada contratação coletiva, com fixação dos salários por categoria profissional entre sindicatos e patrões, tem de ser mais eficaz a exigir essa subida. Há margem económica para isso.
Quer dizer que os patrões em Portugal não estão a pagar os salários que poderiam?
Dito de outra forma, os trabalhadores não estão a ser capazes de exigir os salários que o nível económico permite. Historicamente isto fazia-se com [a luta dos] sindicatos. E isto é agora assim, apesar da enorme valorização do salário mínimo. Para se ter uma ideia, quando estive no governo há mais de 20 anos o salário mínimo cobria 7% da população, hoje cobre 20%. Portanto, se por um lado o governo está a procurar valorizar o salário mínimo, as empresas não estão a ir além desse mínimo. Daí ter sido importante o acordo que o governo, os patrões e os sindicatos fizeram no último ano, que prevê um aumento de 20% dos salários até o fim da legislatura. Agora, se vão subir não sabemos. E se a inflação for de 30% a subida será ainda de 20%?
Nós não estamos a reforçar o nosso poder na biotecnologia, mas sim na agricultura e no turismo. E isso desacelera o nosso potencial de inovação. É aquilo a que poderíamos chamar, sem ofensa, a “transmontanização” de Portugal.
Se nada mudar, e a fuga de cérebros aumentar, como prevê, qual a fatura para o país?
A existência de uma mão de obra disponível pouco qualificada reforça [apenas] a competitividade dos setores intensivos em força de trabalho. Ou seja, nós não estamos a reforçar o nosso poder na biotecnologia, mas sim na agricultura e no turismo. E isso desacelera o nosso potencial de inovação. É aquilo a que poderíamos chamar, sem ofensa, a “transmontanização” de Portugal. Ou seja, aconteceria a Portugal, no contexto europeu, um pouco o mesmo que aconteceu em Trás-os-Montes no contexto nacional há meio século, que é a existência de um equilíbrio de baixa qualidade, em que as pessoas que ficam [na terra] são as menos competitivas e menos qualificadas e o tecido que aí se desenvolve é o menos moderno e inovador. O que gera um ciclo de declínio. No caso de Trás-os-Montes este ciclo só se interrompeu quando se redescobriu a agricultura, o vinho em particular, e mais tarde o viniturismo. No caso português o perigo que estamos a atravessar é dizer-se que ‘a economia portuguesa não dá para mais’. Volto ao ponto inicial, ora se os salários atuais podem ser mais altos, mesmo com esta situação económica, isto ajudaria a reter talento. Porque o diferencial de salários é um fator relevante na saída do país.
Que aumento de salários o país poderia suportar e faria a diferença?
O que me parece é que se chegarmos à média dos salários na União Europeia, parece-me uma meta adequada. E isso implicaria um aumento de salários em termos reais que vai até aos 20%, já com a inflação incorporada. Há uma margem que nos permite chegar aí.
Seria um aumento considerável, só os jovens passariam dos atuais €1.054 para os €1634, que é a média dos salários da UE para os trabalhadores até aos 30 anos. Então não concorda que ‘vivemos acima das nossas possibilidades’…
Esse foi o mantra da última década. A ideia de que eram os salários que prejudicavam a nossa competitividade. Mas é uma ideia ultrapassada. Se vocês falarem com o Fernando Alexandre, do PSD, que está a fazer um estudo para o Conselho Económico e Social sobre qualidade do emprego, outro dos problemas é que temos um stock de capital baixo por posto de trabalho, ou seja, há pouco dinheiro investido no posto de trabalho de cada trabalhador. Isto acarreta um perigo estrutural, que é deixarmos de ter condições para aumentar a produtividade, porque ela não depende do esforço e da dedicação do trabalhador. Do ponto de vista económico, esta é a grande questão. Nós precisamos de aumentar o capital por posto de trabalho para depois poder aumentar a produtividade e, mais tarde, os salários.
Aumentar os salários só depois do aumento da produtividade?
Uma das coisas que diferencia as pessoas mais à esquerda das mais à direita é que as mais à direita dizem que temos de resolver o sistema por esta ordem. Eu considero que já temos potencial para subir os salários. Essa coisa do ‘vivemos acima das nossas possibilidades’ teve consequências. A última década foi de baixíssimo investimento produtivo, quer dos privados, quer do Estado, o que degradou a nossa situação. Nós não conseguimos romper esta barreira e ter salários mais altos e postos de trabalho à altura da nova geração se não tivermos esse investimento. Ou corremos o risco de passar pelo mesmo que os países de leste há 50, 60 ou 70 anos: a melhoria dos níveis de educação não foi acompanhada por aumento da capacidade produtiva. E, de repente, tiveram uma população sobrequalificada e frustrada.
Hoje o sistema está construído sob a ideologia do mérito individual, do quadro de honra. Ou seja, do ‘eu contra todos’. Não há a mínima noção de que os mecanismos para o sucesso são coletivos e não são o resultado de desempenhos individuais. Os jovens estão particularmente desarmados.
Há uma teoria de que o desinvestimento dos sindicatos nas últimas décadas pode não ter sido inocente.
Bom, é uma tendência geral, com poucas exceções. Esta nova geração é vítima da armadilha ideológica do individualismo e da meritocracia. Cada um tenta fazer o seu percurso sozinho. O Robert Reich, que foi ministro do Trabalho do Clinton, fala muito de esta geração ter a ilusão do mercado de trabalho dos basquetebolistas. Cada um de nós tenta triunfar, mas os salários só vão por aí acima para uma pessoa ou duas. As restantes declinam. Esse enfraquecimento dos sindicatos é parte disso. O comportamento desta geração no mercado de trabalho é apostar na dinâmica individual e não na coletiva. É um dado internacional com poucas exceções. Uma delas são os países escandinavos.
Não se terá aprendido assim na escola?
Eu penso que tudo começa com o sistema educativo. Hoje o sistema está construído sob a ideologia do mérito individual, do quadro de honra. Ou seja, do ‘eu contra todos’. Não há a mínima noção de que os mecanismos para o sucesso são coletivos e não são o resultado de desempenhos individuais. Os jovens estão particularmente desarmados. Mas eu também não queria ser simpático com os sindicatos neste ponto porque acho que também não se aproximam [dos jovens]. Para dar um exemplo, em Portugal um trabalhador de uma plataforma não se pode sindicalizar porque é considerado trabalhador por conta própria.
Os rostos dos sindicatos não têm os jovens na agenda principal?
Em termos gerais, sim. Sobretudo não têm os jovens mais qualificados que aparecem como quadros e que nunca foram uma prioridade sindical, excepto em sindicatos de algumas profissões específicas, como os médicos, os enfermeiros ou os professores. Esses sindicatos relacionam-se com um patrão muito especial chamado Estado. Em grande parte, o problema de que estamos a falar é dos sindicatos e dos jovens que trabalham no setor privado.
São esses o elo mais fraco?
São, porque sempre foram vistos como os que se safavam sozinhos. Havia uma presunção de partida de que um jovem que triunfa no Ensino Superior era um vencedor. Tenho uma filha que é jovem engenheira e que está fora do país, na Suécia. Quando falo com ela sobre as amigas, verifico que algumas das colegas com melhores notas ficaram em Portugal. Ora, essas são as que têm piores salários e não sabem negociá-los.
E qual é a visão da sua filha?
Ela está inscrita num sindicato de engenheiros. Ela não assina um contrato de trabalho sem perguntar ao sindicato o que é que aquilo quer dizer. Em Portugal, os sindicatos concentraram-se em proteger as pessoas de salários mais baixos de níveis absurdos de exploração.
O que quer dizer quando afirma que os jovens estão desarmados?
Não estão só desarmados. Usando uma expressão que a esquerda antigamente gostava: estão em risco de alienação.
Porquê?
Porque estão convencidos de que têm um poder que já não têm. Há uma falta de consciência.
Falamos de uma geração alienada?
Há esse risco numa dimensão, que é a mesma que o Guy Standing usa no livro 'O Precariado'. É uma geração que, no fundo, sente que o produto do seu esforço não vem para si. A situação mudou e o quadro institucional não o repercute. Claro que nós vemos organizações pontuais, como foi a Associação dos Precários Inflexíveis, a luta dos bolseiros. Na minha opinião, é necessário fazer isto em toda a sociedade.
Os jovens estão a votar com os pés. Dizem: neste contexto, vamos embora.
Esse despertar de uma geração ainda está por acontecer?
Não tenho nota de que tal tenha acontecido fora destas bolhas. Em parte porque esta realidade é muito recente. O crescimento da chegada ao Ensino Superior começou há duas décadas. Foi só há cerca de uma década que o jovem mediano em Portugal passou a ser o jovem com Ensino Superior. Mas se formos ver, as políticas de emprego para jovens licenciados resumem-se aos estágios profissionais. Tudo está montado para os problemas dos jovens pouco qualificados de há 40 anos. Haverá grandes mudanças institucionais em breve. E esta percepção alienante de que o jovem licenciado é um vencedor, que tem um lugar garantido na sociedade, e depois descobre que não tem, vai provocar um choque.
Deu-se conta de alguma reação a esse choque?
Sim. Nós podemos não gostar dela, mas a ação consequente tem sido sair do país. Os jovens estão a votar com os pés. Dizem: neste contexto, vamos embora.
Que grandes mudanças espera ver?
Vamos ter primeiro um agravamento das saídas quando a situação do mercado de trabalho europeu melhorar. Neste momento há dois fatores que nos travam: a saída do Reino Unido da União Europeia, que era um destino bastante forte, e a situação do mercado de trabalho na Alemanha. Mas, num curto tempo, nós vamos ter uma aceleração enorme das saídas. É a minha convicção. E as empresas, vendo-se com dificuldades em recrutar, vão ajustar a estratégia. Estou convencido de que vai haver um aumento salarial pressionado pela subida da emigração. É um clássico.
Estou convicto de que o aumento dos salários dos jovens em três a cinco anos é uma inevitabilidade.
Daqui a quanto tempo vai acontecer?
Acho que já começou a acontecer, mas quando sairmos desta situação de inflação e de desaceleração económica, entre 3 e 5 anos, a tendência vai radicalizar-se. Portanto, estou convicto de que o aumento dos salários dos jovens em três a cinco anos é uma inevitabilidade, por força das dificuldades de contratação. Uma grande incógnita é o que o país vai fazer do ponto de vista da atração de investimento. Sem investimento, batemos na parede: as empresas deixam de ter produtividade suficiente para garantir esses salários. É o grande desafio dos próximos cinco anos. De alguma forma, podemos dizer que é um desafio que se anda a repetir de cinco em cinco anos desde que entrámos para a União Europeia. [risos] Mas agora temos o PRR e o PT2030 como oportunidade. Resta saber se este afluxo sem precedente de recursos ao país se vai esvaziar em construção civil, em obra, ou se vai ter um efeito reprodutivo. Se o tiver, pode permitir um novo fôlego económico. Neste momento não há sinais disso, infelizmente. O que nós vemos é que o turismo continua a ser o motor do crescimento económico. Mas se vocês acreditarem – e eu não peço que acreditem – naquilo que diz o primeiro ministro e o ministro da Economia, eles estão completamente convencidos de que vão ter sucesso nessa mudança.
Qual é a sua opinião?
Não vejo ainda isso a acontecer. Mas ainda temos dois anos. A alteração substancial da composição da nossa força de trabalho - de que António Costa falou no discurso do Estado da Nação - eu ainda não a vejo. Mas esse seria o resultado lógico deste período de grande investimento. Eu sou cético. Não digo que não seja possível, digo que ainda não há indicadores. Como somos uma economia muito aberta, quando isso acontecer vamos ver nas exportações outros setores que não o turismo e o que nos sobra do automóvel.
O turismo é uma saída fácil para um país com sol e temperaturas amenas?
Se quiséssemos ser a Tailândia, estava perfeito.
Já temos tuk-tuks…
[risos] Há duas formas de ser [um destino] turístico: ou como França, ou como a Tailândia. Para sermos como França, precisamos de uma reindustrialização. É isso que está nas agendas modernizadoras. Se acontecer, o país muda estruturalmente. Até agora, o crescimento do emprego nos últimos tempos voltou a assentar no turismo e nos trabalhadores menos qualificados.
Com as devidas aspas, precisaríamos de uma nova “revolução industrial”?
Com muitas aspas. Seguramente uma transformação industrial. Se quiserem olhar comparativamente, temos de pensar o que é que vai ser o motor para este ciclo da economia portuguesa, como foi o têxtil e a metalomecânica ligeira nos anos 60 e 70 do século passado e como foi o ‘cluster’ do automóvel nos anos 90 e 2000.
Não será o turismo?
Seria péssimo.